sábado, 26 de setembro de 2015

Manual Nada prático para viver um grande amor

CAPÍTULO 1: Lenços e ansiolíticos à cabeceira.

Qualquer ser vivente que se arrisca nessa história de relacionamentos sabe perfeitamente do que vou falar. Seja como for o início de uma relação: poético do tipo conto de fadas moderno, casual como as comédias românticas de sessão da tarde, inusitada do tipo os melhores amigos que se descobriram apaixonados ou até mesmo pouco convencional como os namoros virtuais que alcançam a vida real, “o felizes para sempre” em algum momento vai soar como uma grande piada de mau gosto.

Para quem acredita na teoria e frases prontas acerca de uma metade perfeita que vai se encaixar com você numa sintonia ideal e a partir daí você se torna a protagonista de uma grande história de amor, sinto muito informar: você está errada! Na verdade nem sinto muito, é quase com prazer com que venho tirá-la desse mundo de ilusão.

Convido você a entrar no meu quarto agora e dá uma rápida espiada ao que se resume o chamado romance ideal quando ele se transforma na nova versão da guerra fria na qual as ameaças de armas nucleares são fichinha diante das trocas de farpas e provocações entre duas pessoas que só conseguem enxergar os defeitos uma da outra até uma delas dá seu golpe final e certeiro aniquilando o mais frágil, lançando-o a um quarto escuro, repleto de caixas com tarja preta, caixinhas de lenços macios, um controle remoto e um celular no silencioso.

Ok. Você pode estar agora fazendo mil deduções a meu respeito. No mínimo o adjetivo de mal amada ou um coitadinha já veio à sua cabeça nesses três primeiros parágrafos. Eu também pensaria isso. Os poucos amigos que ainda suportam se arriscar a me visitar já estão no penúltimo estágio da epopeia que é ajudar uma amiga a sair da fossa de uma dor-de-cotovelo. Aliás, nunca entendi essa expressão dor de cotovelo. Alguém aí já teve dor em um cotovelo? Eu me lembro de ter batido um cotovelo na porta de casa e deu aquele choquezinho na hora e pronto, passou! Mas a dor de um fim de relação não é só um choquezinho e “passa gelol que passa!” ou um “tomou doril que a dor sumiu”. Penso que dor-de-cotovelo deveria se chamar cólica renal, essa sim incomoda, lhe suga as forças, lhe incapacita e tudo que você é deseja é uma boa dose de analgésico e anestésico na veia para apagar e só acordar quando aquela dor já tivesse sido extirpada.

Se você ainda não sofreu desse mal, ao menos já esteve no papel de bom amigo que apoia outro amigo nessa situação. A propósito, falei dos estágios que os amigos atravessam nessas circunstâncias? Hoje acredito que não se sofre sozinho uma dor de amor, ao menos se você é uma pessoa normal e tem no mínimo um amigo com o qual você pode desabafar. Pois bem, os meus amigos se encontram no penúltimo estágio.

No primeiro estágio eles abrem os braços, oferecem o colo, se tornam inimigos mortais daqueles amores que te feriram e exaltam suas qualidades (algumas que você não sabe onde eles encontraram) e se desmancham em fofuras com você. No segundo estágio eles te chamam para afogar suas mágoas, e tudo que conseguem é mais uma noite te consolando quando seu porre chega à fase da “salve rainha: gemendo e chorando nesse vale de lágrimas” e ainda precisam segurar sua cabeça no vaso sanitário quando “Hugo” sobe pelo esôfago loucamente. No terceiro estágio eles já começam a te recomendar ajuda profissional, ou seja, terapia. Nesse estágio eles tentam te convencer que seu estado emocional deplorável tem um fundo patológico. Esse estágio antecede o penúltimo, no qual meus amigos estão agora. Neste, eles já fazem careta quando veem seu número no identificador de chamadas do celular imaginando que você ligou para contar que está mal por ter passado a tarde revendo as fotos da sua ex. Nessa mesma fase seus amigos já estão no final da cota de paciência, e o festival de fofuras dá lugar ao: “bicha sai dessa!”.

O grande problema é que esses estágios dos seus amigos não coincidem com os seus estágios de final de relacionamento que podemos comparar às fases do luto: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. A incompatibilidade de estágios por vezes causa um mal estar entre você e seus amigos que só vai se resolver quando você estiver curada da dor-de-cotovelo aguda.

Analisando friamente, devo estar na fase da raiva. Ontem joguei fora os cartões, e as mensagens do celular com as declarações de amor que trocávamos ano passado. O próximo passo é deletar os e-mails fofos e excluí-la das redes sociais. Essa etapa é muito difícil. Você se sente tentada a bisbilhotar o perfil dela no Facebook, vigiar o que ela tem postado no Instagram, o que tem na sua mensagem pessoal do "whatsapp", onde ela fez check-in recentemente, o que ela está pensando agora? E aí numa atitude mesquinha você começa a postar indiretas nas redes sociais como se isso fosse feri-la mortalmente.

Ter um amigo para compartilhar seus pensamentos homicidas nesse instante é fundamental. Mas, como meus amigos estão na fase que já descrevi todos meio que me evitaram hoje, e numa coincidência incrível não há nenhum amigo de confiança on line, será que me bloquearam? Que seja! Vou enfrentar isso sozinha. All by myself! Como não lembrar da cena do Diário de Briget Jones agora...?

E por falar nisso, a trilha sonora ajuda nesse processo. Acabei de criar minha playlist para esse dia, na qual Adele é o carro chefe. Acho que essa está minha única parte boa da dor-de-cotovelo, por que com ela, a gente sente vontade de sofrer por amor só para que as letras tenham sentido na sua história.

Pois bem, ouvindo “Set fire in the rain”, estou me livrando das memórias virtuais de Beatriz. Um ano e meio de relacionamento, e a vaca surge me dizendo que precisa de um tempo para ela mesma. Ela só se esqueceu de acrescentar que o tempo para ela mesma incluía mais alguém na cama com ela. Bem que eu desconfiei daquela amiga de infância do interior: Alicinha. Não dá pra confiar em alguém que sorri pra você todo tempo. Alicinha era tão simpática e solícita comigo, que cheguei a acreditar quando ela me dizia que Beatriz era como uma irmã para ela. O amor fraternal das duas mostrou sua face incestuosa no final de semana que viajei para visitar meus pais na serra.

Beatriz me recebeu na volta com uma DR épica, o tempo para ela mesma resultou no conclusivo “pé-na-bunda”, essa expressão eu entendo muito bem e concordo, por que o impacto é bem semelhante. Para coroar o chute no traseiro, Beatriz ainda me revelou sua mais recente descoberta: sempre foi apaixonada por Alicinha, e o reencontro foi mágico para elas. Minha perplexidade era tanta ao ouvir tais palavras que meu impulso foi rir, a propósito, esse é um traço singular na minha personalidade, eu sorrio quando estou apavorada, na verdade, tenho ataques de riso quando nervosa. Ainda tive que ouvir de Beatriz algo que só na cabeça doente dela amenizaria sua sacanagem comigo:

- “Estou sendo honesta com você por que acho que você merece isso de mim, é uma questão de respeito”.

Respeito? Acho que meu português está ultrapassado. Desde quando dizer a verdade sobre trair a namorada com a amiga é uma questão de respeito?

Pois bem, mandei Beatriz à merda com sua honestidade e respeito por mim. Amaldiçoei até a quarta geração dela, e usei os piores insultos para denegrir ela e Alicinha. Claro que fiz tudo isso só mentalmente, enquanto ela destilava sua honestidade falando do quão especial eu era e o quanto queria minha amizade para sempre. Placidamente desejei boa sorte para ela e seu novo amor eterno de infância, enquanto minha mente fértil esganava seu pescoço.

Para quem entende esse universo lésbico, sabe que um ano para duas sapas é praticamente uma vida, dois então... Por isso, acabar uma relação para a maioria é o momento: meu mundo caiu. As mais dramáticas encarnam até mesmo a imagem da cantora da música, a Maysa com o rímel borrado pelo mar de lágrimas, o cinzeiro ao lado da cama com um litro de vodca, lenços de papel e ansiolíticos a postos. As mais comedidas como eu, se satisfazem com os lenços de papel e os ansiolíticos, e no máximo arriscam algumas caixas de chocolate, que serão o que terei de mais prazeroso por um bom tempo.

As férias acabaram, e faz mais de dois meses que Beatriz me deixou, e ainda não sei como enfrenta-la no mesmo departamento da faculdade na qual lecionamos. E para completar o cenário das piores perspectivas, ela é minha chefe no departamento de farmácia, ou seja, não posso me dar ao luxo de hostiliza-la.

Felizmente minha vida profissional é bem menos desastrosa do que minha vida pessoal. Por isso, voltar às aulas pode representar a passagem pro meu próximo passo do luto: a barganha. Quem sabe trocando o trabalho por uma vida social eu consiga mais sucesso não é?

As disciplinas que leciono não são as mais atrativas do curso de medicina, nem no de farmácia, mas me orgulho de ser uma das professoras mais queridas pelos alunos. A prova disso é que nos quatro anos que estou nessa faculdade, fui homenageada por quatro turmas de bacharéis. Sou simplista quando digo que minhas disciplinas não são as mais atrativas, na verdade elas são consideradas as mais chatas dos semestres básicos e o terror do último ano. Por minha formação de biomédica, leciono farmacologia nos dois cursos, e por minha dedicação à pesquisa, coordeno e ministro as aulas de metodologia da pesquisa científica e trabalho de conclusão de curso, o temido TCC.

Um novo semestre sempre me empolga: novas turmas, novos projetos de pesquisa, no entanto, dessa vez a empolgação típica foi nublada pela tortura que será encontrar Beatriz. Especialmente por que a felicidade dela me revolta ao passo que minha ruína parece à mostra nas minhas olheiras e nos meus cabelos mal cuidados, minha pele opaca, praticamente uma antecipação da menopausa! Definitivamente, não vou dar esse gostinho a ela. O que me resta é reunir todas as minhas forças para clamar o socorro de Ed, meu amigo cabeleireiro.

- Oi Ed, sou eu.

- Fala mona!

- Preciso de você.

- Ai Luiza! Se for pra outra sessão de exorcismo da Beatriz, vou logo dizendo: estou de TPM, dou conta disso não!

- Cala boca biba! Preciso de seus serviços, tem uma horinha pra mim aí no salão?

- Claro que tenho, para você dou um jeitinho. O que você está pensando em fazer? Uma hidratação nessa juba que você deixando crescer pra pagar promessa?

- Ednardo Francisco! Ai que pessoa desagradável você é!

- Aiiiii! Quem é esse exu? Para de me chamar por esse codinome podreee. Desagradável é seu cover de Maria Bethânia! Chega a me dá taquicardia quando lembro...

- Deixa de drama, é seu nome no RG! E eu quero uma repaginada, algo moderno, mas nada tão moderno como o moicano do Neymar, nem raspar um lado da cabeça com as meninas do Big Brother!

- Claro, não vou mudar você de Bethania pra Gadú não! Venha agora! Vou te fazer uma diva hoje!

Ed na verdade se chama Ednardo Francisco de Assis Souza. Ele tem razão de esconder o seu nome verdadeiro, resultado de um pai nordestino apaixonado por MPB que resolveu homenagear cantor cearense Ednardo, e uma mãe religiosa, devota de São Francisco de Assis. Chamá-lo pelo nome é apelar para a ofensa em qualquer conversa, entretanto é também a saída mais rápida para fazê-lo mudar de assunto. Preciso dizer que Ed é gay? Pois bem, ele é um dos amigos mais queridos que tenho e está incluso naquela lista dos amigos do penúltimo estágio. Ele trabalha em um salão metido a besta na zona sul da cidade, frequentar esse salão é o máximo de luxo que me permito, não sou das mulheres mais vaidosas, apesar de não fazer a linha motorista de Scania, não tenho muita paciência para esses detalhes do universo feminino como shoppings e dezenas de cremes, reniew, maquiagens e barangandãs.

Entreguei-me nas mãos de Ed que parecia estar preparado para uma dedetização ou para combater uma nova variedade do ebola.

- Ela chegou pessoal.

Ele me esperava no salão com sua equipe a postos, armados com tesoura e escovas, pincéis e bisnagas, pinças e cera quente, alicates e lixas, devidamente paramentados com avental, luvas e máscaras.

Minha primeira reação foi de pavor. Dei uma rápida olhada na porta de entrada de vidro calculando se ainda havia espaço e tempo para uma fuga espetacular. Mas, a equipe de Ed parecia treinada pela SWAT, foram mais rápidos isolando as saídas e me empurrando para a bancada de poltronas e espelhos.

- Ed que palhaçada é essa? Quando falei de repaginada eu estava me referindo a um corte de cabelo, não falava de uma operação para mudar o rosto e fugir do país!

- Eu me meto nas suas aulas? Eu dou pitaque no que você faz com aqueles pobres ratinhos brancos naquele laboratório? Eu me interfiro nas suas pesquisas? Hein? Não! A resposta é não! Então não se meta no meu trabalho queridinha!

- Eu tenho que me meter! Esqueceu-se que a cobaia aqui sou eu?!

- Então entenda como um bem a ciência doutora! Alguém por favor, comece a fazer a limpeza de pele nela? Quem sabe ela se cale e nos deixe trabalhar com aquela máscara de concreto no rosto!

Ed estava certo. A tal máscara me fez mesmo calar a boca.

CAPÍTULO 2: NOVA PÁGINA DO MESMO LIVRO

A operação de guerra sai desse corpo tribufu liderada por Ed surtiu um efeito que eu não esperava. Demorei alguns segundos para me reconhecer diante do espelho no final dos trabalhos. Acho que foi para isso que aquela cera quente serviu: arrancar meu rosto para deixar outro nascer, também pudera: só isso explicaria aquela dor!

Sentindo-me como uma protagonista daqueles quadros de transformação de programa de TV matinal, ou uma espiã da KGB disfarçada numa missão secreta, concluí que estava pronta para o novo semestre.

Pelos corredores já encontrei ex-alunos que elogiaram empolgados meu novo visual.

- Prof! Abalou!

- Doutora Luiza! Maravilhosa!

Minha satisfação com os elogios era tanta que eu me imaginava em um comercial de shampoo, no qual meus cabelos esvoaçavam com o balanço perfeito, meu andar em câmera lenta despertava a atração de todos: homens, mulheres qual Marilyn Monroe sobre um tubo de ventilação de uma calçada, até fiz a expressão de mulher fatal acreditando ser a sensação do campus naquela manhã.

Fui arrancada abruptamente daquele status imaginário de protagonista de um clipe da Beyonce, com o choque de uma porta vaivém direto no meu nariz, fazendo com que a pasta que eu carregava se espatifasse no chão, bem como os livros da aluna que empurrou a porta ocasionando o choque. Os cabelos com o balanço perfeito agora esvoaçavam na minha cara tapando meus olhos e entrando na minha boca fazendo com que eu me engasgasse todas as vezes que tentava responder à menina angustiada.

- Por favor, me perdoe.

Eu tentava cuspir os cabelos que entravam em minha boca para responder a garota que catava minhas coisas espalhadas, esquecendo-se das dela.

-- Não tem problema, eu estava distraída também, desculpe-me. – Disse alcançando papéis e livros empilhando-os sem ao menos discernir o que era de fato meu.

-- Machuquei a senhora? – A jovem estudante perguntou.

-- Imagine! Não se preocupe com isso, pegue seus livros para não se atrasar para aula.

Fui compassiva com a jovem de cabelos lisos, negros, bochechas rosadas, sorriso encantador, e os olhos, não pude deixar de perceber quando os encarei antes de nos levantarmos: verdes escuros, à luz clareavam. Não devia ter mais de 21 anos, como a maioria dos meus alunos. Despediu-se se desculpando outra vez e me deu um sorriso mais tranquilo, meio moleque, dizendo:

-- A gente se esbarra por aí professora.

Sorri, e voltei ao meu percurso até a sala dos professores, o primeiro desafio do dia: reencontrar Beatriz, minha coordenadora no curso de farmácia. Na sala reservada aos professores, reencontrei amigos, recebi os elogios que esperava, algumas mais próximas diziam:

-- Assim é que se faz, um tapa na autoestima, só quem perdeu foi ela!

Eu confesso minha tensão até reencontrá-la. Eu teria a manhã cheia de aulas, era a desculpa perfeita para adiar esse reencontro, mas, como o universo sempre conspira ao meu favor (só que não), Beatriz adentrou a sala distribuindo simpatia, dando as boas-vindas aos docentes no novo semestre, relembrando a reunião que aconteceria no sábado de manhã. Ao se deparar comigo, demorou um pouco a reconhecer, não conseguiu disfarçar a surpresa e disparou mais formalmente:

-- Olá Luiza, como vai?

-- Muito bem professora Beatriz.

-- Você deve ter percebido que suas aulas no curso de farmácia diminuíram por solicitação do departamento de medicina, espero que não tenha levado isso para o lado pessoal.

-- De forma nenhuma, aqui, não dou espaço para lado pessoal professora. Agora, se me der licença, tenho aulas a ministrar.

Ia me retirando altiva, notando um certo ponto de interrogação na testa da minha ex, que na minha interpretação mais otimista seria: “Onde essa mulher estava escondida quando namoramos?” ou numa perspectiva ruim eu supus o pensamento de Beatriz:” A quem ela pensa que está enganando?”. Pois bem, falei que eu “ia me retirando altiva”, o “ia” se transformou em passado imperfeito quando o bolso do meu jaleco ficou preso na maçaneta da porta, e nas tentativas de sair daquele enroscado, ia e voltava, praticamente sapateando à porta, impedindo o trânsito de outros professores.

-- Precisa de uma mãozinha Luiza? – Beatriz falou quase sorrindo.

O tom me soou provocativo, com toda força avancei mesmo presa a porta, rasgando a costura do bolso e fingi manter a altivez, mas frustrada por aparecer no primeiro dia de aula com meus alunos com o jaleco rasgado.

Farmacologia clínica não é pra é propriamente a disciplina favorita das minhas turmas como já falei anteriormente, mas, é nela que meus laços com os alunos ficam mais estreitos, uma vez que é justamente nessa matéria que desenvolvo o maior número de pesquisas, parte delas nos laboratórios da própria universidade, talvez esse seja o principal atrativo do semestre: poder ingressar no grupo de pesquisa da professora Doutora Luiza Antero de Carvalho. Até que soa poderoso meu nome afinal... Nos semestres básicos ainda segundo ou terceiro, dependendo do curso, leciono Metodologia da Pesquisa Científica, mas, nesse momento, os alunos nem ao menos sabem que pesquisas em qualquer campo, que dirá que precisa de um método.

Costumo dizer que os alunos não estão preparados nem para mim, nem para a Metodologia da Pesquisa no primeiro ano da faculdade. Por isso considero Farmacologia meu contato verdadeiro com meus alunos nos cursos de farmácia e medicina. Naquele dia, minhas aulas seriam todas dela a chamada “farmáco”, as duas primeiras no curso de farmácia e as últimas no curso de medicina. Beatriz tratou de diminuir minha carga horária no curso que ela coordenava, o que para mim foi alívio, para ela, pode ter sido mais uma das suas atitudes para me manter longe dela e do seu novo amor, no final das contas, acho que ela me fez um bem.

As caras assustadas dos alunos eram exatamente iguais às dos semestres anteriores quando eu expunha o plano da disciplina, ementa, conteúdo, bibliografias e cronograma de aulas. Os alunos de farmácia eram mais ansiosos, não entendiam o porquê ter duas professoras em uma mesma disciplina, acreditavam e estavam certos nisso, que diminuiriam as chances de ingressar no meu grupo de pesquisa. No curso de medicina a expectativa era de fato o início das atividades de pesquisa, a data do lançamento do edital para seleção dos bolsistas, esses detalhes, apesar de mais da metade da sala se apresentar mais preocupada com o número histórico de reprovações nessa disciplina, alguns a repetiam pela terceira vez:

-- Professora, “manera” esse semestre, só está faltando eu me livrar da senhora aqui e no TCC! O Brasil precisa de médicos! – Um dos alunos brincou.

-- O Brasil precisa de bons médicos meu caro Anderson, médicos que saibam que fármacos estão prescrevendo, a ação de cada um no organismo, e também, de médicos que transformem sua atuação em pesquisa! Trate de mostrar isso esse semestre e nos encontramos na colação de grau se você fizer por onde! – Respondi em um tom de brincadeira, com um fundo sarcástico.

A sala gargalhou da careta que Anderson fez, não me incomodei, era um aluno relapso, mas nos últimos anos a exemplo de uma boa parte dos estudantes de medicina, parecia finalmente atentar para a seriedade do término do curso. As salas desse curso eram numerosas, e como haviam muitos repetentes, ficara lotada naquele dia. Por esse motivo, era mais difícil fixar os rostos, liga-los os seus respectivos nomes, costumo aprender o nome de todos os alunos, mas naquele semestre especificamente, sabia, que seria uma tarefa difícil. A grande sala a exemplo de um auditório era arquitetada em degraus e as cadeiras eram dispostas em um semicírculo.

Chamar a atenção dos alunos recobrando conteúdos que eram pré-requisito para o entendimento da minha disciplina era uma estratégia para abrir o diálogo com a turma e logicamente identificar os alunos mais interessados, esperando as respostas à pergunta que fiz, retomando conceitos de patologia, surpreendi-me com uma resposta segura e certa vinda do meio da sala.

-- Cascata complemento! A sequência de eventos mediada pelas proteínas que vão induzir a resposta inflamatória para o combate à infecção.

Minha reação foi instantânea, virei-me em direção a voz e encontrei a mesma jovem que esbarrara comigo mais cedo. Em uma circunstância menos atrapalhada, pude observar com mais atenção a beleza daquela menina. Não era uma beleza incomum, eu tive alunas possivelmente mais bonitas, algumas até trabalhavam como modelo, mas, aquela menina tinha um brilho diferente, que prendeu minha atenção, díspar de outras alunas que apesar de possuírem mais atrativos físicos não me despertavam o olhar mais aguçado.

-- Muito bem! Vejo que tem gente aqui que se debruçou sobre o “Robins” semestre passado. – Disse me referindo ao principal livro adotado na disciplina de patologia nos cursos de saúde.

As bochechas da bela jovem ficaram ruborizadas. Aquela brecha de timidez se apresentando acabou desencadeando meu encanto por ela. Percebi que ela disfarçou seu desconcerto afastando uma mecha de cabelos que cobriam seus olhos que me chamaram atenção no nosso encontro desastroso outrora.

-- Sua resposta foi precisa, seu nome?

-- Marcela Alencar, professora.

Não preciso dizer que testei o conhecimento de Marcela até o fim da aula, e na maioria das perguntas, ela se saiu bem, mas em todas as vezes percebi o rosto dela corar-se e seus colegas já começavam a ajuda-la no meu desafio disfarçado, consegui assim o que queria, a participação dos alunos naquela explanação.

Ao final da aula, todos ansiosos para o fim do turno exaustivo do primeiro dia de aula, e principalmente, para o trote dos calouros, a sala ficou fazia enquanto eu desligava os equipamentos utilizados. A voz já conhecida por mim se aproximou indagando:

-- Impressão minha ou a senhora estava me desafiando na aula?

Marcela tinha uma expressão enigmática ao me perguntar isso.

-- Um bom professor desafia os alunos a pensar Marcela, não percebeu que meu suposto desafio, como você entendeu, fez alguns colegas seus participarem da aula assim como você?

-- Às custas de muita pressão em cima de mim professora...

-- Marcela, eu ainda não comecei a pressionar, acredite.

Sorri, arrancando um sorriso da jovem em resposta.

-- Conheço sua fama. – Marcela disse no mesmo tom misterioso.

-- Não acredite em tudo que você escuta nesses corredores, metade são boatos infundados, exageros...

-- É, acho que sim...

Um silêncio se instalou naquela sala habitada apenas por mim e Marcela naquele momento. Por alguns segundos nos olhamos, Marcela sorriu e antes de quebrar o constrangimento silencioso, uma colega berrou na porta:

-- Ow Mah! Vamos pegar os bichos! – A garota loira falou impaciente – Ai desculpa professora, pensei que a Marcela estivesse sozinha...

Apenas acenei em acordo, recolhi minhas coisas, enquanto Marcela fez um aceno qualquer se despedindo. Repeti o gesto e saí da sala depois dela. Ao sair da sala conclui que minhas aulas da tarde estariam automaticamente suspensas. Os veteranos se agrupavam pelo campus, esperando a saída dos “bichos”, os calouros, da aula inaugural no salão de atos para dar início ao trote no lado de fora da universidade. Era assim todos os semestres, a coordenação do curso de medicina confirmou minhas suspeitas:

-- Professora Luiza, os alunos comunicaram “formalmente” que estão em atividades extra curriculares essa tarde, e acordaram não assistir aula de metodologia científica. – A secretária informou com um ofício dos alunos em mãos.

-- Supus isso. Os alunos do segundo semestre são os responsáveis pelos trotes dos calouros, e a festa já começou... – Sorri imaginando a algazarra.

