domingo, 1 de abril de 2018

CAPÍTULO 26: LIÇÃO 22 – MUDE O CURSO, MUDE O PRUMO, AJUSTE AS VELAS



Ainda me restavam dias de férias, aproveitei a maré alta para mudanças, e aceitei o convite de Celina, e viajei para Montreal, no Canadá, para um curso de aperfeiçoamento do inglês. Quem sabe abriria portas para passar um semestre por lá como professora visitante, ou na Universidade Vermont nos EUA, já que estávamos na fronteira.

E para nosso bem, meu e o de Celina, em nenhum momento ultrapassamos o limite da amizade, ambas estávamos focadas em qualquer coisa que não fosse do território romântico, apesar de não ter escapado da sabatina dela, sobre meu affair com a Cléo. Bom, pelo menos eu estava comprometida só com o curso de inglês, Celina já estava em um nível mais avançado, e se deu ao luxo de se aventurar em treinar o idioma em relações sociais.

Eu, naquele frio, parecendo um astronauta, toda coberta, perto do aquecedor, em um momento de deslize, solitária, entrei no meu perfil fake do facebook, stalkeei as fotos de Marcela, e não tinha muitas novidades. Até que a janela piscou, era a própria:

-- Lorena? Você está por aí?

Hesitei por alguns segundos, mas, não resisti, respondi:

-- Oi, Marcela, tudo bem?

-- Mais ou menos. Você estava sumida, não apareceu mais por aqui.

-- A pressão dos prazos, do mestrado, tive que dar uma parada nas redes sociais.

-- Entendo, não deve ser fácil mesmo. Você viu que a professora Luiza agora é uma celebridade?

-- A professora Luiza? Uma celebridade? Não sei do que você está falando.

-- Ela é a nova namorada da Cléo Moraes, estão até fora do Brasil, tem fotos delas no réveillon.

Eu fiquei por alguns minutos sem saber o que responder, por que eu mesma fui pega de surpresa. Mexi em alguns sites, e as notícias eram as mesmas da época do réveillon, algum site de fofoca, não sei como, descobriu que eu estava fora do país, talvez, algum vizinho ou até um colega de trabalho fofoqueiro soltou essa informação e virou especulação que eu estaria com a Cléo fora do país. Pensei em mandar uma mensagem para a Cléo, mas, o mais urgente estava ali, piscando em vermelho, na tela do meu notebook:

-- Lorena?

-- Oi Marcela, eu estava olhando os sites, não sabia dessa novidade.

-- Posso te contar uma coisa? Eu sei que não temos muita intimidade, mas, eu não posso falar sobre isso com ninguém, eu estou tão perdida...

-- Pode falar, Marcela.

Eu tinha todos os motivos para não querer nenhum contato com Marcela, mas, eu não conseguia nutrir raiva, ou desafeto por ela. Meu sentimento por ela era muito maior, pude sentir sua solidão, sua fragilidade.

-- Eu sou completamente apaixonada pela professora Luiza, ela é um sonho pra mim, sabe? Ela é a mulher mais incrível que já conheci, acho que finalmente alguém a altura dela, viu isso, ela merece. Meu sonho acabou.

-- Você está falando da Cléo Moraes? Você acha que elas tem algo tão sério?

-- Que mulher imbecil perderia alguém como a Luiza? Só alguém muito covarde, estúpida, que tem medo de tudo.

-- Marcela, você sabe algo mais da vida amorosa da professora Luiza?

Eu tentava me manter no personagem, mas, já deletava o que escrevia várias vezes, me confundindo com as pessoas verbais.

-- Lorena, eu ferrei tudo. Sou muito imbecil, agora já é muito tarde, eu a perdi. Ela é, ou foi um sonho, ou sempre será só um sonho mesmo.

-- Eu não sei o que aconteceu entre vocês duas, mas, se você gosta tanto dela, que tal você lutar por ela, ao invés de se lamentar e se diminuir? E daí se é a Cléo Moraes? Acha que você pode amar a professora Luiza e fazê-la feliz? Então mostre isso, é seu sonho? Vai deixar morrer?