Do estacionamento eu via o colorido das tintas espalhados pelos rostos e corpos dos calouros, nada de violento, tudo no ritmo envolvente da alegria de muitos jovens que começavam um sonho. Ok, ok, o contato com Marcela naquele dia me fez admirar com outros olhos “a juventude”, tenho que reconhecer.

-- Luiza? – Uma voz familiar ecoou atrás de mim – Lu?

Era Clarisse, minha boa amiga que estava fora do país a trabalho, quando Beatriz me deixou, acompanhou on line minha novela mexicana. Clarisse é fisioterapeuta, leciona anatomia e fisiologia nos mesmos cursos que eu, além de atender no hospital universitário.

-- Clarisse! Chegou toda metida do exterior, nem pra dar um telefonema né?

Abracei minha amiga com as saudades atestadas por minha cobrança.

-- Ai Lu, desculpe-me, mas eu hibernei desde que voltei da Europa, devia ter voltado antes, pra enfrentar esse “jet lag”. Mas os pilotos da companhia aérea cismaram de entrar em greve no dia do meu vôo...

-- Juntando minha sorte com a sua, não sei como continuamos vivas e amigas...

-- Deixa eu olhar pra você... Olha o que andam falando por aí é mesmo verdade viu...

-- O que estão falando por aí? – Quis saber, lógico!

-- Que você está “fechação”!

Clarisse não me virou pelas mangas da camisa, ela me fez rodopiar! Observou-me dos pés à cabeça e disparou:

-- Beatriz devia ter terminado a mais tempo com você! Isso lhe fez muito bem!

-- Ah para a palhaçada você viu!

-- O que foi? Ah já sei, você quer mais confete não é? Acho que te deixei tempo demais com o Ed! Você “aviadou”! Pois bem, você está como diria ele: ESCÂNDALO!

-- Ah sua palhaça! Para com isso. E você? Como foi com a francesa lá? Você estava toda animada...

-- Não me fale em francesa... Aquela vagabunda acabou com meus sonhos ambientados em Paris!

-- Nossa, foi tão ruim assim? Pensei que sua demora em voltar era por causa dela...

-- Ela atrasou minha volta sim, por que ela me roubou!

-- Mentira! – Surpreendi-me.

-- Ai Lu, não quero falar nisso, já sinto a aura da enxaqueca me cercar quando me lembro.

Levantei as mãos fazendo um gesto trivial calando-me.

-- Mas, tenho algumas coisas boas para contar, vou fazer uma reuniãozinha lá em casa no final de semana, assim conto pra todos de uma vez só... E você não tem a opção de não comparecer, tá me entendendo né?

Eu sabia que não teria alternativa. Queria evitar os olhares de piedade dos outros amigos menos chegados, evitei essas reuniões nos últimos meses, por que inevitavelmente aparecia sempre um afago no ombro acompanhado de: “Você merece alguém melhor”. Enfim, era hora de sair do casulo.

Quando sai da universidade, de dentro do carro vi a movimentação do trote dos calouros. Procurei Marcela naquela confusão, e qual não foi minha surpresa quando a vi sorrindo pra mim, acenando discretamente em meio a dezenas de estudantes pintados. Correspondi ao aceno, encantada com o jeito da menina. Putz Luiza! Que diabos você está fazendo?!

3. LIÇÃO Nº 1: DESAPEGA

Meu apartamento, meu quarto, virara um cenário nada agradável quando eu me via ali sozinha. Cada móvel, cada canto da casa me fazia lembrar Beatriz. Também pudera, eu ainda lutava para me desafazer das peças de decoração que compramos juntas... Abria meu próprio guarda-roupas e ainda tinha ali, uma peça de roupa, uma camisola, pares de brincos, um casaco... Vez por outra eu me pegava cheirando as roupas buscando qualquer resquício do perfume dela.

Patético! Minha geladeira virou outro ponto de tensão dentro da minha própria casa. Acostumara-me a manter os itens que agradavam Beatriz, cheia de exigências quanto a qualidade das frutas, eram muito poucas as que lhe apeteciam, sabor de sorvete, a marca de leite, do iogurte... Eu nem ao menos me lembrava dos meus próprios gostos, já era automático meu caminho pelos corredores do supermercado, sempre as escolhas que satisfaziam Beatriz.

Eu estava ali na minha própria casa, mas de minha ela tinha muito pouco. Foi quando me dei conta do papel ridículo que eu protagonizava. Já faziam três meses que meu namoro acabara e eu continuava a manter Beatriz na minha rotina, na minha casa, apegada a não sei exatamente o que. Como se não bastasse a piada que eu me transformara, o universo conspirava contra mim nessa comédia, pulando de canal em canal, eu vi uma propaganda cretina na TV, de algum site de compra e venda: “tá sobrando? Desapega, desapega...”

Dava pra acreditar? Até a TV me mandava mensagem! É doutora Luiza, sua situação está mesmo periclitante... Era a hora de exercitar o desapego. Peguei uma sacola qualquer, e fui jogando as peças de roupa de Beatriz, bijuterias, livros. Joguei fora sua escova de dentes, o shampoo que ela usava, se eu demorasse um pouco mais na minha psicose, acharia até fios do cabelo dela na minha escova de cabelo e ia querer jogar fora também... Mas, vai que num surto de raiva eu resolvesse fazer macumba contra ela, ainda me restaria os fios de cabelo dela, achei por bem, mantê-los ali...

Era preciso mais que isso. Minha casa precisava ser meu lugar de novo! Entreguei-me ao momento psicótico, mergulhei nele na verdade. Dessa vez, minha sessão de exorcismo ia contar com armamento pesado. Procurei na minha despensa meus aliados: martelo, tesoura, desinfetante, álcool... Sai quebrando pequenas esculturas, quadros, desinfetei o balcão da cozinha como se pudesse “desbeatrizar” as memórias que figuravam ela ali sentada, passei álcool na geladeira, jogando fora tudo que fizesse lembrar Beatriz. Uma senhora dose de loucura tomou conta de mim naquele dia.

Olhei ao meu redor e reconheci os efeitos do armamento pesado, cacos de cerâmica e vidro espalhados pelo chão, almofadas decorativas aos pedaços, as marcas na parede do quadro que não estava mais lá, e eu... Bem, eu estava descabelada, com grandes luvas de borracha nas mãos, segurando com uma mão um borrifador de desinfetante e na outra um martelo. Minha imagem no espelho da sala seria trágica se não fosse cômica. Parei por alguns segundos me encarando e pela primeira vez em meses caí no riso ao invés do pranto.

Para abrilhantar meu momento adorável psicose, a campainha tocou:

-- Lu, sou eu, abra essa porta, o que está acontecendo aí?

Reconheci a voz de Cris, outra das minhas melhores amigas, que eu afastei na minha fase de luto. Não deu tempo eu arrumar o cenário de guerra. Apesar do medo de assustar minha amiga, tive que abrir a porta. Exagerada como ela era, se eu demorasse a abrir ela poderia chamar a polícia para arrombar a porta.

-- Oi, tudo bem Cris?

-- Mas que porra é essa? Luiza! O que você aprontou?

Meu temor era justificável, Cris arregalou os olhos enquanto caminhava entre os cacos espalhados pelo chão, estava assombrada.

-- Sessão de descarrego! - Respondi retirando as luvas de borracha. - Vou abrir um vinho, me acompanha?

-- Luiza o que está acontecendo? Mal entrei no prédio, e o coitado do Raimundo me abordou agoniado porque os vizinhos estavam reclamando de um quebra-quebra vindo daqui! E eu encontro tudo destruído assim?!

Raimundo, era o porteiro do prédio. Cris já dividira apartamento comigo, era conhecida dele e de alguns vizinhos.

-- Xi! Eu joguei fora os vinhos, eram todos secos, como a Beatriz gostava! Você ainda tem o número daquela adega que entrega em domicílio? – Respondi fingindo naturalidade.

-- Luiza!

Cris entrava na cozinha, igualmente bagunçada. Continuava pasma naquele cenário. Se eu tinha algum referencial de sensatez, esse era a Cris. Éramos amigas desde a infância, nossas famílias eram amigas. Depois da faculdade, dividimos apartamentos por duas vezes, era uma grande companheira. Além de sensata e inteligente, era também, uma profissional exemplar, no entanto, no seu ramo, enfrentou muitos preconceitos pelo fato de ser mulher.

Engenharia civil era um segmento machista, e para uma mulher com trejeitos masculinos, a situação se complicava um pouco mais. Demorou a conseguir um bom emprego após a formatura, passamos muitos apertos financeiros juntas nesse período, tínhamos um pacto de não voltar a morar com nossos pais. Não se tratava de um capricho, nem tampouco nutríamos desavenças com eles, apenas concordamos que seria um retrocesso em nossa independência, e preferíamos evitar as constantes explicações sobre nossas escolhas, inclusive sobre nossa orientação sexual.

-- Ah Cris! Não precisa fazer drama! Eu só estava tendo um momento “OLX”, estou me desapegando, me livrando de tudo que tem de Beatriz na minha casa, isso, incluiu parte da minha decoração...

Vi o riso se fazendo na face da minha amiga e em segundos estávamos as duas gargalhando.

-- Cara, ainda bem que a Luiza que eu conheço está mostrando que ainda existe... Eu não aguentava mais seu momento Maria do Bairro...

Cris falou aliviada despertando meu riso.

-- Mas, me diz... Esse descarrego todo, foi mesmo por que?

-- Sei lá Cris! Eu estava me sentindo sufocada aqui, onde eu olhava, eu via a Beatriz! Só podia né? Ela continuava aqui... Aí eu vi uma propaganda da OLX, e achei que era hora de desapegar!

-- Bom, muito bom isso. Eu te pedi pra fazer isso uns dois meses atrás, mas, tudo bem, antes tarde do que nunca.

-- Cada coisa no seu tempo né Cris?

-- Tá bom... Eu não acho que aquela dali valha esse prejuízo todo que você promoveu nesse descarrego, mas se te ajuda a desapegar, que seja! Eu sugeri algo menos drástico, como doar as coisas, mas, você tem que fazer uma cena sempre né Maria do Bairro?

Gargalhamos juntas.

-- Para de enrolar e pede aí uns vinhos pra gente... Estou aqui pensando no que a coitada da Fátima vai pensar quando vier fazer a faxina amanhã... Ela vai dizer ao Raimundo, e logo eu estarei assustando as criancinhas no elevador.

Outra gargalhada ecoou na cozinha.

-- Ah para com essa coisa de mulherzinha... Vinho? Esse descarrego merece umas tequilas!

-- Ah pode ir parando... Ainda não estou pronta para tequila. E amanhã ainda tenho uma reunião com a “descarregada”.

-- Jura, cara? Reunião no sábado? Só sendo mesmo a Beatriz! – Cris bufou indignada.

-- Ela é assim, diz que não quer tirar os professores em hora de aula para participar de reuniões, o resultado é que sempre vão os mesmos gatos pingados para as reuniões.

-- Aproveite seu momento de rebeldia e não vá também! Troque de roupa e vamos beber umas, como nos velhos tempos!

-- Cris eu não posso! Tenho que ter o apoio dela, do departamento pra meu grupo de pesquisa, vou lançar o edital nas próximas semanas para bolsas de pesquisa, preciso de pelo menos mais dois professores para orientar e termos mais bolsas, enfim, não posso faltar reuniões nesse momento, até mesmo pra não dar o gostinho a ela... Ou pensarem que estou mal, que não consigo vê-la...

-- Aceito os primeiros argumentos, esses últimos aí não. Você não deve satisfações a ela, nem a ninguém naquela universidade, pelo menos não no que diz respeito a sua vida pessoal.

-- Eu sei, mas essa semana eu a evitei pra não ser queimada pela luz da felicidade dela! Hunf! – Resmunguei.

-- Você vai na festinha da Clarisse?

Cris perguntou fazendo cara de nojo, as duas não se bicavam. Não sei ao certo quando essa rusga das duas começou, eu as apresentei, não lembro de nada tão drástico que justifique essa animosidade selada. Clarisse definia como “antipatia gratuita”, e Cris era menos elegante: “nossos santos não se batem”.

-- E eu tenho opção? A Clarisse faz questão, será uma ofensa se eu não for. Ela te convidou também?

-- Ah ela me mandou uma mensagem ”in box” pelo Facebook, aqueles convites que só copia e cola para várias pessoas, tá ligada?

-- Mesmo assim foi um convite, e ela não chamou tanta gente assim Cris, para de implicância.

-- Claro que ela tinha que me chamar, pra esnobar a viagem dela pela Europa, se vangloriar pelos trabalhos que apresentou, da francesa lá que ela pegou...

-- Ai nada a ver! A Clarisse não é nenhuma esnobe deslumbrada. E ela nem tá nesse clima de vanglória não, a tal francesa era uma boa bisca pelo que entendi, parece até a roubou.

-- Mentira! Ah! Agora eu vou nessa festa! Quero saber esse babado aí!

-- Cris não seja desagradável! Ela nem me deu detalhes, ela não quer falar nisso!

A cara da Cris não me deixou segura, se eu tinha algum intuito de inventar uma desculpa para não ir à casa de Clarisse naquele sábado, agora eu tinha um motivo suficientemente justo para ir: evitar sapatadas entre as minhas amigas.

Mas, antes da festa, eu precisava enfrentar uma manhã inteira diante de Beatriz. Em nenhuma das minhas melhores perspectivas, aquela situação seria agradável. Desde nosso reencontro no primeiro dia de aula, evitei outros encontros, passando a maior parte do meu tempo nos intervalos, no departamento de medicina, ou no laboratório. Naquela semana, também não reencontrei Marcela, inexplicavelmente aquilo me incomodou, mas, não mais do que a apreensão pela tal reunião naquele sábado.

O sábado chegou e com ele um temporal desgraçado, daqueles que nenhum guarda-chuva dá conta de proteger aquela roupa engomadinha e arrumada que você escolheu para posar de mulher elegante, nem muito menos salva seu cabelo que você passou quase uma com o secador domando-o. E como se a desgraça fosse pouca, o guarda-chuva que eu tinha no carro, fora adquirido nesses camelôs oportunistas que ficam oferecendo a peça enquanto o semáforo está fechado, resultado: tão logo eu estacionei e abri o bendito, só metade das hastes funcionavam, e todo meu glamour de mulher fina e bem elegante se fora literalmente por água abaixo. Entrei na universidade com metade do guarda-chuva aberto, e meu corpo encharcado por inteiro.

Eu devia ter suspeitado que aquele era o prenúncio do que me aguardava naquela reunião. Entrei na sala reservada para a reunião, e alguns professores já estavam ali, inclusive Beatriz, e claro, todos mais secos do que eu. Fingi naturalidade até o momento que tentei fechar meu guarda-chuva do Paraguai, aí virou uma luta corporal, até a peça fajuta me vencer e eu atirá-lo no lixo, meio aberto e meio fechado, tudo isso com uma plateia atenta testemunhado meu nocaute, no meio dela, Beatriz, que não escondia o riso diante da minha típica habilidade em lidar com trapalhada as tarefas mais simples.
-- Lu, senta aqui perto de mim...

Ouvi uma voz doce e amiga que veio em meu socorro. Era Patrícia, professora de Bioquímica, uma das melhores amigas de Beatriz, desde que terminamos, não nos falamos mais. Sempre tivemos uma excelente relação, apesar dela ser hetero, entendia muito bem os pormenores de uma relação homoafetiva. Falei que ela veio em meu socorro não só porque eu estava perdida com a minha entrada na triunfal, mas também porque as roupas molhadas com o ar condicionado ligado, me deixaram além de tremendo de frio, em uma situação constrangedora com as roupas grudadas ao corpo.

-- Toma meu casaco, acho que você está precisando mais do que eu.

Patrícia disse, enquanto eu sorria amarelo, encarando Beatriz sem querer. Pois é, ali estava eu, olhando minha ex. Não podia negar, Beatriz era uma mulher bonita, nada de extraordinário, mas, sua beleza era inegável. Olhos claros, pele alva, nariz afilado, era magra, não tinha curvas avantajadas, aliás, ela sempre se queixava que tinha pouco peito, e pouca bunda, eu, como toda mulher apaixonada, nunca vi defeito nisso, agora, eu começava a querer enxerga-los, fazia parte do processo “desapega”: enumerar os defeitos da ex.

-- Acho que já esperamos demais, quarenta minutos de atraso, quem chegou não chega mais, e ainda tem essa chuva como desculpa para não vir.

Beatriz disse para dar início a reunião. Distribuiu a pauta, e logo começou a explaná-la. Na verdade essas reuniões serviam mesmo para uma grande disputa de egos entre os professores da casa, o maior ego de todos era justamente o da coordenadora, que se vangloriava dos seus artigos publicados, da sua influência junto à reitoria para conseguir benfeitorias para o curso, e logico, ela não poderia deixar de exercer seu papel de gestora, cobrando resultados especialmente nos avanços pedagógicos e em pesquisa.

Dessa vez, Beatriz não tinha mais a mim e meu grupo de pesquisa para pegar carona nas publicações, ao menos isso, eu teria o gosto de fazê-lo, para tanto, precisava de outro professor para o meu grupo de pesquisa, não aceitaria mais Beatriz atrelada a mim a ao meu trabalho.

-- Já que a professora citou a necessidade de intensificarmos as pesquisas e publicações, quero dizer que o GRUFARMA, estará lançando edital nas próximas semanas, e como muitos membros saíram, e identifiquei linhas de pesquisa diferentes entre os professores que estavam comigo, para esse ano, precisaremos de professores que tenham mais afinidade com a farmacologia e a clínica, se algum dos senhores tiver interesse, por favor, procure-me com a cópia comprovada do currículo lattes para viabilizarmos o cadastramento.

Falei com a certeza de que a notícia surpreenderia Beatriz. Sua contribuição no grupo de pesquisa era praticamente nula. Sua formação em pedagogia nada tinha com a linha de pesquisa em fármacos, seu mestrado em educação não ajudava no desenvolvimento das pesquisas, mas, era conveniente para ela estar no grupo que mais publicava na universidade, seu nome estava sempre nos artigos sem que ela fizesse nada. Notei o desconforto dela, se remexendo na cadeira quando outros professores se animavam em pedir esclarecimentos sobre os prazos.

-- Professora Luiza, que bom! Meu doutorado em bioprospecção molecular tem tudo a ver com essa linha de pesquisa, vou lhe procurar com certeza! Precisava mesmo me encaixar em algum grupo aqui. – Edgar comentou.

-- Já tenho dois professores do curso de medicina que também estão interessados, já fazem pesquisas de maneira independente, será um ganho se juntando a nós.

Conclui, e logo fui interrompida por Beatriz que repassou alguns informes encerrando a reunião rapidamente. Devolvi o casaco a Patrícia e quando caminhava em direção à porta para sair dali, Beatriz me chamou.

-- Professora Luiza, você tem um minuto, por favor?

O tom de Beatriz predizia o caráter da conversa. Patrícia fez uma careta qualquer para mim, e nos deixou a sós na sala.

-- Você pode me dizer que palhaçada foi essa? – Beatriz perguntou de braços cruzados.

-- Oi?

-- Como assim você mudou as regras para os orientadores do GRUFARMA, restringindo a linha de pesquisa? Foi de propósito para me excluir? Luiza você sabe que preciso pontuar para concluir meu doutorado! Você vai mesmo levar pro lado pessoal e me prejudicar justo na minha carreira?

-- Desculpe-me professora, mas, não estou entendendo do que a senhora está falando. – Abusei no tom sonso.

-- Para de palhaçada, estamos só nós duas aqui! Você sabe perfeitamente do que estou falando, você se quer me comunicou isso, deixou para falar diante de todos os professores do departamento, sabia que ia chover de gente interessada!

-- Ok Bia, eu disse que não estou entendendo, por que de fato não compreendo de onde você tirou a ideia de que preciso me reportar a você para falar do GRUFARMA. É um grupo de pesquisa devidamente cadastrado na CAPES, com o meu nome, eu só preciso me reportar à pró-reitoria de pós-graduação e pesquisa. Eu não mudei as normas, eu só quero que os professores que orientarão os alunos tenham mais afinidades com farmacologia e clínica, por que eu, sozinha, não posso dar conta de orientar todos os bolsistas.

-- E quanto a mim? Você fechou as portas para mim no grupo!

-- Procure outro grupo Bia, algum que se encaixe na sua linha de pesquisa. Qual é mesmo sua linha de pesquisa? – Ironizei.

-- Nunca pensei que você fosse tão pouco profissional, que decepção Luiza. Quanto rancor... Imaginei que você fosse mais madura! Está se vingando de mim por que me apaixonei por outra mulher?!

-- Bia eu admito qualquer coisa de você, até o par de chifres, afinal de contas, sempre foi seu grande amor, a Alicinha não é? – Fiz um cara de nojo – Mas, não admito ser questionada na minha ética profissional. Tomei uma atitude que vai beneficiar os alunos bolsistas, a pesquisa, e lógico, vai amenizar minha sobrecarga por que eu também preciso pensar no meu pós-doutorado.

-- Admita, Luiza você fez de propósito! Quis dar uma de superior com visual moderno, com uma repaginada pra virar a gostosona do pedaço, mas, no fundo está com recalque por causa da minha felicidade com outra pessoa!

Admito que ouvir da boca dela que eu era a gostosona do pedaço me deu um prazer indescritível, mas, as ofensas que se seguiram me trouxeram ao real teor daquela discussão.

-- Chega! Agora é você que está sendo impertinente! Eu não quero você no meu grupo, por que você simplesmente não faz nada nele! Procure outra idiota pra se escorar! Essa pesquisa é minha, a vida é minha, e você não faz mais parte nem de uma, nem de outra.

Nossos olhos se encontraram faiscando ira. A firmeza das minhas palavras parecem ter mexido não só com os brios da minha ex, mas também, despertou um olhar diferente sobre a mulher que ela deixara. Não estava ali diante dela, a Luiza compassiva e facilmente manipulável. E eu, estava presa aos olhos dela, num misto de saudade e revolta. Beatriz deu dois passos em minha direção, ficamos a uma distância mínima e incômoda, quando uma voz aguda ecoou na sala:

-- Bia, você ainda vai demo...

Alicinha, aquela imitação de “Backardigan” surgiu na porta e foi baixando o tom de voz ao notar minha presença.

-- Oi, Luiza. – Alicinha falou sem graça.

-- Oi. – Respondi seca,

-- Já terminei aqui, vamos.

O desconcerto de Beatriz era óbvio. Quanto a mim, isso é outro departamento... Estava tão confusa que não sabia ao certo se comemorava a rasteira que eu dei quase sem querer em Beatriz, ou se me martirizava por atestar que ela ainda mexia comigo. Preferi exercitar meu mantra:

-- Desapega, desapega, OLX!

Capítulo 4: Lição N.º 2: Ignore a felicidade dos outros

Se eu achava que estava progredindo no meu processo de superar Beatriz, naquela manhã, regredi uns dois passos. Passei o dia rememorando nossa discussão, o clima instalado entre nós e o “gran finale” com a chegada de Alicinha.

A mágoa foi tomando de novo aquele gosto amargo. Esse é um momento delicado, por que o título de “mal amada” e “mal comida” acertam em cheio a carapuça. A felicidade dos outros começa a te incomodar, quando falo de outros, estou falando até mesmo dos personagens de filmes e novelas. Amarguei meu retrocesso naquela tarde, e pensei, uma, duas, três vezes antes de simplesmente não aparecer na casa de Clarisse na reunião de amigos que ela promoveria logo mais.

Como se pressentisse minha atitude covarde, Ed me ligou no começo da noite:

-- Amapô, rola uma carona para a casa da Clarisse hoje? Meu bicha-móvel está em retiro espiritual com Pedrão.

-- O que?

-- Meu carro tá na oficina, mona, afff, tá lenta heim?

-- Ai Ed... Quer vir e pegar meu carro? Eu não estou afim de ir não.

-- Estou indo para sua casa, e a senhorita vai sim!

Ele desligou o telefone na minha cara, não me deu chances de argumentar. Em meia hora já estava no interfone anunciando sua chegada.

-- Vamos dar um jeito nessa cara de atriz pornô em fim de carreira! Vou tomar um banho e você faça o mesmo!

Ed disse se espalhando no sofá ao meu lado. Encarou a sala com cara de interrogação e disparou:

-- Racha, o que houve aqui? Algum ladrão de mau gosto fez uma limpa na sua sala?

-- Só resolvi tirar tudo que me lembrava a Beatriz nessa casa, resultado: sobrou quase nada...

-- Amapô... Que orgulho de você! Estou todo arrepiado, olha! Além de se livrar daquela cafonice que você decorava essa casa, ainda deu mais um passo pra afastar aquele vudu da sua vida!

Ed chamava assim as amigas mulheres: “Amapô”, não faço a menor ideia do significado, aliás, nesse universo gay, algumas expressões não fazem o menor sentido para mim, parece um código secreto entre eles, na tarefa de tentar entender você corre o risco de virar piada ou continuar com uma grande cara de “han?”, então, eu parei de desbravar esse dialeto há tempos.


-- Ai Ed, como você é falso! Você vivia elogiando as peças que Beatriz me dava, virava um verdadeiro crítico de arte, enchendo a bola sobre o bom gosto dela nas escolhas!

-- Luiza, isso se chama seleção natural, só sobrevive no meio social os mais fortes. Você não imagina o quanto fui forte pra segurar minha opinião sobre os quadros e peças sem qualquer sentido que ela fazia você comprar, pior, os que ela tinha no apartamento dela! Mas, você está evoluindo muito, parabéns.

-- Pois é, mas, vou te decepcionar. Depois dessa sessão de exorcismo, tive uma discussão com a Bia na universidade, encontrei aquela” Barbie falsificada” da Alicinha lá também, regredi uns três passos na minha reabilitação...

Resumi para Ed os acontecimentos daquele sábado, e surpreendentemente meu amigo ouviu sem suas tradicionais interrupções jocosas.

-- Sabe o que eu acho, Lu?

-- Em um momento raro, sim, quero saber o que você acha, Ed.

-- Essa sua aura nebulosa está afetando a minha cheia de gliter! Já estou meio abalado escutando você, cruz credo! Bicha você deu um “olé” naquela intojada e agora tá se queixando exatamente de que?

-- Ed, você não ouviu que quase aconteceu uma recaída? Eu desejei a Bia... Nós quase...

-- Ah! Parou!

Ed levantou num pulo, estalou os dedos em volta de mim e ordenou:

-- Sai desse corpo! Você disse bem: QUASE! Não aconteceu nada, exceto você tirar esse peso que você arrastava na sua pesquisa! Agora levante-se desse sofá, e vá tomar um banho, lave esse cabelo que está fedendo a cachorro molhado, e eu vou dar um jeito nele!

-- Ai Ed, deixa de exagero, já lavei hoje, mas é que levei chuva... E como assim você vai dar um jeito nele? Você sempre se recusa a isso fora do salão...

-- Tenho meus motivos né, mona? Passo o dia aguentando as peruas... Mas, hoje vou abrir uma exceção, acho que assim, ganho mais uma vaga no céu.

Ed fez pose de santo, desenhando com as mãos uma aureola sobre sua cabeça. Acabei de rendendo. Vinte minutos depois, Ed estava envolvido em uma toalha na altura no tórax, como se precisasse cobrir os seios, e outra toalha enrolando os cabelos. Não pude evitar o riso quando ele entrou no meu quarto.

-- Vamos lá, ficar lindas e poderosas!

Tenho que dar o braço a torcer: meu amigo entendia mesmo de dar poder a uma mulher. Gostei do resultado final, acabou por dar um up na autoestima. Seguimos para a casa de Clarisse, sair do meu casulo social, finalmente aconteceria.

Clarisse era uma excelente anfitriã, ao menos, eu sabia que comeria bem naquela noite. Minha apreensão se configurou em realidade, quando algumas amigas, na maioria, casais, puxaram assunto comigo:

-- Lu, ainda bem que você resolveu sair de casa, estávamos preocupadas com você, sumiu! Amiga, se isolar nunca é a solução. – Jane falou.

-- É, eu até disse: amorzinho vamos dar um pulo na casa da Lu, dar uma força pra ela. Mas, meu amorzinho resolveu me dar de presente uma viagem de lua-de-mel, e foi tudo muito corrido para ajeitar tudo. – Elisa completou.

Jane e Elisa eram namoradas, e viviam juntas acerca de um ano. Se eu já achava as duas um enjoo de tão melosas que eram uma com a outra, agora então, elas quase me provocam náuseas. As carícias e os apelidinhos doces me irritaram, mas disfarcei como minha polidez permitia:

-- Estou bem meninas, obrigada pela preocupação.

-- Ah que bom saber disso! Só quem perdeu foi a Bia, você é uma pessoa incrível, Lu. Né amoreco? – Jane disse abraçando Elisa.

-- Concordo plenamente! Lu, estamos tentando oficializar nossa união, queremos dar uma festa maravilhosa, adoraríamos que você fosse uma das nossas madrinhas, aceita?

O convite de Elisa me despertou uma revolta insana. Minha educação e bom senso quase me abandonaram, contei até dez mentalmente, enquanto o estômago embrulhava, beberiquei um gole de vinho e respondi:

-- Será uma honra. Com licença meninas, preciso falar com a Lúcia e o Rodrigo, que acabaram de chegar.

A chegada dos meus amigos foi uma desculpa perfeita para sair daquele mar de açúcar e felicidade.

-- Oi Lucinha, Oi Digo. – Cumprimentei dando dois beijinhos de comadre.

-- Luiza, que saudades de você! – Rodrigo abraçou-me – O Ed não exagerou, você está linda.

-- Está mesmo Lu, eu também estava com saudades. Essa história de manter amizade por whats up e facebook, quando moramos na mesma cidade não faz sentido! – Lúcia comentou.

-- Ah gente... Saudades de vocês também.

Comentei enquanto caminhávamos para a mesa de petiscos. Rodrigo era um dos melhores amigos de Ed, mas, era bem mais discreto do que meu amigo afetado, era advogado, tinha sua sexualidade assumida, era militante da causa gay. Lúcia era professora como eu, mas no ensino médio. Tivemos um affair na faculdade, apesar de cursarmos diferentes cursos, nos conhecemos em uma festinha de uma amiga em comum, e tivemos um rápido romance. Nem lembro ao certo porque não demos certo. Lúcia era inteligente, companhia bastante agradável... Ah! Lembrei, Lúcia fumava que nem uma chaminé, isso me dava nos nervos, tirava o gosto do beijo, e brigávamos por esse hábito dela, não suportava o cheiro que ficava na minha casa quando ela estava lá. Pode soar como uma desculpa esfarrapada, mas, na época foi o suficiente para terminarmos. Entre eu e o cigarro, ela escolheu o cigarro, fazer o que né?

-- Então Luiza, está tudo bem mesmo? – Rodrigo quis saber.

-- Acho que estou melhor, me sentindo como um membro do AA: um dia de cada vez. – Brinquei.

-- Exagerada como sempre... – Lúcia disse baixo – Mas, pensando bem, aquela Beatriz era mesmo uma droga, uma praga, você precisa mesmo se desintoxicar.

-- Olha quem fala em se desintoxicar... Você já deixou aquele vício horroroso de fumar? - Impliquei.

-- Estou parando... – Lúcia respondeu sem graça.

-- O que o amor não faz né, Luiza? Foi exigência do novo alvo da nossa amiga aqui. – Rodrigo interviu.

-- Sério? Quando eu te pedia isso, você me mandava à merda, agora, pra conquistar outra você está deixando de fumar finalmente? – Comentei um tanto amargurada.

-- Não é só por isso! Bicha fofoqueira! Está absorvendo as manias do Ed heim? – Lúcia encarou Rodrigo irritada. – Estou fazendo isso por minha saúde, eu estou ficando afônica constantemente depois das aulas, estou ficando velha, daqui a pouco as doenças aparecem, e tabagismo é fator de risco pra tudo!

-- É verdade. – Rodrigo concordou

-- O que é verdade? Que ela está ficando velha? – Continuei a implicar.

Gargalhamos, até Lúcia encher com outra dose minha taxa de amargura:

-- Estamos ficando velhos, todos. Mas, mesmo que não tivesse outro motivo, faria isso só para agradar minha florzinha de maracujá...

Fiz cara de nojo, foi inevitável. Só podia ser um complô do universo, todo mundo ao meu redor, estava irritantemente feliz e apaixonado. Aquilo me irritava de maneira insana. Tomei outra gole de vinho e me refugiei na minha amiga anfitriã, ao menos ela, eu sabia que estava sofrendo uma decepção amorosa como eu.

Para minha surpresa, nada agradável confesso, Clarisse estava mais avançada na reabilitação. Conversava intimamente com uma loira linda, e ao me ver foi se apressando em nos apresentar:

-- Lu! Vem cá, quero que você conheça a Maira. Ela é assistente social no hospital universitário. Maira, Luiza é professora na mesma universidade que eu.

Fui simpática, com muito custo é verdade. Mas, meu desconforto não permitiu que eu trocasse mais do que algumas palavras com a tal Maira. Onde estaria o Ed? Só me restava ele, já que a Cris não tinha dado as caras até aquela hora. Não encontrei o Ed, aquela atmosfera de arco-íris estava me incomodando o suficiente para fazer eu me arrepender de estar ali. Sorrateiramente, deixei a casa de Clarisse, mandei uma mensagem para Ed, avisando que estava indo embora.

Enquanto caminhava para o carro, ouvi a voz familiar:

-- Ei gata, aonde está indo com tanta pressa?

Era Cris, com as roupas um tanto quanto amarrotadas, encostada no seu carro.

-- Ai, você também?

-- Eu o que? – Cris disse se aproximando de mim.

-- Você também vai esnobar sua noite de sucesso de pegação? Está aí toda amarrotada, levou alguma pro abate dentro do carro mesmo não foi?

Meu tom irritado, amargurado, despertou estranhamento na minha amiga que franziu o cenho.

-- O que deu em você? Estou com as roupas amarrotadas, porque a caminho daqui tive que trocar o pneu do meu carro. Sujei a camisa, e acabei vestindo uma limpa que estava dentro do carro, mas, está amassada... Mas, se você pensou isso, todo mundo vai pensar também, prefiro que pensem isso do que outra coisa, vamos entrar?

-- Ah não Cris. Já estava me mandando, não tenho mais estômago para esse mundo cor de rosa que está aí dentro. Se você pensa que vai espezinhar a Clarisse pela francesa que a roubou, tá perdendo seu tempo, ela já está muito bem acompanhada hoje.

-- Você está nessa beca toda, e vai embora, se enfurnar de novo em casa? Não senhora! Se a casa da patricinha está insuportável, vamos pra outro lugar!

-- Apoiadérrima Cris! Vamos sair daqui! - Ed chegava arrumando a roupa.

-- Onde você estava bicha? – Perguntei curiosa.

-- Perdendo meu tempo... Estava na posição, prontinho para o abate, mas, o bofe piummm....

Ed fez um gesto com o dedo indicador, abaixando-o lentamente.

-- O cara brochou? Sério?

Cris perguntou antes de gargalhar.

-- Gente, saiam vocês, se eu for, vou acabar estragando a noite de vocês, não estou no clima não. A felicidade dos outros está me incomodando.

-- De boa Luiza, vamos levar esse recalque pra passear? Já tá na hora! – Cris disse passando o braço nos meus ombros.

-- Pense mais na sua felicidade, e menos na dos outros mona!

Com os argumentos dos meus amigos, aceitei o convite e seguimos para um barzinho que costumávamos frequentar, eu fazia isso com mais assiduidade antes de namorar Beatriz, meio que abandonei o hábito quando namoramos, ela não simpatizava com o lugar.

Reencontrar o “Parada” me fez lembrar muitos momentos bons, pareciam lembranças de outra pessoa, ou, a memória de um filme que eu tinha visto há muito tempo atrás. “Parada” foi inaugurado justamente após o movimento da “Parada do Orgulho Gay” da cidade, os donos eram um dos organizadores da parada, e viram uma oportunidade de negócio para esse público. Cris foi logo se animando pedindo uma rodada de tequila, eu recusei de pronto.

-- Olha eu sei no que isso vai dar, e gente, de boa, não dá ainda! Vou ficar na água tônica mesmo, ou no suquinho...

Falei empurrando o shot para o centro da mesa.

-- Luiza fala sério! Não vai dar é pra aguentar você odiando a felicidade alheia sóbria! – Cris disse indignada.

-- Cris, eu sei das minhas limitações, vocês sabem exatamente o que vai acontecer se eu beber, vou acabar naquele choro sem fim. Eu fico como motorista da rodada, táxi aqui sempre demora a chegar... Bebam por mim!

-- Você manda racha abusada!

Ed disse e sem cerimônia virou a dose dele e a minha em seguida. Fez uma careta, balançou a cabeça e disse:

-- Esqueci o brinde! Ow garçom outra rodada aqui!

Eu sabia como aquela noite seria, mas, a companhia dos meus amigos me bastava para amenizar a amargura que eu sentia, ao menos a felicidade deles não precisava ser ignorada para eu me sentir melhor.

CAPÍTULO 5: LIÇÃO N.º 3 – CONTINUE A NADAR, CONTINUE A NADAR

O dia seguinte à farra dos meus amigos trouxe um cenário bem familiar a mim: Ed dormindo no sofá da sala, roncando como um trator velho, e Cris jogada no sofá cama do meu escritório babando horrores no travesseiro. Sorri ao me lembrar das dezenas de histórias que aquela cena me trazia. Senti saudades de ressentir a ressaca moral de não saber ao certo o que tinha feito na noite anterior, aqueles dois, entre outros amigos, eram companheiros de boas farras, sabe como é, nenhuma grande uma história começa com: “Uma vez eu fui tomar leite com café na padaria e...”, geralmente começa com: “ Uma vez, eu tomei um porre daqueles...”.

Com um sorriso melancólico nos lábios, fiz as vezes de boa anfitriã e fui preparar um café-da-manhã para minhas visitas. Apesar de ser quase hora do almoço, eu sabia que ambos acordariam precisando de uma boa dose de glicose e carboidratos para combater o efeito das tequilas no “Parada”.

Cris foi a primeira a chegar na cozinha, indo direto para meu armário, em busca da minha caixinha de remédios.

-- Porra Luiza, cadê aquele remedinho milagroso?

-- Bom dia pra você também Cristiane Maria!

-- Ah vá pra pqp pow, além da ressaca ainda me vem com a merda do meu nome composto?

Sorri do mau humor da minha amiga, que como o Ed, odiava o tal nome completo. Entreguei o remédio que ela procurava, e de propósito dei um beijo estalado no seu ouvido.

-- Ah! Filha da mãe!

-- Você tá ficando velha sabia? Devia rever o quanto pode beber numa noite, seu fígado não é mais o mesmo, nem o coitado que tem a capacidade de se regenerar, aguenta tanto acetaldeído!

-- Não começa falando difícil, porque não diz só cachaça?! E nem bebi tanto...

-- Mais uma prova, de que você não aguenta mais tanto álcool como antes. Pow Cris, se cuide mais, você pagou mico ontem viu?

-- Você tá muito careta, isso sim! Aquele encosto da Beatriz te sugou as energias, nem parece a mesma Luiza que mergulhava em aventuras, era desencanada... Cara eu sinto falta sabia?

-- Cris, não coloca a culpa de tudo na Beatriz e no meu relacionamento com ela. Eu também fui feliz com ela. Aquela fase de aventuras, acho que passou, e você também precisa encarar isso... Cara, faz quanto tempo que você não se envolve seriamente com alguém?

-- Ah para com esse papo de relacionamento sério, deixa isso pros viciados em Facebook! Você fala como uma velha de cinquenta anos! Luiza, eu não estou falando de esperar amanhecer pra pegar o metrô porque torramos o dinheiro todo do táxi com bebida numa noite! Estou falando de estar aberta a conhecer pessoas, se divertir, beijar na boca!

-- Disso você entende bem... Você pelo menos sabe se aquela menina tinha mais de dezoito anos?

-- Que menina?

-- A que você catou ontem, Cris!

-- Eu catei alguém? Putz, nem lembro! Mas, se catei, era bonitinha?

-- Você não toma jeito... Era bonitinha, mas muito novinha, devia cheirar a leite “Ninho Crescimento”...

-- Do jeito que você exagera, a menina devia ter uns 23 anos, poxa, Lu, a gente só tem uns trinta e poucos... E você devia deixar de ser preconceito com gente mais nova, nem sempre elas são avoadas que não sabe o que querem.

-- Ah, não sei se tenho paciência pra esse povo não, a maioria dos meus alunos tem menos de 25 anos, não consigo me imaginar com o pessoal dessa idade.

-- Pois, devia! Ia dar uma sacodida nessa poeira morfada de gente velha que está te cobrindo! Luiza, você tem noção do quanto é atraente? Porra, o tanto de mulher que te deu mole ontem... Eu estava sóbria quando dispensei umas três por você, não ia queimar seu filme, por que, se alguma te abordasse ontem, você ia afastar com esse “fedum” de mulher mal amada...

-- Nenhuma mulher me deu mole ontem, deixa de ser mentirosa, até entendo que você queira levantar meu moral, mas, freia aí essas suas viagens viu.

-- Luiza, acorda! Tem muita mulher nesse mundo! E você pode escolher a que quiser!

Ed entrou na cozinha com a cara amassada, devorando uma garrafa de água num gole só e depois disparou:

-- Vocês sapas já começam o dia com uma DR né? Nunca vi gostar tanto de falar como vocês! Credo!

-- Que mané DR, bicha! Estou tentando trazer a nossa amiga aqui de volta à vida, e você deveria estar me ajudando nisso...

-- Ah mona, eu tenho muitos talentos, mas o de ressurreição dos mortos não desenvolvi ainda não...

Os dois riram enquanto eu mostrava a língua pra eles. Servi o café, enquanto eu reconstituía a memória dos meus amigos, já que as lembranças reais estavam confusas, os dois enfiaram o pé na jaca legal. Passaram o resto do domingo comigo, no final da tarde, ainda me arrastaram para uma barraca na praia onde acontecia uma tradicional roda de samba.

Só mesmo aqueles dois para me fazer enfrentar tanta felicidade junta. Peguei uma água de coco e me encostei em uma mureta mais afastada da confusão, quando avistei uma menina linda, com shortinho minúsculo estampado, com pernas lindas, uma brancura viçosa, lisas, usava apenas a parte de cima do biquíni, seios pequenos, mas empinados, e os cabelos longos, negros, brilhosos. Os óculos de sol na cabeça seguravam as mechas que o vento espalhava, era ela: Marcela.

Ela estava no meio de amigos, alguns eu reconhecia da faculdade, eram meus alunos e ex-alunos. Mas, meus olhos só se fixavam em Marcela. Meu Deus, o que ela tinha afinal que tanto me prendia a atenção? Era linda, claro! No entanto, tinha algo a mais que me chamava a atenção nela. Cada gesto dela tinha uma conotação especial para mim: o jeito de passar as mãos pelos cabelos, a forma como mexia no canudinho da bebida que segurava, o sorriso... Ah! O sorriso! Era perfeito! Não só pela boca rosada e dentes perfeitos, mas, principalmente pela energia leve que ele transmitia.

Eu precisava para de olhar pra ela, mas não conseguia. Involuntariamente, eu desejava que meu olhar tivesse o poder de fazer com que ela me visse ali. Não sei se minha mente tinha esse poder, mas o fato foi que Marcela me viu, e outra vez sorriu, minhas pernas estremeceram. Porra Luiza, o que é isso? Eu me censurava mentalmente, e a auto censura só aumentava, à medida em que meu coração acelerava vendo Marcela caminhar em minha direção.

-- Professora! Que surpresa encontrar a senhora aqui, e assim.

-- Olá, Marcela. Assim? Assim como? Não entendi.


A menina ruborizou. E eu me derreti. Aquelas bochechas lindas, ficavam ainda mais fofas quando rosadas pela timidez.

-- Quis dizer assim, descontraída. Sempre tão séria de jaleco...

Marcela tentou emendar, mas notei ela olhar minhas pernas expostas pelo vestido leve, e de repente, os olhos dela pararam no meu decote. Foi a minha vez de ruborizar.

-- Ah sim... Acho que se eu viesse de jaleco pra cá, certamente iam achar que eu era a nova pipoqueira do calçadão né?

Ela sorriu, e eu fiquei ainda mais encantada com aquele sorriso tão perto de mim.

-- Nunca vi a senhora por aqui.

-- Faz um tempo que não venho, mas, já fui frequentadora assídua.

-- Gosta de samba?

-- Como diria O Caymmi: “quem não gosta de samba, bom sujeito não é”.

-- “É ruim da cabeça, ou doente do pé” – Marcela completou a letra da música.

-- Isso mesmo! Mas, você não é muito nova pra conhecer “o samba da minha terra”?

-- Ah professora, que decepção! A senhora acha que o pessoal da minha idade só curte pancadão?

-- Desculpe-me, não quis ofender, acho que é mesmo preconceito meu. – Respondi desconcertada.

-- Música boa não tem idade professora, meu pai sempre diz isso.

-- Seu pai foi muito feliz na afirmação dele.

Marcela riu e eu não entendi o porquê quando ela balançou a cabeça negativamente.

-- A senhora fala sempre assim? Como se estivesse em sala de aula?

Fiquei tímida, eu estava na praia, numa roda de samba, e mesmo assim não conseguia sair da pose de professora, era automática a escolha do meu vocabulário quando estava com um aluno, e com Marcela não era diferente.

-- Hábito, estou sendo chata não é? Tediosa como farmaco e metodologia?

-- Quem disse que acho fármaco e metodologia chatos?

-- Se você não acha, perdoe-me o trocadilho, então você é um achado! Por que até hoje não encontrei nenhum aluno que não achasse...

-- Olha aí, de novo em sala de aula... Trocadilho... – Marcela deixou outro sorriso escapar – Mas, a senhora está certa, sou mesmo um achado!

-- Olha aí a modéstia aparecendo... – Brinquei.

-- Ué, sou um achado, eu me acho mesmo! – Marcela riu – E professora, só pra senhora não ficar pensando que foi muito preconceituosa com o meu gosto musical... Eu também adoro um pancadão!

Ela se afastou depois de me dar outro sorriso estonteante, caminhando de costas se despediu:

-- Até amanhã professora... Espero ver a senhora quebrando ali no meio da roda qualquer dia desses...


Eu não sabia se estava me perdendo no sorriso de Marcela, ou me imaginando quebrando no samba diante dos olhos dela, o fato foi que, as palavras me faltaram, só acenei, meio abobalhada reconheço, quando vi Cris se aproximando.

-- Quem é a bonitinha?

-- Cristiane Maria!

-- Nossa, quando você me chama assim a porra ficou mesmo séria! Qual foi meu delito dessa vez?

-- A bonitinha, é minha aluna, respeito, por favor!

-- Calma! Pra que tanta agressividade! Se eu não te conhecesse diria que é ciúmes...

-- Vá se ferrar Cris!

-- Eu te mandaria junto... Mas, acho que não vai precisar, ferraram com sua tarde e nosso restinho de domingo...

Cris disse apontando com o queixo para os degraus que davam acesso à barraca: Beatriz chegava com Alicinha e outros amigos.

-- Ah, tá de brincadeira né?

Cris nunca esteve tão certa. O resto do meu domingo estava ferrado. Ed que estava com outros amigos ao ver as duas logo me procurou com os olhos e se juntou a mim e Cris.

-- Lu, segura a onda, não vai o gostinho a essa vaca profana e ficar com essa carinha de yorkshire pelos cantos... – Ed me exortou.

-- Ed eu acho que o papel de vaca está mais pra mim do que pra ela... Afinal, quem tem os chifres?

Cris segurou o riso por segundos, mas ao encarar o Ed, que não teve argumentos para retrucar meu comentário, ela não se segurou, e logo a gargalhada escandalosa do meu amigo contaminou nós duas. Tomei a lata de cerveja da mão da Cris, e virei todo conteúdo de uma vez só, depois de conseguirmos controlar o riso.

-- Isso aí! Vamos pegar outra? – Cris se animou.

-- Não Cris. Só bebi pra ter coragem de sair daqui, mas, vou embora, não tenho estômago pra ver essas duas não.

-- Ah Lu! – Ed protestou – Você já vai? Poxa, deixa esse casal de urucubaca se afundar na areia, vamos curtir!

Olhei para a direção do casal feliz e percebi que elas cochicharam algo, e viraram de costas. Cris notou o mesmo movimento.

-- Putz, que palhaças! Você viu o mesmo que eu?

-- Vi sim, amiga, acha que eu preciso aguentar isso?

-- Como diria uma filósofa do nosso tempo moderno: “se não quiser me olhar, vira de costas”. – Cris brincou.

-- Não me conformo, Luiza, esse traste não odeia samba? – Ed perguntou indignado.

-- Vai ver que a Alicinha gosta – Fiz cara de nojo.

-- Ok, eu te acompanho Luiza, você não merece mesmo testemunhar essa palhaçada. – Cris disse.

-- Não, fiquem aí, ainda tem muita festa, façam o favor de devolver essa oferenda aí pro mar? – Brinquei apontando o casal com os olhos.

-- Pode deixar! Vou encomendar a farofa ali na barraca, e desfazer esse trabalho que fizeram pra você, amiga! – Ed disse me abraçando. – Eu vou ficar Cris, faz tempo que não vejo os meninos.

Ed disse se referindo aos amigos dele.

-- Tem certeza que vai ficar bem? – Cris me perguntou compassiva.

-- Claro! Vou descansar, amanhã tenho oito aulas pra ministrar, estou bem, podem ficar tranquilos. Amo vocês.

Despedi-me dos meus amigos e saí em direção ao meu carro, estacionado bem próximo de onde eu estava. Dirigi lentamente, e me dividia entre a vontade de rir com a atitude infantil de Bia e Alicinha na praia, e o sentimento denso de revolta com a humilhação que era pra mim, as duas juntas esnobando seu namoro resultado da traição que fui vítima. O semáforo fechou e avistei no ponto de ônibus, a visão mais linda dos meus últimos dias: Marcela.