Não poderia ser mais ridículo da minha parte. Dar conselhos para Marcela lutar por mim. Eu deixei meu desejo me guiar, era tudo que eu mais queria: que Marcela mostrasse seu amor, tivesse coragem de ficar ao meu lado e largasse aquele namoro fracassado. A mágoa ainda estava ali, sentia meu peito apertar quando relembrava nossa última discussão, contudo, o amor latejava, como uma inquietação, algo inacabado por que se quer teve a chance de acontecer, porém, não caberia nas condições que Marcela limitou no nosso último encontro.
***************

Cheguei ao Brasil uma semana antes das aulas começarem. O inverso da maioria das pessoas que estavam em clima de verão, eu estava saindo de um freezer: pálida, e suando picas desde o desembarque. Sofri com o jet lag e a abrupta mudança de temperatura, Cris me aguardava no aeroporto como se eu estivesse há meses no Canadá.

-- Minha amiguinha! Você voltou! Luiza, que estava no Canadá!

Cris me abraçou como se eu fosse um enorme bicho de pelúcia, com essa piadinha irritante que viralizou há anos atrás.

-- Ok, ok, provavelmente eu ter ouvido você me chamar de amiguinha foi um delírio, é o calor do verão que está provocando isso, nem peguei sol e já estou sofrendo uma intermação?

-- Porra que chata que você é! Eu aqui me esforçando para ser fofa...

-- Cris, você sendo fofa é tão natural como usar casaco de pele em uma reunião do Greenpeace.

-- Trouxe toda essa frieza do Canadá com você? A propósito, de nada, por ter vindo te buscar no meio do meu expediente...

-- Ah... Cris, meu ursão, você está carente de mim?

Abracei-a beijando suas bochechas sem parar, até ela corar de vergonha.

-- Para, Luiza! Está me babando toda, mais do que filhote de yorkshire!

-- Então me diz onde você estacionou o caminhão?

-- Vá se fuder, Luiza! Piada mais sem graça, você nunca perde a oportunidade, né?

Cris voltou a ser ela, sorrimos. Almoçamos em um restaurante na orla, apesar do meu cansaço, precisava agradecer e deixar minha amiga tranquila quanto ao meu estado emocional.

-- Então, você está bem? Próxima semana recomeçam as aulas e, você vai reencontrar a Marcela, vocês tem se falado?

-- Eu já te respondi essa pergunta pelo menos uma dezena de vezes só essa semana, Cris. Praticamente te ofereci a senha do meu iCloud para você ler minhas mensagens, não, não falei com ela, e eu estou bem, sério, estou bem.

-- Desculpa, Lu. Excesso de zelo, não é? Você não precisa da minha ajuda, poxa, está aí conhecida como a namorada da Cléo Moraes, você conseguiu isso sozinha, nem acredito nisso. – Cris fez piada.

-- Ah é, por que grande parte das mulheres que arrumei na vida, foi você que me ajudou a pegar né? Grande guru!

Cris fez uma careta ridícula, enquanto eu jogava lenços de papel na cara dela.

-- Você sabe que, como essa fofoca aí ganhou público, você pode enfrentar umas piadinhas dos alunos, os jornalistas podem te importunar ainda... Já imaginou como será com a louca da Beatriz?

-- Sinceramente Cris, acho que isso já passou, ninguém vai falar nisso, e eu, juro que não pensei na Beatriz uma única vez, muito menos como ela ia reagir a essas fofocas que tem um pouquinho de verdade.

-- Mas, pensou em como a Marcela ia reagir?

Olhei para o mar, balancei a cabeça e chamei o garçom.

-- Vamos pedir sobremesa? Está muito quente, quero aquele sorvete de manga maravilhoso que tem aqui.

Cris percebeu minha recusa em falar no assunto, pedimos a sobremesa, e finalmente em casa, comecei a tomar pé da situação, estava de volta do exílio, e meus sentimentos estavam todos ali de volta comigo. Minha realidade que estava dormente, dava as caras, e toda autoafirmação e discurso de que eu estava bem, teria que virar um mantra para meus próximos dias.

************
E como diria a bruxa do episódio do Pica-Pau, novo semestre: E LÁ VAMOS NÓS. Novas turmas, calouros, trotes, alguns veteranos que decidem por si mesmos se dar mais uma semana de férias, reencontro dos colegas professores, e o campus no verão mais parecendo o calçadão de uma praia, as meninas com minisaias e microshorts, e os meninos com o mesmo visual praiano, acho até que alguns vinham ou iam para a praia com as mesmas camisetas regatas e chinelos de dedo.