Sorri, e rapidamente meu sorriso se desfez quando notei ela segurando uma outra menina pela cintura. Meu momento decepção foi interrompido por buzinas impacientes atrás de mim, o sinal ficou verde, segui devagar, e não pude evitar continuar olhando para Marcela e a outra garota, logo vi a acompanhante da minha aluna sentar-se no banco e vomitar ali mesmo, pensei sozinha: “Ufa, ela só estava segurando uma amiga bêbada... Han? Como assim Luiza?!”.

Parei o carro logo à frente da parada, liguei o pisca alerta e fui ao socorro de Marcela e a amiga.

-- Marcela? Está precisando de ajuda?

Meu Deus como ela conseguia sorrir tão lindamente, mesmo tão perto de uma poça de vômito?! Marcela me sorriu com os lábios e com os olhos, se surpreendendo com minha chegada.

-- Professora, acho que a senhora acabou de ser elevada a categoria de anjo...

-- Que é isso menina?! Diga-me, o que está acontecendo?

-- Não me chama de menina professora...

-- Mas... Você, é...– Gaguejei.

Eu estava pronta para dizer: “não é isso que você é?”, me contive. Marcela me interrompeu respondendo:

-- Minha amiga aqui bebeu demais depois de tomar um toco de um mané, perdemos nossa carona, e estava indo deixa-la em casa...

-- Você ia deixa-la em casa como?

-- Estávamos esperando um táxi passar, mas a bonita aqui, vomitou quando o taxista parou, o cara se mandou, então, só me restou a opção do ônibus...

-- Marcela, como você pretendia arrastar sua amiga?

Apontei para a menina que já se recostava no painel do ponto de ônibus, quase apagada.

-- Ai professora, a senhora adora me desafiar com perguntas difíceis né? Não sai da sala de aula...Porra Jéssica você também só me ferra! Tinha que dar uma de manguaceira justo quando a gente tá de carona? Opa... Desculpa professora...

-- Quem tá na sala de aula agora? – Impliquei – Relaxa Marcela, e me ajude a levar sua amiga até meu carro que está logo ali, vou deixar vocês.

-- Professora, mas é muito contramão pra senhora, agora estou envergonhada...

-- Como você sabe que é contramão? Você nem sabe onde moro!

Marcela sorriu sem graça, demonstrando seu constrangimento.

-- Vamos, antes que sua amiga caia no próprio vômito...

Marcela acenou em acordo. Levamos Jéssica até meu carro, abri a porta traseira, e a garota praticamente desmaiou no banco, não consegui evitar rir ao perceber a pouca habilidade de Marcela em acomodar a amiga, em meio a xingamentos e muito esforço, evitou que Jéssica se espatifasse no piso do carro.

-- Então, onde deixo vocês?

Perguntei depois de entrarmos no carro. Alguma coisa inexplicável prendia meu olhar aos gestos, ao brilho daquela menina, e ali, naquele espaço reduzido no interior do veículo, meu olfato ajudou a compor meu encantamento por ela. Aquela fragrância não provinha de um simples perfume vendido em larga escala, emanava dela, tinha cheiro de vivacidade, de luz, ah! Que devaneio Doutora Luiza! Ela é sua aluna!

-- Estou tão constrangida professora... Dar esse trabalho todo...

-- Não é trabalho algum, não estou carregando vocês nos braços, carros foram feitos para isso mesmo... – Falei tentando deixar Marcela mais à vontade.

-- Carros foram feitos para transportar mulher bêbada? – Marcela retrucou em tom jocoso, olhando para Jéssica no banco traseiro.

-- Ah! Acho que alguém pensou nisso também quando construiu carros... Ou pelo menos, deveria pensar! – Falei conferindo o estado da outra pelo retrovisor.

-- Se pensaram, deviam ter incluído um cinto de segurança que se ajustasse a mulheres deitadas... – Marcela disse se virando no banco, tentando empurrar Jéssica que escorregava.

-- É verdade, bem pensado. Sabia que é assim que nasce as grandes invenções? Toda pesquisa surge a partir da observação de um fenômeno...

-- E voltamos à sala de aula... – Marcela murmurou.

-- Acho que a metodologia já está no meu DNA, devo ser muito chata não é mesmo? – Perguntei desconcertada.

-- De forma alguma professora... Já disse, adoro metodologia! Tanto que já estou aqui pensando em criarmos esse cinto de segurança, patentearmos e vendermos a indústria automobilística, ficaríamos ricas e famosas!

Sorri largo, acenei em acordo. E quase me derreto ao ver de relance o sorriso hipnotizador daquela menina.

-- Oras, vejo uma pesquisadora nata ao meu lado! Mas, eu entendi direito? Você falou no plural? Está dividindo sua ideia, sua invenção, comigo?

-- Acho justo, já que tive ideia em uma propriedade sua...

-- Uma pesquisadora nata e ética, realmente você é um achado!

-- Vou aceitar como elogio, e como uma chance para ingressar no seu grupo de pesquisa. – Marcela comentou tímida.

-- Sala de aula?

Rimos, enfim, Marcela parecia relaxar do constrangimento que ela julgava estar protagonizando.

-- Marcela, preciso mesmo saber que direção seguir, nenhum método científico me ensinou ainda a ler a mente das pessoas... – Brinquei.

-- Ainda bem... – Ela murmurou.

-- Oi?

-- Professora, a senhora já aterroriza demais os alunos, imagine se lesse nossa mente...

-- Sério? Sou aterrorizante para você?

Não escondi o tom intrigado, nem tampouco escondi meu incômodo. Marcela respondeu enigmática:

-- Possivelmente... Dobre à esquerda na próxima rua.

A resposta de Marcela, soou para mim como um sim à minha pergunta. Não sei descrever a sensação que experimentei, talvez, insatisfação sirva para definir o que me fez ficar calada o resto do trajeto, me detive em seguir as orientações dela para chegarmos ao destino, um prédio bem localizado na zona leste, próximo da universidade.

-- Chegamos. Muito obrigada professora, não sei o que faria sem a senhora hoje.

-- Por nada. Mas, ainda não me agradeça, receio que você ainda precise de minha ajuda para rebocar sua amiga, acho que ela não está com cara de quem vai colaborar conosco não...

Arranquei um sorriso de Marcela. Se eu estava insatisfeita, aquela risada me trouxe a satisfação de volta, como mágica! Eu com toda minha ciência e método, simplifiquei assim o que aquela menina fazia comigo: mágica! Ou quem sabe fosse algum desequilíbrio hormonal... Tinha que ter uma explicação! Lembrei-me de uma palestra que assisti em um congresso em Toronto no qual o médico afirmava: “as mulheres se comunicam hormonalmente”, pois bem, devia ser uma linguagem nova pra mim, com certeza tinha uma causa fisiológica, me recusava a estar tão abobalhada diante de uma aluna.

-- Cara a Jéssica vai me pagar caro por essa... – Marcela resmungou desafivelando o cinto.

-- Ela é minha aluna?

-- Sim, em farmacologia, e já foi sua aluna em metodologia também.

-- Então, a narrativa do meu ato angelical do dia na sua versão, vai ser um castigo suficiente pra ela me vendo o semestre todo, não acha?

-- A senhora tem razão, de novo!

Marcela gargalhou, como se realizasse na mente a reação da amiga quando voltasse à sobriedade e soubesse que a professora doutora Luiza Antero de Carvalho a resgatara de uma poça de vômito.

Juntas, conseguimos tirar Jéssica do carro, mas, não avançamos muito para desloca-la. O porteiro do prédio, veio em nosso auxílio, e carregou a moça até o elevador, outra vez, eu e Marcela sustentamos Jéssica. À porta do apartamento, ficou a meu cargo, segurar a aluna alcoolizada, enquanto a outra buscava a chave na bolsa.

Acomodamos Jéssica no sofá mesmo. Dei uma olhada em volta enquanto Marcela se retirou, era um apartamento simples, funcional, diria até que não condizia com o apartamento de estudantes. Marcela voltou em pouco tempo com um cobertor para a amiga, fiquei observando o cuidado dela com a menina desacordada, retirando as sandálias, posicionando o travesseiro e cobrindo-a.

-- Bem, acho que meu trabalho já está concluído. Estão entregues, seguras em casa, as duas.

Disse disfarçando meu olhar encantado para a menina.

-- Professora, eu não tenho palavras para agradecer, a senhora foi um anjo hoje...

-- Ei, para com isso, assim você compromete minha fama de carrasca!

Disse descontraída, recebendo aquele belo sorriso em resposta.

-- Então vou guardar segredo sobre sua face de Madre Tereza, ok?

Balancei a cabeça positivamente e caminhei em direção à porta. Marcela me acompanhou, tão de perto que fez meu coração acelerar. Em uma fração de segundos tentei me situar no meu ciclo menstrual, tantas alterações assim diante de uma menina não podia ter outra explicação que não fosse o aumento dos níveis dos hormônios sexuais... Francamente Luiza, só isso mesmo explicaria? Aquela menina linda, encantadora, não seria capaz de despertar o seu desejo?

Minha batalha mental confundiu até meus passos, esbarrei na poltrona, e por pouco meu queixo não chegou à porta primeiro do que o resto do meu corpo.

-- Professora? Está tudo bem?

A voz de Marcela tão próxima a mim, seu leve toque na minha cintura despertou uma gagueira imprópria para alguém com minha titulação acadêmica.

-- Tá, tá, cla.. Claro, por por que não estaria?

Marcela sorriu com o canto dos lábios. Abri a porta violentamente, com uma força desproporcional fazendo com que acertasse minha testa com a mesma violência que impus. Se eu ficasse mais tempo ali, os acidentes teriam uma intensidade catastrófica, precisava me afastar, antes que denunciasse minha inquietude constrangedora com a proximidade de Marcela.

Despedi-me rapidamente passando a mão na testa, certa que ela estava marcada com a “portada”. Mal deu tempo Marcela agradecer pela décima vez, e eu já estava dentro do elevador, me refazendo daquela confusa e inesperada reação diante de uma aluna.

Cheguei em casa exasperada, e na porta do prédio, encontrei Cris. Estava tão envolvida na situação com Marcela que numa atitude incomum, esqueci-me do celular no carro enquanto subi no prédio dela, e nem ao menos lembrei-me de busca-lo quando retornei, se o fizesse, teria visto as inúmeras chamadas perdidas da minha amiga, além das mensagens no What’s up.

-- Luiza! Sua louca! Onde você estava? Pra que se tem a porra de um celular se não atende quando a gente liga, caralho!

-- Ei! Menos aí no xilique! Segura a onda, Cris!

-- Cara, eu já estava indo procurar você nos hospitais!

-- Posso saber o motivo dessa agonia toda? Quem morreu? Ou melhor, quem você matou?!

-- Ninguém, ainda!

-- Cris, vai entrando, vou estacionar... Você está me preocupando.

Conhecia minha amiga, notícia boa não viria... Mal entramos no meu apartamento e Cris disparou:

-- Antes de te dizer qualquer coisa, vou logo te adiantando: eu topo!

-- Oi?! Você topa? Topa o que?!

-- Topo o que você decidir! Dar uma surra, atropelar, envenenar aquelas duas! O que você preferir!

-- Cris, o que foi que você bebeu? Que pensamento psicopata é esse? De quem você tá falando ow doida?!

-- A Bia e aquele aprendiz de “teletubie” que ela arranjou...

Não consegui segurar o riso, relembrando os personagens infantis ridículos que Cris comparou Alicinha.

-- Cris, desembucha vai!

-- Eu ouvi lá na barraca que elas ficaram noivas, vão dar um festa aí por esses dias pra comemorar...

Fiquei catatônica por segundos. Tempo suficiente para que um filme fosse rebobinado em minha mente... Estou mesmo ficando velha, até minha mente refaz minha vida com um mecanismo que ninguém usa mais... Quem ainda assiste filme em fita que precisa ser rebobinada? Pois bem, recompondo meu pensamento, vi as imagens em 3D se sobreporem em cascata à minha frente, desconexas, uma miscelânea dos momentos de paixão, afeto, amor com as brigas, os desgastes, as perdas, a traição.

A sequência das imagens precedeu as muitas perguntas que ecoavam na minha cabeça: “Já?” “Mas, e as prioridades dela, não estavam na vida profissional?” “O que eu perdi?”. Beatriz sempre repetia que em primeiro lugar estava a vida profissional dela, eu já estava aspirando meu pós-doutorado, minha ascensão funcional na universidade beirava o ápice da minha carreira, enquanto ela só conseguira ingressar no doutorado às minhas custas, uma vez que a indicação para o orientador foi minha, aliás, foi praticamente um favor, que um colega me concedera já que Beatriz não tinha uma linha de pesquisa voltada para as ciências da saúde especificamente. Reiterava sobre a intenção de formamos família, mas, a longo prazo, e agora, com meses, ela já assumira um noivado com Alicinha? Era humilhante para mim, Cris tinha razão pela revolta.

-- Luiza! Fala comigo! Você tá branca que nem papel!

O berro de Cris me arrancou daquele mundo de indagações.

-- Cris, tem certeza disso? Não era uma brincadeira, sei lá...

-- Lu, tenho certeza sim. Não foi brincadeira, ouvi o Eduardo e o Bruno falando, aqueles que você considerava tanto como amigos, e... Eu sinto muito. Na verdade nem sinto muito, eu tô é muito puta da vida com aquelas intojadas, isso sim!

-- Cris, eles sempre foram amigos da Bia, se tornaram meus também por consequência... Agora, se você não se importa... Eu vou tomar um banho e deitar...

-- Claro que eu me importo! Não vou te deixar sozinha, vamos fazer duas bonecas de pano e espetar com agulha a noite toda pensando naquelas duas!

-- Cris, vudu não vai funcionar, nós já tentamos isso...

-- É verdade, tentamos. Não importa, fico aqui te fazendo companhia...

-- Obrigada amiga. Mas, eu preciso ficar sozinha.

-- Ah não! Sei muito bem o que você vai fazer... Não vou não!

-- Cris eu estou bem... – Uma lágrima percorreu minha face negando minha afirmativa – Vou ficar bem. Corrigi-me.

-- Cara, eu vou ficar aqui, nem que seja pra amaldiçoar aquelas duas, mas, fico aqui!

Toda boa vontade da minha amiga em ficar e me fazer companhia naquela noite, se rendeu ao cansaço. Quando sai do banho, depois de amargar um choro silencioso e sentido, encontrei Cris deitada em minha cama, em sono profundo, a TV transmitia um desenho animado qualquer, nem dei atenção.

Fiquei ali, olhando para a noite através da janela do meu quarto. Sucumbi a notícia que minha amiga me trouxe. Se há uma hora atrás eu me julgava como quem caminhava para voltar à vida, naquela noite percebi o quão frágil era meu progresso. Chorei na companhia da lua tímida. O sal que eu sentia nos meus lábios me fez sentir vergonha e pena de mim mesma. Como eu ainda conseguia me magoar daquela forma por causa de Beatriz? Ah Luiza! Você não aprende... Censurei-me.

Na gaveta do criado mudo, meu refúgio, a tarja preta dos meus ansiolíticos foi meu alívio. Rivotril seu lindo, vou lhe usar... Deitei-me e comecei a prestar atenção no desenho animado que passava: Procurando Nemo. Eis o ápice da minha ridícula dor de amor: ouvir conselhos de um peixe azul com amnésia!

-- “Continue a nadar, continue a nadar, nadar, nadar, pra achar a solução, continue a nadar...”

Dory, a companheira de Nemo cantava. E eu, achando que era uma conspiração do universo me enviando mensagens positivas... Mas na verdade o que eu desejava, era ter aquela memória da Dory, e esquecer o quanto Beatriz ainda me fazia sentir e sofrer.

CAPÍTULO 6: LIÇÃO N.º 4 –RIA DAS SUAS DESGRAÇAS

Meu amigo rivotril me deu o mínimo de sono para que eu não virasse a mais nova figurante de “The Walking Dad”, mas os sinais da repercussão da notícia que Cris me trouxe na noite anterior, era visível no meu rosto.

-- Pow, Lu me desculpa, eu fiquei pra te dar uma força e capotei... Foi mal. Como você está amiga?

Cris me perguntou se sentando na cama, a essa altura, eu já estava pronta para sair.

-- Sobrevivi à noite... Estou de saída Cris. Deixei café pronto e tem pão de queijo no forno se você quiser... E... Obrigada pela força.

-- Espera, Lu! Não queria dizer isso assim, mas não tenho tempo pra procurar meias palavras... Amiga, você está com uma cara péssima!

-- Ah! Valeu, essa força eu estava mesmo precisando!

-- Luiza, você não acha melhor eu apertar o alarme de incêndio? Ou seja, chamar o Ed pra te socorrer?

-- Caraca! Você está mesmo tentando levantar meu moral?

-- Desculpa, só não quero que a Beatriz tenha o gostinho de ver seu abalo, você vai encontrá-la hoje não é?

Suspirei alto e acenei em acordo.

-- Você sabe ser mulherzinha vai... Dá um reforço aí nessa maquiagem, semana passada você chegou toda trabalhada no poder e elegância, vai chegar uma semana depois com essa cara de tomate em fim de feira?

-- Putz, você está afiada hoje heim? Tem mais algum adjetivo motivador pra mim?

Cris esfregou os olhos, sorriu e respondeu fazendo careta:

-- Pior que não...

Empurrou-me até o guarda-roupas, na porta que abrigava um espelho e acrescentou:

-- Dá uma caprichada, a Bia não vale essa carinha de tristeza e essas olheiras de panda nesse rosto tão lindo.

Depois de seguir os conselhos da minha amiga, segui para a universidade. Obrigatoriamente eu teria que enfrentar Beatriz na coordenação de Farmácia, uma vez que eu teria os primeiros horários naquele curso. Uma das minhas principais qualidades, naquela manhã agiu contra mim. Minha transparência denunciou o que o super corretivo importado disfarçava. Patrícia se aproximou discretamente, enquanto preparávamos um café na bancada:

-- Acho que você já ficou sabendo né? Desculpa Lu, é que você não consegue esconder as coisas...

-- Eu tenho esse defeito horroroso mesmo... Fiquei sabendo sim, se você está se referindo ao noivado da sua amiga.

-- Lu, nem sei o que te dizer, me pegou de surpresa...

-- Patrícia, você não tem que me dizer nada... Agora vou me apressar porque não quero encontrá-la...

Minhas falas tem essa capacidade de atrair justamente o que não desejo, mal conclui minha sentença, e Beatriz adentrava na sala dos professores. Queimei a língua com o café quente, entornando o liquido como quem vira uma dose de tequila. Qual protagonista de uma comédia pastelão fiquei ali tentando soprar minha própria língua, intercalando com a necessidade de mantê-la dentro da boca para não me tornar a versão feminina do Mr. Bean.

-- Bom dia professora Luiza. – A própria Beatriz se dirigiu a mim.

-- Bom dia “porofesssora Beatiriz” - respondi com a língua presa.

Patrícia baixou a cabeça para que seu riso não fosse visto. Beatriz franziu o cenho, mas, manteve a postura sisuda.

-- Sua agenda hoje tem uma brecha para uma reunião rápida comigo? – Beatriz perguntou em tom formal.

-- “Esstarei no laboratolio no fim da tarde”.

-- Tudo bem procuro você lá.

Beatriz se afastou, acho, para meu bem, que ela não me viu com a língua pra fora, abanando com as duas mãos, como se isso fosse minimizar o ardor que eu sentia... Patrícia continuou a rir.

-- Luiza, você é uma figura... Como você consegue isso?

-- Paty você acha mesmo que planejo essas coisas?

-- Elas parecem ser ensaiadas Lu... – Patrícia ironizou.

-- Ensaiadas para eu pagar mico né?

Ainda sacudia minha mão e soprava minha própria língua quando saí da sala dos professores, e me dirigi até a sala de aula. Demorou um pouco até eu poder ter de novo o domínio sobre minha língua dormente.

Os últimos horários me reservavam o reencontro com Marcela. Jéssica, certamente pela embriaguez do dia anterior faltaria à minha aula, se não fosse pela ressaca, seria pela vergonha de me reencontrar tão cedo.

Para minha surpresa, Jessica estava lá, ao lado de Marcela em uma das primeiras filas, praticamente afundada na cadeira, tentando esconder o rosto com um caderno. Marcela, linda, como sempre, naquele dia, o sorriso arrebatador dela, estava amolecado, denunciando sua culpa pela presença da amiga ali, se divertia com o constrangimento de Jessica, inusitadamente, correspondi ao sorriso de Marcela, deixando Jéssica ainda mais tímida.

Rapidamente voltei à minha postura, e dei início à aula. Experimentei um sentimento incipiente de culpa, pela vontade de prender meu olhar na direção de Marcela. O magnetismo que ela exercia sobre mim começava a mexer comigo, ainda de maneira inexplicável, porque meu abalo com o noivado de Beatriz, reabriu uma ferida que nem de longe parecia cicatrizada.

Ao final da aula, alguns alunos, entre eles, Marcela, me procuraram, interessados em ingressar no grupo de pesquisa, fato que me alegrou bastante, tendo em vista que perdi alguns discentes muito dedicados quando se graduaram e migraram para atuações em programas de residência em outras cidades.

-- Calma pessoal, o edital deve estar saindo na próxima semana. Haverá uma seleção sim, desde já, vão atualizando o Currículo Lattes de vocês, e adianto que o histórico das notas também é um ponto que será avaliado.

Alguns risos e cochichos se fizeram quando respondi às indagações. Os alunos se afastaram e timidamente, Jéssica se aproximou:

-- Professora, a Marcela me falou sobre ontem, e... Bem, eu, quero agradecer e pedir desculpas pela trabalheira que dei a senhora... E...

-- Jéssica, não tem motivos para pedir desculpas, você está melhor? – Interrompi notando o desconcerto da garota.

-- Ah... Sim, obrigada por perguntar. Eu quero que a senhora saiba que não é meu costume beber daquela forma e...

-- Espero que não seja mesmo seu costume, seu fígado agradece...

-- Não queria que a senhora tivesse uma ideia errada sobre mim... A Marcela fez questão de me narrar os detalhes da maratona que foi para vocês me levarem para casa...

Sorri, olhei para o lado e vi Marcela sorrindo com o canto dos lábios, encarando-me. Minhas pernas estremeceram, quanta beleza cabia numa pessoa só? Nem estou falando dos atributos físicos somente, estou falando do charme, da sedução, certamente, Marcela não sabia o quanto ela seduzia sem querer com aquele jeito pueril.

-- Desde que você não venha para minhas aulas, embriagada, e que não vomite nos meus pés, apesar de ser o sonho ou impulso de alguns alunos... Está tudo bem.

Jessica sorriu e Marcela a acompanhou.

-- Firmou então professora! – Jessica respondeu menos tensa.

-- E não esqueça de agradecer ao seu porteiro... Ele foi um cavalheiro carregando você nos braços...

-- O Chico? Foi ele que me carregou nos braços? Marcela!

Não entendi, mas a cara de surpresa de Jéssica beirava a indignação. E Marcela, bem essa continha uma gargalhada, colocando as duas mãos na boca. A atitude que remetia a um gesto de criança, para mim tomou ares de encantamento, como se pudesse aumentar ainda mais meu grau de bobeira diante de uma menina.

-- Marcela você disse que o foi o saradão do quinto andar que me carregou! Eu praticamente me derreti pra ele como um sonrisal na água no elevador hoje!

-- Ah eu tinha que levantar sua moral né? Ela ficou em forma de êmese no ponto de ônibus perto da praia...

Marcela fez piada, arrancando um riso discreto de mim, trocamos um olhar por alguns segundos, enquanto Jessica xingava a amiga pela peraltice. O momento foi interrompido pelo vibrado do meu celular no bolso do jaleco. Era Clarisse.

-- Já está vindo almoçar, Luiza?

-- Estou em sala ainda, mas chego aí daqui a pouco, espere-me.

Eu precisava mesmo sair dali. Lembrei-me da minha transparência, com um pouco mais de astúcia, Marcela poderia perceber meu abobamento diante dela. Cheguei à cantina, e depois de me servir sentei-me à mesa de sempre, a qual Clarisse já guardava. Mal me sentei, minha amiga já disparou:

-- Posso saber o que aconteceu sábado? De onde saiu essa sua face mal educada? Certamente pela convivência com a Cris, por que essa foi outra que sequer me fez a delicadeza de justificar a recusa do meu convite.

-- Ai amiga, me desculpe. Eu não estava no clima de festas, só fui pra não te fazer desfeita, e o Ed me arrastou também. A Cris foi sim, encontrou-me na saída do seu prédio, viu meu estado e ela me fez companhia, eu não queria atrapalhar seu climinha lá com a assistente social, eu estava muito deprê, nossa...

-- O Ed também foi outro! Sumiu! Poxa, nem pra ver as fotos vocês ficaram.

-- Clarisse, menos tá?! Essas fotos estão nas redes sociais... Sábado foi um dia horroroso, tive uma briga com a Beatriz, uma recaída na minha dor de cotovelo, a felicidade dos outros estava me incomodando, não queria estragar sua festa com minha nuvem negra...

-- Vou te perdoar por uma razão: compaixão! Fiquei sabendo por acaso do noivado da Bia. Vou poupar você de um puxão de orelhas pela deselegância só por isso...

-- Vai me poupar? Você já me descascou!

-- Como você está? Aliás, nem precisa me dizer, sua cara já diz muito.

-- Eu devo estar um caco então, vou ter que apelar pro Ed de novo... Minha segunda amiga a me dizer hoje que estou a cara da decadência.

-- Você continua linda, deixa de distorcer as coisas, só falei isso porque te conheço muito bem, Lu.

-- Sabe uma pergunta que não me deixa desde que eu soube desse noivado?

-- Qual foi o trabalho que Alicinha fez pra virar a cabeça da Bia desse jeito?

-- Não! – Sorri mexendo os talheres – Eu me pergunto na verdade, o que ela tem que eu não tenho?

-- Luiza, parou! Não entra nessa! Isso não faz sentido, você vinha superando o término dessa relação, agora você retrocede com esse jargão medíocre?

-- Clarisse, me ajude a entender. Eu amei a Beatriz com tudo que eu sou, mergulhei nesse relacionamento...Ai.. Isso está parecendo letra de música da Maria Bethania – Pensei alto – Mas, eu juro que não consigo entender o que a Bia tem com a Alicinha que não teve comigo? O que faltou em mim?

-- O problema é que a Beatriz é uma pessoa rasa! E você mergulhou muito fundo, faltou a você mais amor próprio, faltou a você egoísmo.

Franzi a teste, soltei os talheres, e encarei Clarisse, séria.

-- Olha Clarisse, de todos os conselhos e reflexões que já ouvi, esse foi insuperável. Faltou egoísmo meu... Você aprendeu isso aonde? Na França?

-- Luiza, estou falando sério! Você acabou de dizer, “eu me dei toda para ela”, e você fez isso mesmo, “se deu demais”, gastou energia demais, você orbitava em torno da Bia, fazia tudo por ela, você praticamente ingressou no doutorado dela por ela, e ela só chegou nesse momento da carreira acadêmica dela porque você a colocou lá!

-- Também não precisa exagerar, do jeito que você fala, até parece que a Beatriz não tem os méritos dela no posto que ocupa. Eu só achei uma brecha para a titulação dela dentro da saúde, mas, ela tem capacidade e inteligência suficientes para a função que ocupa.

-- Eu dei um exemplo só, mas, você pensava sempre nela em primeiro lugar. Luiza, olha pra você! Você e linda, uma das mentes mais brilhantes na pesquisa em sua área nesse país, você cativa a todos, até os alunos que te consideram carrasca, e você deixou simplesmente tudo isso em segundo plano para fazer as vontades da Bia, viver os sonhos e desejos dela.

-- Então, o problema é mesmo comigo... Entre eu e um cigarro, preferem o cigarro, entre eu e a versão feminina do “Fuleco”, perco eu...

-- Han? Tem “cannabis” aí nessa sua salada? O que você está falando? Cigarro? A Bia fuma?

-- Ah, não, estava falando da Lúcia, que encontrei na sua festa, quando eu pedi para ela parar de fumar pra nosso namoro dar certo, ela não topou, mas está fazendo isso agora por outra, bem possível que elas noivem também...- Murmurei.

-- Desencana vai Lu. O problema não é com você, na verdade, é, você é boa demais! Tem que exercitar seu lado Malévola.

-- Minha amiga você está insuperável hoje! – Não evitei o sorriso. – O motivo disso é a... Como é mesmo o nome dela?

-- Maira.

-- Isso! Bonita ela, e aí? Está rolando?

-- Por mim estaria! Mas, ela é daquelas do tipo: “saí de uma relação complicada, não quero me envolver”.

-- Xii... Tem uma ex presente na jogada?

-- Sei lá, preferi não falar muito sobre...

-- Mas vocês ficaram?

Clarisse revirou os olhos e suspirou. O suficiente para eu deduzir a resposta positiva.

-- Vou indo para o hospital.

-- Ué, hoje? Mas não é tarde que você se dedica a pesquisa no laboratório de fisiologia?

-- É, mas hoje, tem um paciente na UTI que quero avaliar e...

-- Clarisse sua bandida! Você está indo pra ver a assistente social! Cara lisa!

Clarisse gargalhou, quase se engasgando com a água que tomava.

-- Eu disse que você é uma das mentes mais brilhantes, não disse?

-- Vai com calma, não seja tão disponível para ela... Se ela disse que não quer compromisso, não fique tão fácil assim...

-- Valeu amiga, você está certa, só quero que ela me veja, e sinta saudade... Sabe como é, ver pra querer sabe?

-- Tô ligada! Formou!

Rimos. Depois do intervalo da tarde, sem mais aulas a ministrar, segui para o laboratório de Medicina Molecular, era minha casa naquela universidade. Por ser a professora que mais usava o espaço, tomei a liberdade de me apossar de uma pequena sala, na verdade, era um cubículo, que se transformou em meu escritório, com uma mesa, um armário, e duas cadeiras, era o suficiente para mim. Quando precisava me reunir com o grupo de pesquisa, o fazia pelas bancadas dali, em meio a tubos de ensaio, caixas de acrílico e todos os apetrechos laboratoriais.

Precisava concluir o edital para seleção dos novos membros do grupo de pesquisa. Cumprimentei Regina, a auxiliar responsável pelo laboratório, e me tranquei na sala. O tempo voou, nem percebi a tarde acabar, quando Regina bateu à porta:

-- Dra. Luiza, eu já estou indo, a senhora vai precisar de mim para algo?

-- Já? Que horas são? Nossa! Ah Regina, pode ir, desculpe-me se te prendi aqui, pode deixar, eu fecho tudo e deixo com o senhor Tavares as chaves.

-- Tudo bem, boa noite doutora.

Mal Regina saiu da sala, outra batida na porta:

-- Esqueceu-se de algo Regi... – Fui dizendo baixando o tom de voz.

-- Sou eu, combinei de lhe procurar no final da tarde, não se lembra?

Beatriz estava parada junto à porta. Engoli seco, e pedi que ela sentasse, em um tom formal.

-- Com todo prestígio que você tem no departamento de Medicina, você ainda não solicitou uma sala de verdade para você?

-- Não preciso de mais do que esse espaço aqui, meu trabalho de verdade faço lá fora.

-- Deveria pedir pelo menos um espaço maior para reunir seus pesquisadores, não sei como você aguenta ficar num “imprensado” desses....

-- Nunca fui muito espaçosa Beatriz, estou bem aqui.

-- Essa sua falta de ambição um dia vai fazer a diferença... – Beatriz disse num tom censurador.

-- Engraçado, em outra época, você chamava isso de modéstia, humildade, bom senso...

-- Mas, tem que existir um limite nisso, você tem status acadêmico e fica se contentando com menos do que seu mérito lhe dá direito. E a culpa é sua, você não tem ambição.

-- É verdade Bia, não ambiciono luxos, ostentação. Meu mérito me ensinou isso.

-- Devia ambicionar, as coisas mudam, pessoas podem mudar também.

-- Ah sobre isso eu também aprendi, você me ensinou muito bem isso: “as coisas mudam, as pessoas mudam”. Sua ambição quem te ensinou? A Alicinha? Ela vai inaugurar outro frigorífico com o papai dela?

-- Estava demorando... Estava esperando você soltar sua ironia e seu sarcasmo. Prendeu muito tempo nessa pose de mulher madura e confiante. Vamos lá, mostre seu recalque, Luiza!

Nesse momento meu sangue ferveu, fechei o meu laptop com violência, estreitei os olhos enquanto Beatriz se levantava da cadeira que estava acomodada, como se estar de pé, a fizesse se sentir mais superior a mim do que já externava. Levantei-me também, não permitiria que ela me olhasse de cima.

-- Recalque? Você diminui tudo que sinto em relação a você e a Alicinha como recalque? Que tipo de pessoa mesquinha e doente você é? Quão egoísta e ingrata consegue ser com alguém que foi sua companheira por tanto tempo Bia?

-- Será que é mesmo egoísmo e mesquinhez lutar pela felicidade? Pelo amor?

A retórica de minha ex-namorada chegou a me doer fisicamente, como um beliscão no peito.

-- Você está me dizendo que não me amou? Não foi feliz comigo?

O embargo da voz mostrou uma fragilidade que eu não queria deixar evidente para Beatriz, ela, baixou os olhos e se encaminhou em direção à saída e disse de costas:

-- Não foi para falar sobre nós que vim aqui, Luiza.

Beatriz já estava no laboratório, nitidamente se esquivando da minha pergunta, a segui, no ambiente que já estava vazio, e com apenas uma parte das luzes acesas.

-- Responde, acho que ao menos essa resposta eu mereço.

Beatriz suspirou. Alguns segundos de silêncio precederam o que eu esperava ansiosa, sua resposta:

-- Lu, eu te amei sim, fui muito feliz com você, nem tem sentido uma pergunta como essa, sabe o que vivemos, foi forte, intenso, cheio de ternura, você é uma das pessoas mais generosas, nobres, sabe amar como poucas...

-- E tudo isso não te impediu de faltar com a lealdade comigo?

-- Não pense que eu me orgulho disso, Luiza, eu sei que não agi corretamente com você, foi mais forte que eu...

Pela primeira vez, desde que terminamos, eu enxergava alguma dignidade no discurso de Beatriz, mas, aquilo também despertou a mágoa de uma maneira descomunal, de uma forma que minha polidez e postura magnânima foram relativizados, pela necessidade de expor minha revolta.

-- Então você é uma fraca! Como seu caráter pode ser tão vil? Você se rendeu a uma atração, na primeira oportunidade que teve ao rever seu amor de adolescência, e no lugar do respeito e da lealdade que você deveria ter comigo, você cedeu, me traiu da pior maneira! Traidora e fraca! É isso que você é!

Beatriz deixou uma lágrima cair, enquanto as minhas já escorriam abundantes pelo meu rosto.

-- Não foi fácil para mim...

-- Não foi fácil para você? E pra mim Bia? Você tem alguma noção do que foi para mim? Perder um amor para uma mulher não é algo que se enfrenta sem dor, se morrer um pouco... – Parei de falar aos soluços.

-- Eu seria desleal se continuasse com você apaixonada por outra mulher, não seria justo com nossa história.

-- Mais justo então, foi trair para romper de vez, desatar os laços, rasgar minha alma...

Beatriz se aproximou de mim abruptamente. Segurou meu rosto com as duas mãos, encarou-me, enxugou minhas lágrimas com o dorso de uma das mãos, e disse com a voz mansa:

-- Nunca foi minha intenção te magoar, eu me arrependo de verdade de ter sido fraca.

Encarar Beatriz ali tão de perto, dirigindo a mim um gesto carinhoso, me desarmou, fez aflorar os sentimentos bons que eu tinha (ou melhor, tenho?) Por ela. Fechei meus olhos, me deliciando no toque das mãos de minha ex-namorada, sentindo o rosto dela se aproximar do meu, nossos lábios se tocaram, e a iniciativa foi minha de aprofundar o selo o transformando em um beijo cheio de saudade.

Para minha surpresa, Beatriz não se esquivou, acrescentou mais intensidade ao beijo que se prolongou, acendeu meu corpo, estremeci, rendida a tudo que emergia diante de alguém que agora eu tinha a plena certeza que ainda amava. O beijo não cessou, Bia me empurrou contra a parede ofegante, deixando minhas mãos explorarem os pontos que eu conhecia tão bem, pressionei as mãos na cintura dela, subi pelo colo, apertei seus seios fartos, enquanto Beatriz entrelaçava seus dedos nos meus cabelos, senti o corpo dela tremer também.

Alguns segundos nos separaram e os olhos se encontraram. Tanto para ser lido, tanta coisa implícita naquela entrega, e ambas não conseguíamos expressar em palavras o que aquilo representava. Afastei Beatriz, empurrei-a sem consegui encará-la, minha ferida sangrava, comecei a me censurar por ter me denunciado a ela naquela recaída. Outra vez, Bia me surpreendeu, puxou pelo braço, e quando tentava alcançar com a outra mão, meu rosto mais uma vez, na tentativa de oferecer resistência, acabei por provocar o roçar da pedra do anel na mão direita da minha ex na minha testa.

Triste ironia do destino: o anel de noivado de Beatriz abriu uma ferida no meu rosto. A culpa tomou de conta dela, pude ver isso, e também por enxergar isso, não deixei que ela se aproximasse, ela fez menção de fazê-lo, quando viu uma réstia de sangue surgir no arranhão.

-- Não... Por favor. Bia, sai daqui.

Visivelmente atordoada, Beatriz saiu, esbarrando no balcão. Coloquei minha mão na cabeça, contendo o sangue que molhava minha testa, bem menos do que as lágrimas que salgavam minha boca, depois de gosto dos lábios e língua da minha ex-namorada de novo no meu paladar.

Distraída com minha dor, mais na alma do que no rosto, não percebi a chegada de uma pessoa no laboratório. Fui arrancada daquela dolorosa reflexão por uma voz familiar:

-- Professora Luiza? A senhora está bem?

Marcela se aproximava, e me vendo mais com mais luminosidade, pode ver meu arranhão na testa e meus olhos inchados e vermelhos.

-- Eu estava saindo da biblioteca, a porta estava aberta, vi uma luz aqui... A senhora está machucada!

Marcela se explicava enquanto chegava mais perto. Rapidamente me refiz, não podia me mostrar tão frágil diante de uma aluna.

-- Só um arranhão. Um chifre tentando sair apenas... – Brinquei com minha desgraça.

-- Tem alguma coisa errada aí... Anjo não tem chifres... Deixa eu cuidar da senhora.

As palavras de Marcela, e aquele anúncio: “deixa eu cuidar da senhora”, foi o melhor curativo que meus ouvidos poderiam escutar. Como desejei ser cuidada, e por aquela menina, isso me parecia um bálsamo.

CAPÍTULO 7: LIÇÃO N.º 5 – E SE TROPEÇAR, NO CHÃO NÃO HÁ DE PASSAR...
O cuidado de Marcela comigo beirou gestos sensuais, mas, não propositalmente, pelo menos acho que para ela não. As mãos delicadas, quase infantis pelo tamanho, maciez, da futura médica, me sensibilizaram. Sem que eu controlasse, uma lágrima escapou, a menina franziu o cenho e perguntou curiosa:

-- Está doendo tanto assim?

Eu meneei a cabeça, Marcela numa atitude que por pouco não me tirou o bom senso, soprou no meu arranhão, ao perceber minha expressão se afastou, desculpando-se:

-- Eu sei... Vacilei não é professora?

-- Hã?

-- Acabei de soprar alguns organismos, quem sabe até alguns patogênicos, no seu tecido lesionado.

-- Ah! – Sorri, disfarçando meu rubor – Pois é, doutora, lembrou-se de microbiologia e patologia, acho que você vive mais em sala de aula do que eu...

-- Entre a microbiologia, e o que minha avó e minha dizem e fazem professora, eu ainda fico com elas, e elas sempre faziam isso quando cuidavam dos meus machucados...

-- Argumento bem pouco científico não?

-- Mas empiricamente aceito, para mim, quase uma evidência científica!

O tom seguro de Marcela, acompanhado de um sorriso com o canto dos lábios seriam suficientes para me derrubar daquele banco. Mesmo sob efeito da minha recaída diante de Beatriz, aquela menina conseguiu sem esforço, minimizar minha dor, e me despertar um sorriso leve no meu rosto marcado pelas lágrimas.

-- Estou curiosa Marcela. Você que fala tão empolgada de metodologia científica, por que não se engajou no grupo de pesquisa quando cursou essa disciplina comigo?

Perguntei em um tom mais formal para impor menos intimidade entre nós.

-- Talvez, se eu tivesse sido sua aluna nessa disciplina, eu teria me engajado.

-- Não foi minha aluna em metodologia? Mas eu leciono aqui há mais de quatro anos...

-- Que decepção professora... Eu sou um achado, lembra-se? Com certeza, a senhora não teria esquecido de uma aluna marcante como eu.

Marcela me interrompeu, disse isso enquanto caminhava até a pia para lavar as mãos.

-- Consegui transferência para cá semestre passado, no campus que eu cursava no interior, não tinha muito incentivo à iniciação científica no curso de medicina. – Marcela explicou.

-- Hum, então você é uma menina do interior...

-- Não sou uma menina... – Marcela murmurou. – A senhora sempre se refere a mim assim, como uma menina.

-- Isso te ofende?

-- Não gosto, parece pejorativo, soa como se me visse como uma moleca imatura e inconsequente.

Calei por segundos, sem argumentação para a defesa que Marcela fazia de si própria.

-- Não te julgo assim, Marcela. É só uma expressão, não tem conotação pejorativa.

-- Para esclarecer, antes que a senhora me chame de novo de menina do interior, eu não sou do interior, mas na chamada do SISU, a concorrência para o campus do interior foi menor, então, só consegui entrar lá...

-- Então, sua família tem muita influência, deve conhecer gente importante para ter conseguido sua transferência.

-- Meu pai costuma dizer que o importante na vida não é conhecer muita gente, mas sim, conhecer gente certa.

-- É, talvez seu pai tenha razão, e pelo jeito, conhece gente certa.

-- Meu pai é esperto! – Marcela riu - Mas, a influência, foi do meu padrinho e tio, irmão de minha mãe. Longa história.

-- Entendo... Posso saber o que você ainda faz na universidade essa hora?

-- Estou fazendo um bico aqui de socorrista, captei que tinha uma professora precisando de um curativo, vim prontamente.

Marcela disse esbanjando aquele sorriso que mexia comigo de maneira inexplicável.

-- Tem talento também para vidente, ou humorista... – Brinquei.

-- Ah professora, em menos de vinte minutos, a senhora já me chamou de menina, quase levei o título de caipira, e agora de palhaça? Assim, vou levar pro lado pessoal! E olha, que nesse meio tempo, a senhora teve de mim a titulação de anjo!

Confesso que a reflexão de Marcela me deixou desconcertada, eu estava sendo mesmo desagradável com a menina que só me tecia elogios, e estava ali me ajudando, respondendo ao meu interrogatório e principalmente, demonstrando toda sua discrição e ética, uma vez que não inquiriu os motivos pelos quais eu estava ali sozinha com cara de choro e machucada.

-- Você tem razão Marcela, estou sendo deselegante com você. Perdoe-me.

-- Outro vacilo! Coloque, uvas, morangos, chocolates em minha boca, mas palavras não! Não chamei a senhora de deselegante! Isso seria uma mentira, e uma injustiça sem tamanho!

Nocaute técnico produção! Alguém chame os paramédicos! Aquela menina acabara de me atirar ao chão com meia dúzia de palavras. Menina, sim! Naquele momento era mais seguro para mim, enxerga-la assim, como uma menina, exatamente como as outras alunas, apesar de saber que nem de longe Marcela era como as outras. Minha imaginação fértil, foi longe, imaginando-me colocar uvas, morangos e chocolates naquela boca rosada... Depois veio a dificuldade de interpretar o final da frase, ela teria me chamado de elegante? Foi isso mesmo?

-- Alguém já te disse que você está no curso errado? Você daria uma ótima advogada! Tem resposta pra tudo, e deixa a gente sem argumentos!

-- Minha irmã vive me dizendo isso... Mas, eu vou usar esse talento só para o mal mesmo... Não vou usar isso pra defender ninguém não...

Marcela deixou um sorriso enigmático nos lábios. Qualquer nuance do sorriso dela era encantador, incrível o poder de sedução que se desenhava naqueles contornos, tudo em sintonia, olhos, boca, bochechas.

-- Então, terei que tomar cuidado com minhas perguntas a você daqui por diante, sabendo desse seu talento.

-- Fica esperta professora!

-- Mas então... O que você faz de verdade a essa hora ainda por aqui?

-- Não te convenci com minha resposta anterior?

Balancei a cabeça negativamente.

-- Droga, terei que exercitar mais meu talento teatral, isso também é útil, especialmente para enrolar professor... Minha mãe sempre cai...

-- Ah! Está me comparando à sua mãe? Como assim, Marcela? – Disse indignada, cruzando os braços.

-- Xi, a senhora falou igualzinho a ela agora! – Marcela gargalhou. – Antes que a senhora dispare um sermão igual a ela, vou logo responder, o que aliás, eu já disse, estava na biblioteca, estudando farmacologia.

-- Talento para atriz você não tem, não colou viu?

-- Eu não estou encenando, estava mesmo estudando fármaco! Estou me preparando para a prova de seleção do grupo de pesquisa.

-- Marcela! Eu acabei de preparar o edital, como você já está estudando para a prova?

-- Imagino que a senhora vá repetir algum conteúdo né? Estou me antecipando, estudando pelo edital do ano passado. Professora, eu li todos os artigos que os membros do GRUFARMA publicaram nos últimos dois anos.

Minha expressão denunciou a pouca credibilidade que dei ao comentário que Marcela fez.

-- Estou falando sério, a senhora ainda vai se surpreender muito comigo, professora.

-- Desculpe-me Marcela, ao invés de retribuir sua gentileza e cuidado, estou questionando seu empenho nos estudos. Prometo me redimir.

-- Já que é uma promessa, aceitaria um convite meu?

Gelei, empalideci, com receio retruquei:

-- Convite?

-- A senhora sabe que a gente, eu digo a gente aluno, promove umas festas aí de vez em quando para angariar uma graninha para nossa festa de formatura, bom, esse semestre, a festa da calourada, será nossa turma a responsável. O segundo semestre organizou o trote, mas a festa, será nossa sala que organizará.

-- Eu, em uma festa dos calouros?

-- Sim, algum problema? Não me diga que a senhora é do tipo de professor-deus, que não se rebaixa ao convívio dos pobres mortais e inferiores seres: alunos.

Marcela foi sarcástica, praticamente me intimidou com a pergunta.

-- Eu só nunca me imaginei... É uma festa de jovens...

-- Ah! Parou! Assim vou te pedir “a bênção” professora! Falando que nem uma velha! Nem minha mãe fala assim: “festa de jovens”.

Não me contive com o jeito despachado de Marcela responder à minha resposta patética. Sorri desconcertada.

-- Eu falei como uma velha né?

-- Praticamente como uma paciente geriátrica! – Marcela respondeu – Professora, dá uma força pra gente... Leva uma galera, amigos chamam outros amigos, e aí mais gente bebe, a gente lucra mais...

Imaginei “minha galera” na festa de meus alunos: Cris querendo catar tudo que é menina bêbada, o que não seria coisa difícil de encontrar, Ed levando o cortejo de amigos que sambam melhor do que muita rainha de bateria, e a outra ala de “boys magia” exibindo os músculos malhados em calças e camisas apertadas, essas últimas, seriam as primeiras a serem retiradas para exibir os gominhos dos abdomens na metade da festa.

-- Acho que não tenho “uma galera” para levar, mas... Quando será mesmo?

-- Sábado, começa com uma feijoada... Vai ter um pagode, vai ser maneiro!

--Prometo pensar com carinho. Agora, deixe-me retribuir seus socorros, e te dou uma carona, está ficando tarde.

-- Relaxa professora. Estou de carro.

-- Ah! – Suspirei decepcionada.

-- Mas, está mesmo ficando tarde, daqui a pouco começam a me ligar, me monitorando... Preciso ir. -Marcela disse alcançando o celular no bolso -- Só falar, já começou...

Estranhamente senti um misto de ciúme e curiosidade com a fala de Marcela. Quem estaria lhe ligando? Monitorando? Namorado? Namorada? Mas o que isso me interessava?

-- Estou indo professora, a gente se vê por aí, e, toma cuidado aí com esses acidentes de trabalho!

Marcela deu uma piscadela de olho seguido de um sorriso sapeca. Fiz um aceno qualquer, ainda perdida nos meus devaneios de hipóteses.

Em casa, antes do banho o qual eu esperava que me devolvesse um mínimo de paz, encarei-me no espelho, vendo aquele arranhão deixado pelo “noivado” de Beatriz, eu senti o peso daquela marca na minha alma. Passei meus dedos nos lábios tentando rememorar o gosto de Bia na minha boca. Enquanto deixava a água do chuveiro lavar meu pranto, deixei-me invadir pelo pensamento em Marcela, como se quisesse de novo o bálsamo para minha dor.

De repente, eu estava ali, apelando para a lembrança da leveza e beleza de uma menina, para enfrentar um sentimento de mágoa tão denso que me dominava quando pensava em Beatriz. Ao mesmo tempo, o desejo despertado e a saudade tomavam uma proporção que me machucavam ainda mais. Sabe aquelas asneiras que a gente comete na vida, que nada que você invente justifica? Aquela noite me reservava uma dessas asneiras: peguei o celular, e em uma atitude automática, disquei o número de Beatriz.

Deve ter chamado apenas duas vezes, tempo suficiente para recuperar minha sanidade. O que eu estava fazendo? E se Beatriz estivesse com Alicinha ao lado? Joguei o celular na cama, como se ele fosse um objeto maldito, qual não foi minha surpresa quando percebi o aparelho vibrar, no display, o nome Beatriz. Relutei em atender, afinal de contas, poderia ser a noiva da minha ex, retornando a ligação para “tomar satisfações” comigo.