Tudo exatamente igual, exceto por alguns olhares e cochichados nada discretos dos ex-alunos, certamente não era por saudade de farmacologia, me sentia vigiada pelos corredores, melhor dizendo, eu parecia estar exposta em uma jaula invisível para apreciação de curiosos. Eu repetia mentalmente meu mantra: eu estou bem. Todavia, pela primeira vez eu me sentia desconfortável e pressentia que não seria tão fácil como eu deduzi.

Na sala dos professores, eu senti um impacto mais de perto, o de Beatriz então foi imediato. Passou por mim, que inocentemente enchia meu squeeze de água e ordenou:

-- Na minha sala imediatamente, professora Luiza.

Qual criança que fez travessura, segui para o gabinete de Beatriz de cabeça baixa, não saberia arriscar que face dela eu ia enfrentar.

-- Pois não, Beatriz, em que posso ser útil?

-- Tem a capacidade de se tornar invisível? Isso seria bastante útil.

-- Olha, juro que adoraria ter essa habilidade, mas, meu laboratório ainda está testando em animais essa super tecnologia, quem sabe, daqui a uns cinquenta anos. – Respondi com sarcasmo.

-- Vejo que seu humor está muito bom, aprendeu a ficar engraçadinha assim no meio artístico?

-- Tenha santa paciência! Beatriz, o que você quer afinal? Entro em sala de aula após o intervalo e quero ir ao laboratório primeiro, dá pra ser objetiva?

-- Você quer objetividade? Então vamos lá! Eu quero que você se livre das merdas que você faz na vida pessoal e deixe bem longe desse campus!

-- Oi? Que merdas? Do que você está falando?

-- Você não sabe? Deixa eu te mostrar essa lista aqui – jogou na mesa dela uma folha preenchida – Isso é o número de vezes que a segurança foi acionada para retirar jornalistas, blogueiros, sei lá que mais tipo de gente, importunando funcionários, até mesmo o pró-reitor de pesquisa e a de graduação, querendo saber informações suas.

-- Olha Beatriz, eu não fiz nada que ferisse ética, conduta, ou qualquer coisa que desabonasse a universidade. É minha vida pessoal, e isso, é coisa de mídia, passa, tem alguma repercussão administrativa contra mim? Eu sequer estava no campus.

-- Mas, a universidade foi exposta, por sua causa!

-- Por que beijei uma atriz em uma ilha no feriado? Mas o que isso tem com a universidade? Um mar de corrupção envolvendo reitores, governador, deputados, com escândalos e eu expus a universidade? Conta outra Beatriz! Você foi encarregada de me dar algum recado dessas pró-reitorias?

-- Eu fui apenas informada, e quero lhe advertir, que isso não será tolerado, a universidade tem coisas mais importantes para lidar, do que com a segurança de uma professora.

-- Mas, eu estou pedindo escolta? Olha Beatriz, não estou entendendo muito bem o recado.

-- Os alunos podem ser importunados, isso ficar fora de controle e nós termos problemas maiores como processos de assédio...

-- Você está louca, aliás, você piorou, por que louca você já estava ano passado.

-- Luiza! Acorda! Você acha mesmo que ninguém vai te importunar com esse assunto? Como uma pesquisadora do seu naipe, vira manchete de tablóide de fofocas e nem se preocupa com isso? Era essa publicidade que você queria? Sempre tão discreta? Imaginou a fantasia que você despertou na cabeça desses alunos?

-- Parece que eu não preciso me preocupar, você se preocupou o suficiente, está longe aí nas deduções. Mas, nada do que você falou é um problema da universidade, seja lá o que eu for enfrentar, é um problema meu, não vou deixar que seja seu, tudo bem?

Saí da sala de Beatriz batendo forte a porta, pisando firme, no entanto, as coisas que Beatriz falou, ecoaram na minha cabeça, eu não tinha parado para analisar a repercussão da minha aventura com a Cléo, por esse prisma.

Meu primeiro desafio em sala de aula foi um pesadelo: os risos, e não me perguntem como, mas, certamente por bluetooth ou algum aplicativo, a projeção do meu slide, enquanto eu me distraía respondendo uma dúvida de um aluno, mudou para uma foto sensual da Cléo, no ensaio de uma campanha publicitária. Aquele funk infame do “créu” virou paródia, e de repente, eu ouvia pelos corredores por onde passava:

--Pra pegar a Cléo tem que ter habilidade... Cléo, Cléo, cléo, Cléo...