Engoli seco. Faltou-me coragem para atender, mas, quem me ligava era insistente. Peguei o celular, mentalmente eu já tinha uma desculpa, se fosse Alicinha a ligar, se fosse Beatriz, bem, eu não tinha mesmo ideia do que falar.

-- Alo?

-- Lu...

Era Beatriz. Segundos de silêncio, respirações descompassadas. Falamos ao mesmo tempo qualquer coisa, e paramos afim de escutar uma a outra, mais silêncio.

-- Você me ligou? – Beatriz perguntou.

-- Eu... Queria saber se... O que você queria ao me procurar hoje? – Improvisei uma desculpa.

-- Ah... Era isso? Você ligou por isso? – Bia indagou frustrada.

-- Você acabou saindo sem me dizer o motivo de ter me procurado.

-- Foi, acho que perdi o foco, aliás, perdemos...

-- Bia, eu...

-- Lu, acho que precisamos falar sobre o que aconteceu hoje...

-- Não, Bia... Não precisamos, não quero, você está noiva de outra mulher! Não podia ter acontecido nada entre nós, eu só queria entender, porque?

-- Eu não sei! Você acha que eu planejei te beijar? Eu não sei dizer o que estou sentindo, não sei explicar!

-- Então, como nem eu, nem você sabemos explicar, não há o que conversar...

-- Preciso desligar!

A interrupção no nosso diálogo para mim só tinha uma razão: Alicinha devia ter chegado, e eu, me senti a amante, a outra. Sensação horrorosa! Pior do que isso, fiquei inquieta, por que afinal, Beatriz estava tão mexida com o nosso encontro como eu. Previ que aquela seria mais uma noite com meu companheiro rivotril. Vesti uma camiseta velha, deixei minha caixa de lenços a postos na mesa de cabeceira, e comecei a destrinchar minhas reflexões chorosas e doloridas. Cenário comum para mim nos últimos tempos, meu quarto escuro com a TV no mudo, meu edredom me aconchegando, e meu rosto banhado em lágrimas.

-- Eu tinha que te ver...

Beatriz apareceu na porta do meu quarto me surpreendendo.

-- Bia? O que você faz aqui? Como você entrou?

Disse assustada, enxugando meu rosto, sentando-me na cama.

-- Eu ainda tinha as chaves... E eu estou aqui, por que...

Beatriz não falou mais nada, se jogou na cama, segurando-me pelo pescoço. Avançou sôfrega na minha boca, sugou meus lábios, dei espaço para sua língua me tomar. Quando dei por mim, Beatriz já pesava seu corpo sobre o meu, e eu já lutava para me desfazer das peças de roupa dela. A essa altura, Bia já me deixara desnuda, demonstrando sua urgência em me tomar.

Entreguei-me ao desejo, à vontade de ser dela novamente. A intimidade construída no tempo que passamos juntas, nos dava a liberdade do toque mais sensual, da exploração dos pontos mais sensíveis. Quanta saudade explodiu naquele momento, e não era só a minha, aquilo estava claro. Beatriz beijou meu corpo, colocando a língua entre os lábios, intercalando beijos e lambidas no meu colo, nos meus seios, me levando a loucura.

Facilmente nosso encaixe se fez, inundadas pela excitação nítida no roçar dos nossos sexos, até Beatriz erguer uma das minhas pernas, posicionando a dela por baixo, deixando assim nossos grandes e pequenos lábios mais abertos para a entrega mútua, clitóris inchados sendo massageados num movimento perfeito, sincronizado, firme, Beatriz sabia como entrar em mim, sabia como me fazer dela, enquanto me amava, ela me encarava, nos seus olhos eu podia ler: Você é minha. Eu lia, e dizia em voz alta:

-- Entra forte, eu sou sua!

-- Sim, você é minha...

Beatriz gemia antes de deixar um suspiro rouco anunciar o ápice que alcançava, e eu por conseguinte, sentindo meus músculos estremecerem por inteiro. Ficamos abraçadas, por alguns segundos permiti-me nada falar, deixar aquele momento imaculado, eu amava Bia, isso estava óbvio e para meu desespero, não fazia a mínima ideia do que ela sentia por mim. Eu era dela de novo, mas o que isso representava?

-- Você está com fome? Quer que eu te traga algo?

Quebrei o silêncio, enquanto Beatriz afagava meus cabelos, com meu corpo sobre o dela.

-- Não... Estou bem, fica aqui... – Beatriz respondeu e beijou minha cabeça.

-- Bia, eu sei que não é hora de falarmos nisso, mas...

-- Então, não falemos... Por favor, Lu.

-- Mas... O que está acontecendo?

Sai do conforto dos braços de Beatriz para encará-la. Precisava ver o que seus olhos diziam.

-- Luiza, estou mais confusa do que você, não sei te dar as respostas que você merece e precisa. Por favor, me abraça, fica aqui...

Beatriz apontou para seu peito, e eu a atendi, a abracei, evitei encarar os olhos marejados dela, eu já estava denunciando com minha transparência de alma o quanto a amava, não queria estar nas mãos dela, dependente das decisões dela. Com meu rosto colado no seu peito, ouvi as batidas aceleradas do seu coração, podia supor a angústia que a assolava, e a minha tinha a mesma proporção.

Algum tempo se passou, possivelmente ela tenha cochilado, mas, eu não, continuava no meu emaranhado de hipóteses acerca do meu futuro com ela, e na pior das situações a ausência de futuro com ela depois daquele momento de paixão. Minha confusão mental foi interrompida com a voz de sono de Beatriz:

-- Que horas são?

Levantei-me, alcancei o celular e respondi:

-- Passa da meia-noite.

-- Eu tenho que ir.

-- Claro... – Baixei os olhos, supondo o motivo.

-- Luiza, não faz isso...

-- O que? Ficar triste por que você tem que ir embora pra dormir com sua noiva? Aliás, o que você disse a ela antes de vir para cá?

-- Não disse nada, ela não está na cidade... E eu estava me referindo a você fazer essa cara de bicho de pelúcia pra me dissuadir a não ir embora...

Fiquei sem jeito, um sorriso sem graça escapou, triste também, quando concluí mentalmente:

-- “Está fazendo com Alicinha o mesmo que fez comigo, esperou ela viajar para traí-la”.

-- Eu tenho mesmo que ir Luiza.

Beatriz ficou de pé, vestiu-se lentamente, eu evitei assistir seus gestos, exercendo a árdua tarefa do autocontrole em não deixar o choro se apresentar. Bia se aproximou, beijando meu rosto e se despedindo:

-- A gente se fala... Só preciso de um tempo para entender o que está acontecendo.

-- Hunrrum... Bia... Não me procure, exceto, se você tiver alguma resposta a me dar.

Finalizei deixando clara minha condição para revê-la. Ela acenou em acordo, com um olhar confuso e triste. Naquela noite, precisei de novo do meu amigo tarja preta, eram perguntas demais ecoando em minha mente, não podia dormir com todas elas sendo gritadas.

O dia seguinte, não consegui evitar o brilho da pele, pois é, o senso comum é sábio demais as vezes: sexo faz bem a pele, e como! Deveria ser prescrito pelos dermatologistas. Desci pelo elevador até cantarolando, o que endorfinas liberadas na corrente sanguínea não fazem a uma mulher! Evidente que dei uma caprichada no visual, inconscientemente, ou melhor, conscientemente mesmo, entrei na ideia (um tanto quanto absurda considerando todo o contexto, mas perfeitamente plausível para uma pessoa apaixonada) de reconquistar Beatriz. Se aquela recaída foi por desejo, eu precisava atiça-lo.

-- Bom dia!

Disse entrando na sala dos professores no curso de farmácia. Alguns mais cordiais responderam, outros me ignoraram, fato comum naquele cenário. A formalidade contrastava com a falta de educação dos docentes, isso me chocava, mas, naquele dia, eu nem liguei, estava com um bom humor fora do comum, já que minha situação com Beatriz estava mais ferrada do que no dia anterior.

Segui o costume de sempre, assinar o livro de ponto, conferir meu material no armário, encher minha garrafinha de água no bebedouro e preparar uma xícara de café. Nesse momento, Bia chegou, com o mesmo bom humor. Trocamos um sorriso cheio de malícia seguido de um cumprimento trivial:

-- Bom dia professora.

Beatriz seguiu sua rotina igualmente dando orientações para a secretária, falando com alguns professores, mas, seu olhar sempre voltava a mim. E eu, parecia um boneco “joão bobo” me balançando toda, disfarçando meu nervosismo. Patrícia que de boba não tinha nada, observou de longe nossa troca de olhares e logo se aproximou de mim cochichando:

-- Se eu não conhecesse seu gosto musical, diria que você está ensaiando o “lepo lepo” enquanto mexe esse açúcar aí...

Sorri alto. Patrícia me acompanhou. Percebi que estava dando muita bandeira mesmo, me policiei, inclusive no flerte com minha ex-namorada.

-- Você vai me contar o que está acontecendo, ou eu vou ter que perguntar à outra parte interessada? – Patrícia inquiriu.

Dei de ombros, beberiquei o café, mantendo meu silêncio com um sorriso, o selando. Confiava na discrição de Patrícia, mas, não queria passar dos limites que a delicadeza da situação impunha, principalmente porque ela era mais amiga de Beatriz do que eu, não cabia a mim contar o que estava acontecendo.

-- Tenho que ir, está na minha hora. Paty, se você souber o que está acontecendo, promete me contar?

Perguntei displicente, dando uma piscadela de olho para a colega e saí da sala. O celular vibrou, só aí percebi as muitas mensagens no “whats up” que não respondi de Cris, Ed e Clarisse.

-- “Amiga, dia corrido! Mas não esqueci de você! Como você tá?” “Lu, manda notícias, estou preocupada”; “Caralho, vou ter que ir aí?” “Porra Luiza! Você já está dopada?!”

Pelo gradiente de cumprimentos a xingamentos, dá pra supor que eram as mensagens da Cris né?

-- “Amapô como você está?” “Quer sair hoje? Sei lá, algo leve, um terreiro de macumba pra encomendarmos um despacho, kkkkkkkkkkkkkkk” “ Monaaaaaaaaaaa cadê tu cão?”
Ed seguia o mesmo gradiente, com menos xingamentos do que Cris, é verdade.

-- “Lu, estou em casa, se precisar conversar, sair um pouco, me liga!”.

Clarisse, sempre mais comedida, se fazia presente do jeito dela. Respondi o mesmo, só copiei e colei nas janelas do aplicativo:

-- “Estou bem, nos falamos mais tarde, estou entrando em aula agora, beijos”.

Outro símbolo do aplicativo aparecia no display, pensei que fosse a resposta de algum deles, surpreendi-me quando vi que era outra conversa, Beatriz dizia:

--“ Você está mais linda hoje... Almoça comigo?”

Meu coração acelerou, não escondi um sorriso emocionado, depois de um emotion tímido, e outro soltando corações, respondi:

-- “Posso dizer o mesmo de você... Almoço sim, te espero no lugar de sempre?”

-- “Passa na minha sala quando acabar suas aulas”.

-- “Ok, até mais tarde”.

-- “Até, boa aula”.

E lá estava ele, o sorriso idiota nos lábios junto com minha distração naquele chat, só podia resultar em um desastre, esbarrei numa coluna, e claro, me desequilibrei e se não fosse o movimento ágil, dela...

-- Opa! Peguei!

Lá estava ela, me segurando pela cintura: Marcela. Olha a confusão que eu conseguia me meter até no nível emocional da coisa: derretida pela ex-namorada, que estava noiva de outra, depois de uma tórrida noite de paixão e ao mesmo tempo, tremendo mais que gelatina nos braços lindos, delicados, de uma menina, que me deixava sem ar. Como assim Luiza? Você acabou de marcar um almoço com a Bia! E está aqui com essa cara de idiota olhando para Marcela? A propósito que tal você sair dos braços dela?

Minha louca reflexão durou segundos, e quando me fiz a última pergunta, despertei de um transe, me afastando abruptamente de Marcela, que logicamente estranhou minha reação:

-- Professora, agora sei porque não posso ficar longe da senhora...

-- Han?

Devo ter ficado muito vermelha, a observação de Marcela, com certeza foi inocente, mas, ela conseguia despertar sei lá o que em mim: encantamento, atração, curiosidade, carinho, cuidado. O sorriso vivaz dela se fez e me desestruturou:

-- A senhora está sempre precisando de uma socorrista como eu, sorte da senhora que faço hora extra sempre! Se não, agora estaria precisando de outro curativo aí na testa.

-- Ah! É verdade... - Respondi sem graça. – Obrigada, de novo.

-- Tranquilo, professora, precisando estou por perto!

Marcela se afastou com um aceno, e aquele sorriso: Oh my God! Difícil até retribuir o gesto. Era um abalo que não correspondia a racionalidade. Acompanhei a aluna caminhando como se hipnotizada, meu delito foi flagrado pela própria, como se atraída pela força do meu olhar, ela virou o rosto e se deparou comigo ali, ainda olhando na sua direção, outro sorriso, e andou três passos de costas, deu-me outro aceno, e eu correspondi, meio abobalhada certamente.

Até chegar a hora do almoço, eu estava impaciente, contando cada minuto. Devo ter ministrado uma das aulas mais chatas da vida, por que eu mesma queria que ela nem existisse, queria correr para a sala de Beatriz e beijá-la de novo.

Corri para a coordenação do curso de farmácia, no final do período.

-- Lígia, a professora Beatriz está? – Perguntei a secretária.

-- Está sim professora Luiza.

-- Está com alguém?

-- Não, a senhora quer que eu avise que quer lhe falar?

-- Pode deixar, obrigada Lígia, eu mesma vou.

Do corredor, ouvi a voz de Beatriz sobressaltada:

-- “Não se preocupe professor, está praticamente pronta a tese, e o artigo envio até a próxima semana (...) Vou cumprir os prazos professor, foi um atraso normal (...), eu sei que o senhor já solicitou a qualificação (...) Certo, nos encontramos na quinta, bom dia professor”.

Bati à porta e Bia autorizou minha entrada:

-- Pode entrar!

-- Oi...

Falei com um sorriso tímido, Beatriz sorriu, e se levantou, me surpreendeu com um selo demorado nos lábios.

-- Oi. Que bom te ver!

-- Algum problema? – Perguntei receosa depois de ouvir parte da conversa com o seu orientador, deduzi.

-- Nada demais... Vamos almoçar?

Beatriz desconversou, mas, notei a preocupação no seu rosto.

-- Bia, me fala, algo que eu possa ajudar?

-- Já disse Luiza, não é nada demais. Vamos?

-- Vamos.

Não insisti, deixei que Bia ficasse à vontade para me falar os problemas nos seus prazos do doutorado, implícitos naquele diálogo que eu escutara por acaso. Saímos da universidade como era nosso costume quando namorávamos. A sensação era que eu estava voltando no tempo, era a mesma Beatriz que me conquistara, era a rotina que eu tinha saudades, da nossa intimidade, cumplicidade.

-- Podemos ir no seu carro? – Beatriz perguntou.

Aceitei de pronto, nem questionei, para mim, o melhor seria não raciocinar muito sobre as atitudes e palavras de Beatriz, se o fizesse, com certeza eu nunca estaria ao lado dela naquele momento. Antes de entrar no meu carro, avistei de longe, Clarisse me encarando com os braços cruzados. Flagrante, não tinha defesas. Nem ousei cumprimenta-la, nem ao menos olhar meu whats, com certeza ela me descascaria em segundos.

No trajeto, Beatriz, ligou o som do carro, estranhou a playlist:

-- Annita? Sério, Lu?

Ruborizei, fiquei envergonhada.

-- Ah... Ela tem me ajudado nesses dias... – Brinquei.

-- Você já teve amigos melhores...

Bia fez graça, me arrancou um sorriso. Fez um carinho no meu rosto, o que além de me emocionar, me arrepiou. Olhei para ela quando paramos no sinal, Beatriz estava com um semblante angustiado, mas igualmente linda. Retribui o gesto afagando seus cabelos, e a puxei para um selinho, que ela correspondeu.

Parei em um restaurante chinês que era um dos nossos preferidos, e mais perto da universidade também. Com a intimidade que tínhamos, sentamos à mesma mesa de sempre, reconhecemos o garçom que nos atendia com mais frequência, que já antecipou-se aos nossos pedidos, quase imutáveis.

-- Bia, o que a gente está fazendo?

-- Ativando os anticorpos contra a toxoplasmose? – Beatriz brincou – Com esse tanto de peixe cru que estamos comendo, espero mesmo que nosso sistema imunológico esteja bem!

-- Olha só que entendida de imunologia a pedagoga! – Fiz graça – Mas... Bia, você sabe do que estou falando, o que está acontecendo conosco?

-- Não sei, juro que não sei, Luiza.

-- A gente tem que descobrir, não podemos ser tão irresponsáveis com nossos sentimentos.

-- Eu sei disso. Para mim, é ainda mais complicado, você sabe...

Olhei para sua mão direita e murmurei:

-- Complicado, claro. Você que nunca foi impulsiva, realmente, está complicando sua vida...

-- Não me julgue assim, Luiza. Eu senti sua falta nesse tempo, senti saudades, mas não tinha ideia do tamanho da falta que você me faz, que a gente faz, até te ter de novo... Até ter você perto... Eu não estava preparada para descobrir isso.

-- Você não estava preparada para descobrir que sentia minha falta, mas estava para ficar noiva da mulher com quem você me traiu há quatro meses?

-- Quando você fala essas coisas, eu vejo o tamanho da mágoa que deixei em você, sabe, nem combina com você um sentimento desses. Você é a pessoa mais generosa e nobre que conheço, eu me odeio por despertar esse tipo de sentimento turvo na sua alma.

-- Para, Bia. Você não tem que me enrolar elencando aí qualidades que eu nem sei se tenho mesmo...

-- Não estou te enrolando, Luiza. E você tem todas essas qualidades sim, e muitas outras!

-- Então, afinal, o que estamos fazendo aqui? Por que estamos almoçando juntas, como nos tempos que namorávamos? Por que esse clima de romance, porque essa DR?

-- Não sei!

Beatriz jogou o guardanapo na mesa e encostou a testa nas mãos juntas sobre a mesa. Como eu desejei não conhece-la tão bem como a conhecia, dessa forma, eu não leria nos seus gestos a sinceridade de sua angústia.

-- Bia, você precisa descobrir então. Eu preciso de respostas. Eu estava seguindo minha vida sem você, estava te esquecendo, até você aparecer no laboratório e me beijar e dar espaço para tudo mais que aconteceu, ontem e hoje...

-- Você estava conseguindo me esquecer? Assim tão rápido? Tem outra pessoa?

Eu ri, e dessa vez, não foi de nervosismo, foi mesmo com ironia.

-- Acho que os papéis nessa pergunta estão meio invertidos não acha?

-- Nossa! Quando você apela pro sarcasmo, tem mesmo alguma coisa aí escondida... Sério? Já tem outra pessoa na sua vida?

De repente o almoço parecia um duelo, sobre quem conhecia mais quem.

-- Não tem ninguém! Quem trouxe outra pessoa pra nossa vida foi você Bia! E numa rapidez resplandecente. – Disse apontando com os olhos o seu anel de noivado. – Traiu, me feriu, e parece ter tomado gosto pela coisa, porque está de novo, traindo, mas dessa vez, a outra sou eu!

Os olhos de Beatriz marejaram, e me arrependi imediatamente das minhas palavras.

-- Bia, desculpe-me, não quis dizer isso...

-- Mas disse, Luiza. Eu não devia mesmo estar aqui...

-- Então, vamos sair daqui, ou você prefere ir de táxi?

Destilei sem pudor minha mágoa e minha dor, acenando para o garçom trazer a conta.

-- Luiza... – Beatriz segurou minha mão. - Para... Eu estou aqui com você, para você... Não sei explicar o que está acontecendo...

-- Está se sentindo sozinha, porque sua noiva está viajando?

-- Você acha mesmo que te procurei por isso?

Respirei profundamente, eu sabia que não era isso.

-- Estou tentando entender... Só isso.

O garçom se aproximou, Bia retirou a mão que estava sobre a minha, pagamos a conta e saímos dali. No carro, Beatriz pegou o celular que tocava, constrangida, demorou a atender, até que eu disse:

-- Atende, é ela não é?

Beatriz acenou em acordo. Atendeu timidamente.

-- Oi (...), sim, está tudo meio corrido (...), é, desliguei o celular (...) Preciso terminar umas coisas aqui para levar para meu orientador Alicinha, depois nos falamos (...) Beijos.

Constrangida, Beatriz, ficou encarando o celular, mexendo no aparelho, e o silêncio no carro, nos incomodava.

-- Bia...

-- Luiza, por favor. Eu sei, menti... Estou no meio de um furacão de sentimentos, não tenho o direito de te pedir nada, aliás, nem mereço você aqui comigo, mas, me dá um tempo para que eu organize essa avalanche de acontecimentos em mim...

-- Não vai ser muito tempo...

Beatriz aproveitou o sinal fechado, o mais perto da universidade, quando nos despediríamos, puxou meu rosto e me beijou demoradamente.

Minha magoa estava ali comigo, mas meu amor por ela também. Se ela estava em um furacão, eu rodopiava em um ciclone sem foco, perdida. Outra asneira ousei cometer, liguei para o meu colega, orientador de Beatriz.

-- Boa tarde professor Marcos.

-- Professora Luiza? Como vai?

-- Bem, e você?

-- Surpreso com sua ligação, já que você descumpriu nosso acordo, sem uma comunicação prévia.

-- Perdão professor, mas, que acordo?

-- Entendi que quando você me recomendou a professora Beatriz Vasconcelos como orientanda no doutorado, você seria co-orientadora, já que a área afim dela não é a nossa. Aceitei, porque você se encarregaria de coloca-la no seu grupo de estudos, aproximando-a da minha, da nossa, linha de pesquisa, no entanto, fui comunicado por ela, que você a tirou do seu grupo.

-- Marcos, se você entendeu isso como acordo, não vejo em que ponto o descumpri. A professora Beatriz fez parte do meu grupo de estudos por mais de um ano, período no qual, ela publicou e levou com essas publicações o seu nome junto. Publicou o suficiente já para conseguir pontuação nos seus créditos para o doutorado, e por consequência, foi a que mais contribuiu para a sua pontuação e a pontuação do seu programa de pós-graduação no triênio. Acompanhei seu currículo lattes, ora Marcos, foi às custas do meu grupo de pesquisa e por consequência da sua orientanda que você é o professor com mais publicações na sua universidade.

Disparei, segura das minhas colocações, intimidando o colega, que calou por segundos.

-- Mas, na reta final, você a tirou do seu grupo, certamente por motivos pessoais que não me cabem saber.

-- Não, Marcos, não foram por motivos pessoais, se o fosse, não caberia mesmo a você saber. Mas, o fato da professora não fazer mais parte do meu grupo de pesquisa, não desfaz o mérito que ela conquistou até agora, e por ter sido minha indicação, estou ligando para você para saber como está o andamento da tese dela, já que você já solicitou a qualificação, sem me comunicar também, como co-orientadora, eu deveria estar na banca, e no entanto, não fui comunicada.

Outra vez, deixei meu colega sem palavras. O diálogo animoso, permeado pelas palavras formais, típicas entre pesquisadores, que cá pra nós, vivem nutrindo seus egos gigantes, tomou ares de cobranças, entendendo que eu não estava intimidada, Marcos respondeu formalmente, com um discurso polido, que no fundo eu sabia que escondia a raiva dele em assumir minha razão:

-- Luiza, você está certa, fui mesmo negligente com você, perdoe-me. Solicitei a qualificação da tese da professora Beatriz, e creio que não haverá empecilhos para a aprovação e logo marcaremos a defesa.

-- Muito bom saber disso. Então suponho que a tese esteja concluída, na fase de ajustes finais, é isso?

-- Sim, tenho uma reunião agendada com ela para definirmos detalhes, e pedi um artigo com parte dos resultados dela, com a carta de aceite de um periódico, a defesa será mais tranquila.

-- Excelente, obrigada pela atualização das informações Marcos, aguardo as datas e a confirmação da qualificação. Até mais.

Conhecendo o tamanho do ego do meu colega, eu sabia o quanto tinha irritado minha ligação, mas, era necessário, ele pressionava Beatriz, e no fundo eu sentia um pouco de culpa. Mesmo que não fosse mais meu desejo, eu estava envolvida no doutorado dela, Marcos tratou de me colocar como co-orientadora, obrigando-me a fazer parte do trabalho dele, configurando que se tratava de uma troca de favores tácita.

Minha tarde foi tomada por atividades burocráticas na pró-reitoria de pós graduação e pesquisa. Finalmente escolhera meus novos parceiros professores no grupo de pesquisa e publiquei o edital de seleção dos novos discentes.

Cheguei ao laboratório e uma visita inesperada estava no meu cubículo, Regina se apressou em avisar:

-- Doutora Luiza, a professora Clarisse está lhe aguardando.

Eu sabia que eu estava ferrada. Clarisse não me mandou mensagem, não me ligou, apareceu de surpresa no laboratório, porque assim, eu não poderia evita-la. Entrei na minha salinha, e minha amiga estava lá de braços cruzados, sentada na minha poltrona.

-- Oi Clarisse.

-- Então, eu devo te internar, ou acionar a polícia?

-- Oi?!

-- Sim, Luiza, só você ter enlouquecido de vez, ou estar sendo vítima de chantagem, justifica o que eu vi naquele estacionamento hoje!

Suspirei, sentei-me na cadeira à frente da minha mesa, procurando as melhores palavras para explicar à minha amiga o que não tinha explicação.

-- Clarisse, “keep calm, ok?”

-- Calma? Ow Luiza! Acho que você não está raciocinando direito. Você entrou no seu carro com a Beatriz, com cara de culpada! Desembucha logo o que está acontecendo! Você estava arrasada ontem pelo noivado dela com a Alicinha, e hoje sai pra almoçar com ela, como a namoradinha? Qual é, Luiza? Vai fazer papel de amante?

-- Ei! Pega leve...

-- Desculpa, mas não dá! Tratamento de choque é o que você precisa!

-- Eu não planejei isso Clarisse. Dá pra você se acalmar e parar de me julgar?

Clarisse se levantou e se sentou do meu lado, sacudiu a cabeça, respirou profundamente e indagou:

-- Luiza, me fala, você não reatou com a Bia não é?

-- Não sei...

-- Luiza, me diz, por favor que você não teve uma recaída com a Beatriz!

Calei, e meu silêncio gritou a resposta que minha amiga não queria ouvir.

-- Puta que pariu, Luiza! O que foi que houve? Amnésia? Será que eu vou ter que te lembrar do que a Beatriz fez com você?

-- Não, não precisa. Olha, Clarisse, eu juro, não planejei isso, nem ela. Depois de meses, ontem aqui estávamos a sós, falando sobre nós, e pintou um clima, acendeu tudo em mim, isso mexeu com ela também, está tudo confuso ainda, agora ela é noiva, e ela está traindo a noiva comigo e...

-- Pera! Você está me dizendo que, vocês ficaram ontem e hoje de novo? Luiza, você está querendo o que? Vingar-se da Alicinha? Qual é o seu problema?

-- Nossa, por um momento pensei que estivesse falando com a Clarisse, mas não, deve ser a Cris disfarçada, cadê minha amiga sensata e sensível?

-- Olha, “taí” uma coisa que eu quero testemunhar, a Cris te descascando quando souber disso...

-- O que é isso? Vai transformar agora essa questão em uma audiência pública? Fazer uma mesa redonda para discutir a polêmica? Quem sabe um reality show e deixar o público decidir? Quando foi que eu abdiquei dos meus direitos de fazer minhas escolhas e dar a vocês essa tarefa? Por que, assim, do nada, eu tenho que dar satisfações a todos vocês, e ouvir vocês darem o veredito sobre minha vida amorosa?

Retruquei irônica, deixando clara minha indignação. Clarisse, fez menção de responder, mas engoliu as sílabas desconectadas.

-- Clarisse eu sou muito grata a vocês pelo cuidado, pelo carinho e amor que vocês, meus amigos fiéis, leais, tem comigo, juro que não é ingratidão. Mas, eu sou uma mulher, não uma menina que não sabe o que quer. Eu nunca neguei meu amor por Beatriz, tanto, que deixei à mostra minha ferida quando ela me deixou, quando ela noivou com outra com a qual me traiu. Sim, nós tivemos uma recaída, não só eu, ela também. Nesse momento, eu não sei explicar o que está acontecendo conosco, mas não é uma traição vil, uma atitude irresponsável por si só não. Vingança? Acha mesmo que eu me submeteria a esse papel?

-- Tá ok, desculpe-me Luiza, eu me excedi. Não tenho mesmo o direito de te julgar, nem de ditar suas decisões. Mas pela lealdade que tenho a você, e conhecendo sua integridade e generosidade como conheço, eu não posso deixar de manifestar minha desaprovação, porque eu não confio nas boas intenções da Bia, nem muito menos do sentimento dela por você, perdoe a minha sinceridade, mas não dá para acreditar em uma pessoa que trai tão facilmente, se você não parou ainda para calcular a dimensão disso sugiro que você o faça, antes de se transformar no segredinho sujo da sua ex. E sobre submissão, sabe, eu entenderia melhor a mesquinhez de uma atitude vingativa nesse caso, do que você se submeter a dar uma outra chance a essa mulher.

-- Não fala assim... Você vai ficar contra mim? Vai se chatear comigo?


-- Luiza não se trata de ficar contra você, eu sou sua amiga, estarei sempre a favor do seu bem, por isso, sim, estou chateada, por que você está fazendo uma grande besteira, você vai sofrer mais e eu já sofro por você desde agora.

Clarisse se levantou e saiu sem se despedir. A reação da minha amiga não me trouxe uma sensação boa. Sempre confiei no bom senso dela, e não me lembro de uma única vez que Clarisse tivesse sido tão dura no seu julgamento acerca de qualquer evento em minha vida. Fiquei pensativa acerca da minha conversa com ela, tentei me concentrar nos artigos enviados por ex-alunos para correções, mas, não consegui.

Decidi ir para casa mais cedo, estava saindo do laboratório quando recebi uma ligação de Ligia, secretária do curso de farmácia.

-- Professora Luiza, boa tarde, a senhora poderia vir na coordenação dar o parecer de alguns processos de aproveitamento de disciplina?

-- Mas, agora Lígia?

-- São alunos bem insistentes, professora, a senhora sabe como eles são...

Sorri, imaginando o quanto os alunos sabem enlouquecer a pobre da secretária, cobrando decisões que não dependiam dela.

-- Tudo bem, estou indo Lígia.

Sentei-me em uma das mesas da coordenação, e me fixei na tarefa da análise das ementas dos processos, fiz rapidamente, acostumada com essas deliberações em todos os inícios de semestre. Antes de sair, olhei pelo corredor, na direção da sala de Beatriz, as persianas estavam abertas, e ela concentrada, encarando o notebook. Meu ímpeto me fez acenar para ela, pedindo permissão para entrar, com um gesto ela autorizou.

-- Eu conheço essa sua expressão, dedos cruzados segurando o queixo... O que está te deixando tão tensa?

-- Você me conhece mesmo... Mas, não quero falar nisso... Vem cá...

Beatriz fechou as persianas, e fez sinal para que eu me sentasse em seu colo. Não resisti. Atendi ao convite. Beijei seus lábios suavemente, ela sorriu.

-- Bia, isso não está certo...

-- Eu sei... Mas, você é tão linda, tão doce, me traz tanta segurança, paz, sinto tanto sua falta...

Beatriz acariciou meu rosto e me beijou, dessa vez, um beijo mais longo. Minha vontade era insistir nas perguntas que precisavam de respostas, mas, fugi dessa necessidade, voltei meus olhos ao notebook que estava aberto e li rapidamente o que estava na tela.

-- O que é isso? Um artigo da sua tese?

-- Deveria ser...

-- Deveria?

-- Eu deveria estar com ele pronto, mas travei na metodologia... Eu odeio isso de metanálise, odeio estatística!

-- Bia... O software faz tudo, deixa eu te mostrar... Abra aí seu banco de dados... Você pediu para o Leandro fazer a estatística como te indiquei?

-- Sim, paguei uma pequena fortuna a ele né?

-- Ele cobra caro, mas, é muito competente.

Beatriz abriu o software com os dados da sua tese, e fui delimitando o que ela poderia usar para o artigo, eu dominava o conteúdo da tese dela, uma vez que a orientava mais do que o próprio Marcos. Em menos de meia hora, deixei todo o esqueleto do artigo pronto para Beatriz seguir.

-- Ah Luiza! Eu te amo sabia?

De repente, fiquei séria. Beatriz falou de maneira displicente, provavelmente nem ela calculou aquela frase no contexto que estávamos vivendo. Levantei-me e notei que ela caiu em si.

-- Você não tem o direito de brincar com isso. – Fiz menção de sair da sala, Bia me segurou.

-- Luiza! Espera! Eu não queria brincar com isso... Saiu sem querer... Queria agradecer, dizer que você é demais... Eu... Foi uma expressão sabe?

-- Cala a boca, Bia! – Bradei indignada.

-- Lu... Não foi isso que eu quis dizer, eu...

-- Eu sei que você não me ama, você já me provou isso... Eu vou indo...

-- Luiza, espera, por favor. Não posso deixar você sair assim...

-- Você não tem que deixar mais nada, só me deixa em paz Beatriz!

Beatriz tomou a frente da porta impedindo minha saída.

-- Você não vai sair assim...

-- Para com isso, sai da minha frente, Beatriz. Isso tem que parar, e se você não honra esse anel de noivado que está exibindo nesse dedo, eu vou honrar minha integridade e ficar longe de você.

-- E vai ignorar o que aconteceu conosco?

-- Vou!

-- Vai nada!

Sem me deixar defesas, Beatriz avançou na minha boca. Apesar de excitada, e profundamente tentada a ceder ao meu desejo, a empurrei.

-- Não, não, para. Não posso permitir que você faça isso comigo, eu não vou fazer isso comigo!

-- Luiza, me dá um tempo, por favor. Eu preciso entender o que está acontecendo, deixa eu assimilar isso dentro de mim, não me rejeita, não me julga...

-- Eu vou repetir, e vou pedir isso como um favor a você: se ainda resta algum respeito a mim, por favor, só me procure, quando tiver certeza absoluta do que quer, e isso implica em tirar esse anel do dedo, e estar livre para conquistar minha confiança de novo, do contrário, trate-me apenas como sua colega de trabalho.

Sai pisando firme, contendo as lágrimas, eu precisava arcar com as consequências da minha recaída, mas não podia retroceder no meu processo de me refazer, de estar inteira comigo mesma.

CAPÍTULO 8: LIÇÃO Nº6 - E SE CAIR SEIS VEZES, LEVANTE SETE


Não sei se foi ou sorte ou não para mim, mas, pelo resto da semana, não precisei voltar à coordenação do curso de farmácia, e assim, meu reencontro com Beatriz não aconteceu. Trocamos algumas mensagens ainda, mas, mantive minha postura. Propositalmente também evite meus amigos, especialmente Clarisse. Sentia-me envergonhada, culpada. Ed e Cris, ainda inocente acerca da minha recaída, tiveram uma semana atribulada no trabalho, acho que foi sorte minha também.

Mas, o reencontro com Marcela não evitei, até mesmo porque esse não queria evitar. Antes de começar a aula de farmacologia, ela surgiu me ajudando a carregar o meu material no corredor, bem próximo a sua sala.

-- Como a senhora se virou sem meus cuidados esses dias?

-- Oooi?

Como não gaguejar? Os cuidados dela?! Quem dera! Era isso mesmo Luiza? Queria os cuidados de Marcela? No meio daquela lambança emocional que me metera, o único momento no qual eu não estava preocupada com a dramaticidade da minha situação com Beatriz, era na presença de Marcela, isso era no mínimo estranho.

-- Sem meus cuidados de socorrista, professora! Não teve nenhum acidente, nenhuma queda?

Pensei sozinha “Ah se você soubesse das minhas quedas, Marcela...”. Ri dos meus próprios pensamentos e respondi:

-- Não, até agora.

-- Mas, se acontecer, que aconteça agora, que estou bem aqui do lado da senhora.

Ah que sorriso lindo! Que vontade eu tive de “cair” de novo nos braços dela.

-- Tudo certo então. – Respondi com um sorriso, bobo, claro.

-- Já me inscrevi na seleção do GRUFARMA, estou ansiosa para ser pesquisadora da senhora!

-- Prepare-se para a prova de seleção então.

-- Já estou me preparando, nem tenho medo quanto a isso!

Poderia soar petulante, mas, a segurança e auto confiança de Marcela, parecia ser um ingrediente a mais no conjunto de charme que ela esbanjava.

-- E a senhora, estou contando com sua presença na nossa calourada, não pense que me esqueci não!

Marcela disse abrindo a porta da sala para mim.

-- Separe uns convites para mim, ao menos contribuo com vocês comprando-os. – Disse sem graça.

-- Assim não quero! O que conta de verdade é a presença da senhora, poxa professora...

Sorri, acomodando meu material na mesa.

-- Separe os convites, no final da aula você me entrega.

No emaranhado de confusões que minha cabeça estava, a presença de Marcela com toda sua jovialidade me colocava em uma linha tênue entre a leveza e o senso do ridículo, por desejar estar tão perto de uma menina e do seu universo pueril.

Mais ridícula era minha atitude quase involuntária de buscar Marcela em meio aos outros alunos enquanto ministrava aula. Para minha surpresa e incômodo, ela saiu na metade da minha aula, eu, comumente nunca liguei para isso de outros alunos, mas, vindo dela, senti como uma ofensa. No final da aula Jéssica me procurou, sempre tímida, considerando nosso retrospecto.

-- Professora, a Marcela pediu para justificar, teve que sair para resolver uns pepinos da festa, ela é da comissão de formatura, volta e meia aparece um problema na mão dela... Ela não queria atrapalhar a aula e pediu que eu avisasse.

-- Ok, tudo bem, mas diga-lhe que esses problemas não podem interferir nas aulas dela. – Disse, visivelmente contrariada.

-- Claro. Ela me pediu também para entregar esses convites da festa, a senhora vai?

-- Ainda não sei, mas, vou comprar uns convites, me dá cinco.

Não fazia a menor ideia de quem eu levaria, por que afinal de contas, não tinha a menor convicção de que iria para uma festa de alunos, minha única motivação era agradar Marcela, e isso me assustava, parecia que mesmo sem querer, eu atraía encrenca para minha vida. Saindo da sala, encontrei Patrícia.

-- Já ia te ligar, queria te convidar para meu aniversário!

-- Ah Paty, eu vi no “face” que seria esses dias... Tenho memória ruim, desculpa. Quando será? Ou já foi? – Perguntei sem graça.

-- O dia mesmo, é domingo, Lu. Mas vou comemorar sábado, churrasquinho na piscina, só para os mais chegados.

-- Paty... Eu agradeço seu convite, adoraria ir, mas, você sabe que...

-- Luiza... – Patrícia me interrompeu – Eu gostaria muito da sua presença, mas, vou entender se você não e sentir à vontade pelos outros convidados. No entanto, vou te adiantar que a Alicinha não vai. A Bia acabou de me dizer que ela só volta domingo.

Certamente, com toda sensibilidade e inteligência que tinha percebeu o alívio na minha expressão. Na minha tola interpretação, acreditei piamente que o universo conspirava a favor de mim e Beatriz. Meu programa de sábado não seria no meio da juventude de alunos, mas, no meio que me era mais familiar, entre os amigos de Beatriz que acabaram sendo meus amigos também.

Troquei algumas mensagens com Beatriz nos dias que antecederam o churrasco do aniversário de Patrícia, todas cheias de reticências, mas, denotavam a saudade que ambas sentíamos. Clarisse mal me respondia as mensagens de “whatsapp”, sempre com respostas vagas, frias, ou pior, emotions que nada contribuíam em nosso diálogo.

Na sexta-feira, encontrei Cris e Ed, em um barzinho tradicional. Como supunha, Clarisse não comentara nada a respeito do meu deslize mais recente. Noite divertida com eles, mas meu pensamento continuava em Beatriz, e pior, ansiosa por reencontrá-la em um ambiente neutro, amigo, que ia nos remeter ao nosso cenário de namoro.

Com esse pensamento, me produzi para dar continuidade a meu projeto de reconquistar Beatriz. Cheguei ao churrasco sozinha. Reencontrei os amigos de Bia, alguns eram mais próximos a mim, e foram receptivos, desde o término do nosso namoro não os via, e logo, emendamos um papo animado, leve. Continha minha ansiedade, a cada carro que chegava, eu olhava buscando Beatriz.

E toda minha expectativa se transformou em uma situação angustiante. Para minha surpresa, e de Patrícia também, Beatriz chegou, acompanhada de Alicinha. O olhar de espanto da aniversariante em outra situação seria cômico. Patrícia me encarava com uma grande interrogação na face, da mesma forma olhou para Bia, essa por sua vez, estava visivelmente constrangida, enquanto Alicinha, distribuía simpatia até me ver. Nesse momento, a expressão de Alicinha se modificou, como um reflexo de auto proteção, eu desviei o olhar, depois me afastei da vista dela.

Depois de fazer seu papel de anfitriã, Patrícia se aproximou de mim, com toda discrição, que era característica dela.

-- Lu, eu juro que eu não sabia. Ela acabou de dizer que voltou antes para fazer uma surpresa à Bia...

-- Paty, relaxa, está tudo bem, eu sei que você não sabia, paciência... – Interrompi, tentando acalmar Patrícia.

-- Luiza, eu não sei o que está acontecendo entre vocês, mas, estou do seu lado, seja o que for, ok?

Sorri, era apenas o que podia fazer. Meu sorriso amarelo poupou maiores explicações. Minha pretensão era permanecer mais uma meia hora e sair de fininho, mas, a vida, como sempre fazendo piada das minhas desgraças, tinha planos diferentes para mim.

Quando saía do banheiro, objetivando ir embora da festa despercebida, eis que Murphy deu as caras, agora penso se foi mesmo culpa dele, ou se não foi a própria Alicinha a esperar uma oportunidade de estar sozinha comigo. Ela estava lá, encostada em uma pilastra.

-- Oi, Luiza.

-- Oi, Alicinha.

Continuei caminhando, para evitar um diálogo. No entanto, foi inútil.

-- Estava mesmo querendo falar com você, que bom que você está aqui, evita que eu a procure na universidade, a Bia, não ia gostar que eu levasse nossos problemas para o ambiente de trabalho dela.

Certamente, devo ter empalidecido. Imaginei mil hipóteses, em nenhuma delas, aquela conversa ia ser boa para mim.

-- “Nossos problemas”? Mas que problemas? De quem? - Indaguei controlando minha voz trêmula.

-- Meu e da Bia, claro. De quem mais seria?

-- Não sei, Alicinha. Se os problemas são seus com Beatriz, não posso supor o que você teria a falar comigo. – Disfarcei meu nervosismo.

-- Você é sonsa heim?

A hostilidade se apresentou de maneira evidente. Agora Alicinha deixava evidente que o teor da conversa me envolvia diretamente, supus que Beatriz revelara nosso reencontro, e de certa forma isso me deixou satisfeita, deduzi que nossa recaída teve repercussão no relacionamento delas.

-- Posso saber o motivo dessa ofensa gratuita? – Perguntei visivelmente nervosa.

-- Não é gratuita e você sabe disso! Voltei um dia antes da minha viagem com papai, pressentindo que havia algo errado com minha noiva, e eu suspeitava que essa tristeza dela, tinha um fundo de culpa seu, e eu estava certa!

Esse foi o momento, que me transformei em uma folha de papel A4.

-- Beatriz está triste por minha culpa? – Instiguei tentando sondar.

-- Você está usando do seu prestígio acadêmico para se vingar da Bia, prejudicando-a no doutorado. Primeiro fechou as portas para ela no grupo de pesquisa, agora deve estar pressionando o orientador dela que é seu amigo, para desestabilizá-la!

-- Eu... O quê? É disso que você está falando?

Não sei se suspirava aliviada ou se ria da defesa de apaixonada de Alicinha. Mas, enquanto eu franzia o cenho tentando compreender aquela situação, percebi a chegada de Beatriz, essa, estava tão pálida quanto eu, anunciando sua “culpa no cartório”.

-- Não imaginava pelas coisas que a Bia me narrava a seu respeito, sobre sua integridade, generosidade, que coubesse tanto recalque! Coincidentemente depois do nosso noivado, esse orientador dela está pressionando a minha noiva a cumprir prazos e não sei o que mais... Não entendo desse mundo aí de pesquisadores, onde o ego e o corporativismo de vocês se esbarra, mas, eu não vou permitir que você prejudique o crescimento da minha noiva na carreira dela! Ela será minha mulher e você vai ter que aceitar isso, que não tem mais poder sobre ela!

Aquela característica peculiar da minha personalidade de rir quando nervosa, agora, fazia todo sentido, rir era a coisa mais logica a fazer depois de ouvir aquele despautério, atitude que inflamou a ira de Alicinha.

-- O que foi? Está me achando com cara de palhaça? Por que essa risada? Está nervosinha? Achava que eu não tinha peito pra te enfrentar? – Alicinha berrou, se sacudindo.

-- Desculpe-me Alicinha, mas tenho que concordar com você. Realmente você não entende nada desse “mundo de pesquisadores” – Fiz o gesto das aspas – Eu não tenho o menor interesse em prejudicar o doutorado da Beatriz, sou co-orientadora dela, meu nome está na pesquisa dela. O que fiz foi apenas parar de ajudar, o que é compreensível, e eu julgo que ela seja capaz de fazer o trabalho sem mim.

Falei firme, com mais propriedade, não podia me deixar levar pelo nervosismo, por que afinal, a enganada ali, não era eu. Minhas palavras, confesso, proferi com petulância, contribuíram para aumentar a irritação de Alicinha.

-- Você se acha não é? Mas não passa de uma professora, porque tem um título de doutora acha que é alguma coisa... Uma professorazinha, e que levou um belo par de chifres!

Minha petulância desceu ladeira abaixo junto com minha segurança e propriedade, se tinha algo que me tirava o foco era barraco, tinha verdadeiro pavor de ser protagonista de cenas, aquela, era inédita. Encarei Beatriz que a essa altura já tinha os olhos marejados.

-- Sua noiva também é uma professora, e nem o título tem ainda de doutora, pelo que vejo, precisa dessa professorazinha aqui para tê-lo, mesmo depois de chifrá-la com a rainha do gado, que ironia não?

Não mudei meu tom de voz, apesar de sentir os olhos encherem-se de lágrimas. Alicinha parecia fumaçar pelos olhos, aos berros ela retrucou enquanto Patrícia já se aproximava atraída pelos gritos da noiva da amiga:

-- Quanto você quer? Qual é seu preço para deixar minha mulher em paz? Fala!

Se minha estrutura já estava balançada, aquela pergunta ofensiva, me fez cambalear, ainda sim, respondi:

-- Você quer que eu diga o preço em dólar, ou em cabeça de gado? Arrobas?

Alicinha se deu ao direito de se ofender, e por pouco não partiu para agressão física, se não fosse a intervenção da dona da festa.

-- O que está acontecendo aqui, gente? Que gritos são esses? Alicinha o que houve? Que descontrole é esse?

Patrícia disse trincando os dentes, com as sobrancelhas contraídas.

-- Paty, me deixa! Estou negociando aqui a paz da minha mulher, que essa daí está tirando! A Bia depois dessa sonsa empatar o doutorado dela, vive pelos cantos desconfiada, distante, estou lutando pela felicidade da sua amiga! Vamos, diga seu preço, Luiza!

Patrícia me olhava atônita, igualmente encarava Beatriz, e foi para esta que direcionei meu olhar e minha pergunta:

-- Você não vai dizer nada, Beatriz?

Bia, deixou uma lágrima escorrer pelo rosto, e permaneceu muda. Naquele momento, minha admiração por ela esmaeceu. Certamente, parte do meu amor por ela foi junto. A postura de Beatriz me envergonhou, tive nojo de sua covardia, e certeza do desmazelo dela com meus sentimentos.

-- A conversa é comigo, Luiza! – Alicinha bradou, afastando Beatriz para trás dela.

-- Você se engana, Alicinha, como você se engana. Não tenho nada a conversar com você, e nem com você, Beatriz, não mais.

Nesse momento procurei minha ex-namorada com o olhar, mas, seguramente, o peso da vergonha sobre suas pálpebras não deixou que ela sequer erguesse os olhos para mim.

-- Patrícia, perdoe-me, mas, preciso ir agora.

Sai da chácara de Patrícia, destroçada. Dirigi sem rumo, tentando digerir a humilhação que acabara de passar, nem as lágrimas consegui deixar escorrer, ficaram presas, entaladas, tive vergonha de mim mesma, como permiti que Beatriz me machucasse mais uma vez? Não conseguia culpa-la por minha dor, só tinha uma pessoa responsável por ela: eu mesma.

Entrei em ruas desconhecidas, parei algumas vezes, gritei, bradei esmurrando o volante do carro, queria colocar para fora aquele aperto, aquele ultraje. Pensei em ligar para Cris e simplesmente encher a cara, até vomitar tudo que me sufocava. Enquanto tentava alcançar meu celular na bolsa, deixei-a cair, espalhando no banco do passageiro os convites da calourada que comprei a Marcela.

Não pode ter sido o acaso. Foi o que pensei. Encarei os convites por alguns minutos, e decidi: preciso ir, quero os cuidados de Marcela.

O pensamento era insano, mas, só o fato de pensar em Marcela, já me dava um novo ânimo. Segui para o endereço indicado nos convites, cheguei no final da tarde. Tarefa difícil: descer do carro. Podia ouvir o som do pagode que vinha do clube, dezenas de carros estacionados, alguns com casais dentro, nos populares “amassos”, outra meia dúzia de grupinhos encostados pelo lado de fora com latas de cervejas nas mãos. E aí, cadê minha coragem de descer e enfrentar a “garotada”? Meu comportamento reto como professora, tomou posse de mim, e me sentir ridícula. Devo ter passado meia hora ali estacionada, até decidir dar partida, e ir embora. Dirigi em marcha lenta, olhando para dentro do clube, observando a motivação, quando uma jovem caiu no capô do meu carro.