As aulas à tarde foram no mesmo clima, e eu, ainda nem tinha enfrentado, talvez o olhar que eu mais temia: o de Marcela. Essa eu encontraria na reunião do grupo de pesquisa, e por mais que eu pudesse tentar me convencer que eu não devia nada a ela, meu coração pensava diferente, ele nunca foi muito habilidoso em separar as estações.
À porta do laboratório outro desapontamento desastroso me aguardava, os meninos do grupo de pesquisa, repetiam o refrão da paródia, e sem notarem minha chegada quando entrei na sala, um dos meninos comentava com a colega:

-- Quem vai nos patrocinar agora? A Globo? Vamos publicar nossos artigos na Playboy, imagina nosso fator de impacto? Nossa orientadora e a Cléo em um ensaio sensual, eu colocaria isso no meu lattes, alguém conferiu se a professora Luiza atualizou o currículo lattes dela depois do réveillon?

Enquanto alguns riam, outros só me olhavam em desacordo com a piada do amigo, ou por já estarem envergonhados o suficiente pela minha chegada. Respirei fundo para não descer do salto, uma olhada em volta, e vi Marcela acompanhada de Jessica, com o notebook aberto, ao menos ela não fazia parte dos piadistas.

-- Vamos começar a reunião, pessoal? A propósito, meu lattes está atualizado Vinícius, ao contrário do seu, que continua medíocre, não teve competência para corrigir os erros do seu artigo, e atrasou seu prazo de qualificação, já sabe que sua entrada no doutorado pode ser comprometida, não é?

Com um ar de superioridade bastante falso, apelando para uma chamada de atenção em público direcionada a Vinícius, um dos meus orientandos do mestrado, coisa que não era do meu feitio, iniciei a reunião de maneira um tanto autoritária, até separar em pequenos grupos, deixando os outros docentes orientarem os alunos.

Meus olhos cruzaram com os de Marcela algumas vezes, e eu sentia meu coração acelerar todas as vezes que ela perguntava algo, ou respondia algo a uma colega, parecendo estar completamente concentrada na atividade, e não em mim. Naquela noite, não fiquei até tarde como de costume, por que nenhum dos meus orientandos teria coragem de me enfrentar a sós provavelmente, incluindo Marcela.

Caminhei até o estacionamento exausta, parece que o mundo estava nos meus ombros, cada olhada, cada cochicho, risada, que no começo do dia só me deixavam desconfortável, agora pareciam flechas de irritação. Parecia que o dia ainda tardaria a acabar, por que no estacionamento, fui abordada por um desconhecido:

-- Doutora Luiza Antero?

-- Pois não?

-- Estou esperando há dias encontrar a senhora, Cássio Arruda, repórter do jornal Novidade, pode me responder algumas perguntas sobre seu relacionamento com a Cléo Moraes?

-- Olha, me desculpe, mas, não tenho nada a declarar. Boa noite.

Andei apressada, e o repórter me seguia, fazendo fotos:

-- Doutora, até agora a senhora não deu sua versão a mídia, não gostaria de parar com os boatos sendo honesta com um jornal de credibilidade? Minha coluna é bem avaliada.

-- Eu não tenho interesse, obrigada. Não há nada a ser dito.

De frente ao meu carro finalmente, achava que dali eu fugiria e deixaria aquele pesadelo de dia, não acreditei quando encontrei meu carro pintado, certamente com as tintas usadas no trote dos calouros, em letras gigantescas:

-- CLÉO NA VELOCIDADE 5

Pelo resto da lataria do carro, tinha o nome de Cléo pintado, ou metralhado como na música. Era tinta lavável, que saía com água, mas, o repórter eternizou o momento, e se não fosse ele, os alunos, certamente que nem eram os meus, já deviam tê-lo feito, tirando várias fotos. Os seguranças chegaram no momento e afastaram o jornalista, outro funcionário se aproximou tentando me acalmar:

-- Professora, não vimos isso acontecer, mas já pedi que trouxessem água para remover essa tinta.

Eu, estava zonza, perdida, só acenei em acordo com os olhos marejados, as vozes, os risos, e quem estava em volta, com os celulares erguidos, me deixaram completamente atordoada, até que senti um braço me envolver, e uma voz familiar me dizer:

-- Baixa a cabeça, e vem que eu te levo.

Marcela me conduziu praticamente em escondendo em seu peito, abriu a porta do seu carro para mim, e me tirou do alvoroço como um cavalheiro salvava uma donzela. Arrancou com o seu carro da universidade, e disse em um tom tranquilo:

-- Vai ficar tudo bem, ninguém vai te fazer mal aqui comigo.

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