Assustada desci do carro, temendo ter machucado gravemente a menina. Quando desci, a moça já estava de pé, se apoiando no carro.

-- Você está bem? Não entendo bem disso, mas acho que você deve continuar deitada...

Nervosa nem conseguia olhar para o rosto da garota, procurando os machucados nas pernas, quando a voz familiar me surpreendeu:

-- Keep calm professora, eu sou a socorrista de plantão, estou bem.

Marcela ajeitava os cabelos, afastando as madeixas do rosto, falando com a voz lenta.

-- Meu Deus! Marcela!

Aproximei-me para assegurar de perto que não haviam mesmo machucados.

-- Vamos para o hospital, fazer raio X, ver se quebrou algo...

-- Professora, relaxa! Só encostei, é que me desequilibrei, a senhora estava com o carro quase parado!

Marcela ria tranquilamente, enquanto eu, estava apavorada. Ela segurou meus ombros e disse firme:

-- Estou bem! A senhora não me machucou!

Os olhos esverdeados de Marcela estavam vermelhos. Senti o forte hálito de álcool também.

-- Tem certeza, Marcela?

-- Sim, não foi a senhora que me machucou.

Mais calma, pude observar com mais atenção Marcela, exibindo suas lindas pernas branquinhas, naquele mini short, uma camiseta despojada, e sandálias rasteiras.

-- A senhora está chegando agora não é?! Quase não acredito quando vi seu carro, estava na portaria!

Marcela dava sinais de embriaguez, estava mais simpática do que o normal. E lutava para ficar parada.

-- Acho que tem gente que já bebeu demais né?

Brinquei, em resposta, Marcela fez uma careta engraçada. Ouvi buzinas e só então me lembrei que estava com o carro parado na rua, interrompendo a passagem de outros.

-- Vamos tirar seu carro da pista, antes que a senhora receba xingamentos injustos!

Marcela caminhou até o meu carro e entrou pela porta do passageiro, e se sentou:

-- Vamos?

Eu olhava para Marcela, não sei se encantada, ou provocada pelo atrevimento dela. Rapidamente, apressada pelas buzinas, entrei no carro, e Marcela apontou uma vaga para estacionar. A garota desceu do carro, animada, e eu, completamente envolvida por sua presença, já nem pensava no que acontecera horas atrás comigo.

-- Toma uma tequila comigo, professora?

-- Tequila?! Menina! Isso é muito forte!

-- Ah! Não me chama de menina! Não sou menina!

Imediatamente lembrei-me das outras vezes que Marcela me fez o mesmo pedido.

-- Só mania de falar, Marcela. Desculpe-me.

-- Desculpo se tomar uma tequila comigo! – Marcela fez bico.

-- Tudo bem, vamos lá!

Devo ter perdido o juízo, junto com a minha vergonha. Topar tomar a bebida que eu batizei de “satanás engarrafado” com uma garota que me encantava, me atraía como imã, isso não podia ter um resultado sensato, mas, sensatez era a última coisa que eu procurava naquele momento.

-- Formou! Senti firmeza, professora!

Marcela me deu um sorriso cheio de charme e eu devolvi, certamente pela primeira vez, de maneira desarmada. O clima descontraído foi desfeito bruscamente, Marcela foi tomada por um garoto, que lhe roubou um beijo, agarrando-a pela cintura.

-- Porra, tá maluco? – Marcela disse, empurrando o garoto.

-- Qual é, Mah? Vai fazer doce agora?

-- Que mané fazer doce?! Acha que é só chegar me agarrando assim Henrique?

-- Ah Marcela! Provoca, provoca, só pra me deixar doido né? Na hora H, posa de santa!

-- Você é pancado da cabeça, isso sim!

Marcela fez um gesto qualquer e fez sinal para que continuasse a segui-la. Confesso que vê-la sendo beijada me perturbou. Não sei se posso definir como ciúmes, perdi o fôlego, senti um aperto esquisito no peito. A reação de Marcela, trouxe me um pouco de alívio, mas logo, senti uma nova angústia crescer.

Henrique segurou Marcela pelo braço com violência, tentando forçar outro beijo, foi empurrado com força pela garota que bradou:

-- Ei! Você tá vacilando!

-- Para porra! Eu te conheço pow, pega geral, agora vai se fazer de difícil?

-- Eu o que? Tá maluco? Ah vai te catar Henrique! Bebeu que nem um gambá e fica dizendo merda aí!

-- Marcela, qual é! Tá querendo enganar quem? Todo mundo sabe quem você é!

-- Ah vá se ferrar!

Marcela já demonstrava sinais de desconforto e irritação. Meu primeiro impulso foi de protege-la, defende-la, mas, ao que me parecia, ela sabia fazê-lo muito bem sozinha.

-- Ah eu espero você beber um pouco mais, vai, daqui a pouco você está mais fácil como sempre fica...

O comentário cafajeste irritou Marcela a ponto de despertar sua fúria. O rosto ruborizou-se, e ela empurrou o peito do garoto com as duas mãos, fazendo-o perder o equilíbrio e cair por cima de um dos carros estacionados.

-- Maluca! - O rapaz berrou, furioso.

-- Fique longe de mim, saí daqui pianinho! Acha que pode comigo? Eu te detono pra todo mundo seu mané!

-- Pancada você é! Eu heim!

Nesse momento outros colegas se aproximavam e afastaram Henrique dali. Marcela mantinha sua postura de ira, no entanto, bastou que os colegas se distanciassem dali, para se desarmar e mostrar sua fragilidade naquela situação. Vi seus olhos marejarem, com algum temor de invadir sua intimidade, fiquei perto dela o suficiente para perguntar em voz baixa:

-- Está tudo bem?

-- Não...

Procurei os olhos de Marcela, e fui invadida pela vontade de cuidar dela, agora, era minha vez. Abracei-a, foi um gesto impulsivo, mas, entendi que ela precisava dele, me apertou forte, senti as lágrimas dela molharem meu ombro.

-- Está tudo bem, garotos ficam mais bobos quando estão bêbados.

-- Eu não sou essa menina fácil não, professora!

-- Ei! – Puxei o rosto dela e segurei seu queixo – Vai deixar que um menino idiota te abale? Essa não é a Marcela que eu conheço!

Eu queria mergulhar naqueles olhos, queria prendê-la em meus braços, queria tirar com a mão aquilo que a machucava, mal me lembrei da minha própria dor.

-- Professora, me tira daqui?

-- Oi? – Assustei-me com o pedido.

-- Não quero voltar lá pra dentro... Ah, só me deixa em um ponto de ônibus, ou em um táxi...

-- Para, para... Não precisa se explicar, eu te tiro daqui sim.

Não sei exatamente o que se passava na cabeça de Marcela, mas seu pedido foi para mim imperativo. Em outra circunstância, fantasiaria que a frase :“me tira daqui” teria outra conotação, mas, a vulnerabilidade da garota não permitiu que eu enxergasse qualquer malícia, ela precisava de cuidado, e carinho, o qual já tinha me destinado, era hora de retribuir.

CAPÍTULO 9: LIÇÃO 7 – FIQUE ATENTA AOS SINAIS

Marcela permaneceu calada pelo trajeto, alheia ao percurso que eu fazia. Mesmo tendo que estar concentrada na direção, eu não conseguia deixar de procura-la com meus olhos, e quão angustiada eu fiquei ao notar lágrimas verterem silenciosamente naquele lindo rosto.
Segui pelo caminho que eu me lembrava de tê-la deixado com a amiga, no dia do porre de Jessica, deduzi, que eram colegas de apartamento. Em frente ao prédio que a deixei em outra ocasião, estacionei, só então Marcela desviou o foco da atenção para mim.

-- Você está bem? Quer que eu suba com você? – Perguntei, mansamente.

-- Por que estamos em frente ao prédio da Jéssica?

-- Não é aqui que você mora?

Marcela riu, e mesmo com o nariz e as bochechas vermelhas, denunciando seu choro recente, ela conseguia trazer ao seu rosto aquele sorriso que iluminava qualquer ambiente, meus olhos pareciam sofrer o impacto de uma flash de câmera fotográfica: minha visão se perdia, diante de tanta luz.

-- Não, professora, eu moro com meus pais, na zona leste da cidade. Aqui, mora a Jéssica.

Ela ainda tinha a fala enrolada, explicava lentamente, com dificuldade de concatenar o pensamento.

-- Ah... Eu pensei que... Mas, me diga, onde você mora...

-- Professora, não quero, não posso ir pra casa assim...

-- Mas... Onde você quer ir?

Marcela ficou calada, como se experimentasse decepção, ou pelo menos, era isso que eu queria acreditar. Rapidamente, a menina decidiu:

-- Já que a senhora me trouxe para cá, vou ficar aqui. Ela... Jéssica, deixa a chave...A reserva em um esconderijo, vive perdendo a bolsa... Fico aqui mesmo, obrigada, professora, pela carona.

Eu não esbocei reação, não sabia o que fazer, ou pelo menos supor o que Marcela queria ao me pedir para que a tirasse da festa. A menina saiu do carro, sem esperar minha resposta à despedida e ao agradecimento. Observei ela cambaleando até a porta do prédio. Não hesitei, e como um reflexo, saí do carro e a segurei pela cintura dizendo:

-- Você não vai ficar sozinha, hoje, sou eu que vou cuidar de você.

Surpresa, foi a vez de Marcela não esboçar reação. Conduzi-a de volta para meu carro, e a levei para minha casa. No trajeto, ela só repetia, o mesmo discurso, coisa típica de pessoas embriagadas:

-- Eu não estou acreditando, que aquele Mané estragou minha festa. Quem ele acha que é? Quem ele acha que eu sou? Eu sou o que? A Marcela da calourada! Eu não sou periguete... Eu não sou...

O discurso se repetia, as vezes só algumas sentenças, outras vezes, sentenças repetidas em sequência. Nas três primeiras vezes eu respondi, nas outras, eu me detive a rir apenas. Chegando ao meu prédio, estacionei na garagem, e levei Marcela até meu apartamento, segurando-a pela cintura, uma vez que ela não conseguia se manter em postura fixa. Eu pensava o que diabos eu estava fazendo, trazendo uma aluna bêbada para minha casa, isso era completamente inapropriado, e inédito na minha carreira. Eu era uma das professora mais sérias, e censurava veementemente amigos da classe que se envolviam com alunos.

No entanto, Marcela não era uma aluna qualquer, e principalmente, eu não conseguia imaginar, nem muito menos aceitar que minha atração por ela era real. Impus-me uma barreira surreal, atribuindo a Marcela o papel de menina intocável, proibida pra mim.

Meus planos eram objetivos: preparar o sofá cama do meu escritório, que sempre abrigava meus amigos que dormiam em minha casa, e preparar algo para que ela comesse, oferecer-lhe um banho, coisas do tipo que sempre fiz com meus amigos em porre.

-- Marcela, você quer tomar um banho? Tem toalhas limpas no armário do banheiro, vou providenciar uma roupa leve para você usar, depois, toma um café comigo?

-- Tá, professora.

A menina disse isso, com um tom desconfiado, encostada na parede.

-- O banheiro, é a segunda porta, vou deixar a roupa no quarto vizinho, tudo bem?

Marcela acenou em acordo, segui para meu quarto, enquanto abria o closet para pegar os itens que precisava, ouvi os passos de Marcela se aproximando, e me surpreendi com ela ali no meu quarto.

-- Eu preciso dizer uma coisa a senhora...

-- O que houve? Não está se sentindo bem?

-- Não, não mesmo.

Marcela se desequilibrou e de pronto a segurei, ficamos a poucos centímetros, ela encarou minha boca, e eu fugi do seu olhar, não resistiria por mais um centésimo de segundo se permanecesse ali. Coloquei-a sentada em minha cama.

-- Sente-se, antes que você caia. – Disse nervosa.
-- Eu preciso dizer uma coisa...

-- O que, Marcela? Quer vomitar? Quer que eu te leve à emergência?

-- Não, eu quero dizer uma coisa...

A insistência dela, me fez criar um milhão de hipóteses, fantasiei Marcela se declarando para mim, e mesmo desejando isso, sabia que o mais sensato era evitar aquele tipo de conversa. Eu estava vulnerável, carente, sofrera mais uma vez a humilhação de Beatriz e Alicinha, e ela por sua vez, estava fora de si.

-- Marcela, é melhor você tomar seu banho, depois comer algo e descansar, amanhã você vai acordar com uma baita ressaca...

-- Professora, preciso que a senhora saiba, eu não sou aquilo que o Henrique falou!

Marcela me interrompeu, falando mais alto. Olhei a com certo alívio, sentei ao seu lado na minha cama e disse:

-- Eu sei, não precisa se justificar comigo.

-- Eu preciso sim! Não quero que a senhora pense que eu sou uma vagabunda, como aquele filho da mãe me tratou... Não posso ficar mal na fita com a senhora.

-- Ei... Calma, só quem ficou mal na fita comigo, foi o tal garoto. Ele já é meu aluno? Se for, está ferrado comigo!

Marcela deixou um sorriso de satisfação escapar.

-- Não, ele não estuda na mesma universidade. A senhora acredita mesmo em mim?

-- Claro que sim, Marcela.

Os nossos olhos se encontraram, e como se fosse possível, enxerguei com mais precisão a beleza no rosto daquela menina, de tão perto, os seus olhos ficavam ainda mais lindos. E quando a aproximação se tornou de novo mais perigosa, eu levantei a barreira e me pus de pé rapidamente anunciando:

-- Vou pegar uma roupa para você usar depois do banho. Enquanto você toma banho, eu preparo algo para comermos.

Eu já estava de pé, quando Marcela segurou minha mão. Acho que minha palidez, taquicardia e o gelo nas mãos foi instantâneo.
-- Professora, muito obrigada.

A mão dela, macia, tão pequena, tão suave seu toque, olhei achando encantadora até suas unhas curtas, eu conseguia enxergar nos detalhes mais banais um brilho, uma estrela a mais no corpo, na personalidade daquela menina.

-- Não há o que agradecer.

Apertei sua mão e desvencilhei a minha com dificuldade.

-- Marcela, tome banho aqui mesmo no meu banheiro, já que você já está aqui. Tome, um pijama confortável, está ficando frio. Vou preparar algo na cozinha, já venho.

Fiz questão de demorar o maior tempo possível, preparando um café forte, e acompanhamentos. Arrumei o sofá cama, e voltei com passos lentos ao meu quarto. Marcela não fazia barulho, bati antes de entrar, e não tive resposta, como a porta não estava trancada, adentrei lentamente, e a vi, deitada na minha cama, com apenas a parte de cima do pijama, em sono profundo.

Que imagem linda!

Não estou me referindo SÓ às curvas de Marcela, expostas naquela micro calcinha. Estou me referindo a linda imagem daquela menina de pele vistosa, os traços delicados e simetricamente perfeitos, apesar de não ser esse contexto, o repouso de Marcela, lhe dava um aspecto angelical. Não a observei com malícia, a pureza do meu olhar me assustava, o sentimento que me invadia era diferente, limpo, pacificador. Com muito cuidado para não acordá-la, ajeitei-a na minha cama, envolvi-a com o cobertor, apaguei as luzes e, antes de fechar a porta, olhei-a novamente, involuntariamente suspirei.

Tomei o lugar dos hóspedes em minha própria casa. No sofá cama, deitada, abri meu notebook, fucei as fotos da festa de Patrícia, como quem cata motivos para justificar o sofrimento, busquei as imagens que registravam Alicinha e Beatriz. Ressenti o que passei naquela tarde, e mais uma vez, aquele amargo da humilhação deixou minha mente pesada. Vez por outra antes de dormir, fui até meu quarto, me certificar do bem estar da minha linda hóspede. Em todas as vezes, ajeitei-a na cama, uma vez que ela sempre estava à beira de uma queda, pelo tanto que se mexia dormindo. Lancei mão de um artifício que as mães fazem com bebês, e a cerquei de travesseiros, obviamente, não evitei o riso solitário, diante daquele cuidado maternal com Marcela.

Observá-la não era só um cuidado a mais no seu estado, era um pouco egoísta. Só o fato de sentir a presença de Marcela, inexplicavelmente amenizava o ranço que minha alma experimentava. Nem mesmo recorri ao meu amigo Rivotril naquela noite, eu não queria “apagar” e deixar de velar o sono da minha hóspede. E assim, entre cochilos, eu passei minha noite, hora eu revivia o pesadelo da discussão com Alicinha, hora eu me refugiava no cuidado com Marcela em meu quarto. Da varanda da sala, vi o sol nascer. Noite mal dormida, e o crescimento do rancor chegava ao seu ápice. Minhas reflexões naquele tempo me fez identificar os sinais que eu não estava atenta o suficiente até então.

Sinais de que não havia mais um “nós” entre eu e Beatriz, deixamos de ser um casal quando ela escolheu Alicinha, preterindo nossa história, como não vi esse sinal do fim? Sinais de que não havia nada a ser reconstruído, quando Beatriz me colocou na condição de clandestina na nossa recaída. Sinal que o caráter da Bia era fraco, quando ela deixou que sua atual noiva, desdenhasse de mim, em uma postura deplorável. Os sinais estavam todos ali. Não existia mais um “nós”, mas se desfazia um nó na minha ignorância sentimental: decretado enfim o ponto final naquela história.

Preparei um café da manhã, daqueles, que estava acostumada a fazer para meus amigos de ressaca. Entretida nas minhas reflexões e afazeres de anfitriã, não dei atenção ao meu celular desde o dia anterior, e como era de se esperar: centenas de mensagens e ligações perdidas dos meus amigos, inclusive da Clarisse, que há dias não falava comigo. Respondi sucintamente, a ela, Ed e Cris. À Patrícia, me detive a tranquiliza-la, afirmando que estava bem, agradecendo a preocupação. Enquanto montava a mesa para o café, depois de uma conferida em Marcela, ainda dormindo em minha cama, meu celular tocou, era Clarisse.

-- Oi! Resolveu “desentrigar” de mim? – Perguntei irônica.

-- Não estava intrigada de você, para com isso!

-- Pensei que ia precisar ir te pedir perdão de joelhos, pelo que não sei exatamente...

-- Ai, Luiza! Vai ficar com sua ironia mesmo? Essa hora da manhã? Depois de não me atender, não responder mensagem. Estávamos preocupados com seu sumiço, tive que me desdobrar para não deixar o Ed ir aí, afinal, não sei se você estaria acompanhada...

-- Pode ir parando... – Interrompi.

-- Ué! Não tenho motivos?

-- Clarisse... Não vamos falar nisso, não agora, não por telefone...

-- Ok. Está em casa?

-- Sim, estou.

-- Vim fazer umas compras aqui na feirinha perto do seu prédio, vou levar umas coisinhas para tomar café com você e conversarmos.

-- Mas, é que...

-- Entrando no túnel, vai cair a ligação, até já...

E a ligação caiu, e o celular dela ficou fora de área. Ótimo! Clarisse, mal me perdoou pela recaída com Beatriz, e ia encontrar Marcela na minha cama, dessa vez, minha amiga me jogaria aos lobos! Sem nada fazer, lá estava eu, metida de novo em uma confusão.

Era fácil se eu contasse com a sorte de Marcela não despertar tão cedo. Manteria minha amiga na cozinha, tomando café e inventaria uma desculpa para sua visita ser breve, uma visita à casa dos meus pais! Pronto, já tinha uma desculpa para apressá-la.

Em poucos minutos, Clarisse pedia autorização para subir. Abri a porta da cozinha, convidando-a para entrar. Minha amiga me abraçou rapidamente e colocou alguns itens sobre o balcão da cozinha.

-- Fez o café? – Clarisse perguntou.

-- Sim.

Clarisse foi se servindo sem cerimônia, era de casa.

-- Argh! Que café forte! – Olhou em volta, fazendo careta – Suco desintoxicante? Xi, você está de ressaca?

-- Não... Eu comi besteira demais ontem... E errei a mão no café, tá forte né? Foi mal...

Disfarcei e puxei outro assunto.

-- Você trouxe aquele croassant de queijo com ervas? Jura?

-- Trouxe, sei que você adora o daquela padaria...

-- Ai! Você é demais Clarinha!

-- Nossa, faz tempo heim?

-- O que?

-- Que você me chama assim: Clarinha.

-- Você só tem me dado bronca ultimamente, nunca mais fez essas fofuras comigo! Talvez, seja por isso que não te chamei mais assim.

-- Dei bronca porque você mereceu! Porra Luiza...

-- Tá bom, tá bom... Olha, só pra evitar que você me dê mais bronca, deixa eu contar... Ontem fui no aniversário da Patrícia, já estava vindo embora quando a Alicinha me abordou, pedindo meu preço para deixar a noiva dela em paz, rolou um barraco básico, e o resultado disso, é que eu enterrei definitivamente, em cova profunda, ou melhor incinerei, qualquer vestígio de esperança ou delírio de retomar minha relação amorosa com a Beatriz.

-- Espera, não entendi. A Alicinha te ofereceu dinheiro pela Bia?

Clarisse gargalhou, e eu a acompanhei nas risadas. Detalhei o que se passou, e mesmo com as caras e bocas de censura, minha amiga me escutou pacientemente, e no final de tudo, deixou escapar a frase típica dela:

-- Joga a terra, argamassa, enterre e concretize!

-- Isso mesmo, sepultar!

Eu tentava esconder ao máximo minha apreensão, o medo de Marcela surgir na porta da cozinha, desorientada, só com a parte de cima do pijama, passou a me atormentar. Era hora de jogar a estorinha para me livrar de um possível flagrante de Clarisse.

-- Clarinha, estou adorando sua companhia, mas... Eu prometi a meus pais que iria passar o dia com eles, vou subir a serra...

-- Ah! Não precisa se explicar amiga, entendi. É bom você ser paparicada um pouco mesmo hoje.

Meu celular tocou na sala e me apressei em pegá-lo, era justamente minha mãe. Murphy me ama! Para evitar o diálogo que denunciaria minha mentira, fui andando até a sala para falar, para minha surpresa, Clarisse veio logo atrás de mim, quando a olhei ela sussurrou para que eu lesse seus lábios:

-- Vou pegar meu casaco que esqueci aqui, está no closet?

-- Sim...Não! Espera mãe, não falei com a senhora...

Atrapalhação total, e não deu tempo eu evitar Clarisse alcançar o meu quarto.

-- Mãe, aguenta aí, ligo daqui a pouco.

-- Você sempre diz isso e nunca liga.

-- Mãe, é rápido! Beijo!

Corri, e puxei Clarisse que estava parada à porta. Catatônica, queixo caído. Marcela, dormia o sono dos justos, alheia a sua bundinha arrebitada exposta, porque nem os travesseiros estavam mais na cama, nem muito menos o cobertor a protegia. Clarisse olhou-me com a censura que só vi nos olhos da minha mãe, quando me flagrou beijando a Aline no meu quarto, minha melhor amiga na adolescência. No corredor, eu pedi:

-- Calma! Não é nada disso que você está pensando!

-- Dá pra ser um pouquinho mais original?

Cochichávamos. Eu me comportava como se estivesse mesmo diante da minha mãe. Clarisse tinha esse talento: despertar o temor de suas lições de moral, talvez pelo fato de estar quase sempre certa.

-- Não me veio frase melhor, porque realmente, não é nada disso do que você está pensando!

-- Luiza! Essa menina é maior de idade? Você perdeu o juízo depois que da briga com a Alicinha? Vai agir como a Cris, agora?

-- Ei! Ela é maior de idade sim! É do quinto semestre de medicina!

-- O que? Ela é uma aluna?!

-- Shiii. Ela é uma aluna sim, mas, não é o que você está pensando!

-- Luiza, ela está só de calcinha, na sua cama!

-- Ow! Ela não está só de calcinha!

-- Não importa, está seminua, na sua cama! E você com essa cara de culpa, como não percebi?! Essa conversa de ir visitar seus pais era pra me tirar daqui, não era?

-- Era... Mas...

-- Luiza, a Beatriz acabou com sua sanidade! Uma aluna? Quantas vezes já não discutimos sobre isso?! Vai entrar nesse caminho, vai abrir precedentes?

-- Clarisse, pode parar! Não comece a dissertar sobre ética na relação aluno-professor, eu estou tentando lhe dizer, que ela é sim aluna, está na minha cama, mas, não aconteceu nada entre nós!

Puxei Clarisse pelo braço e mostrei o sofá-cama montado e ainda bagunçado, no meu escritório.

-- Eu dormi aqui! Olha!

Entramos no escritório, e Clarisse, ainda intrigada, mantinha sua postura de desconfiança. Cruzou os braços, e indagou:

-- Desde quando, você traz alunos para dormir na sua casa, pior na sua cama?

-- Clarisse, pega leve. Não é um hábito, Marcela é uma exceção. A menina bebeu demais, dei uma carona, porque ela é uma aluna especial, enfim, outra hora te conto detalhes. Ela pegou no sono na minha cama, e a deixei dormindo, e dormi aqui!

-- E você encontrou essa menina na rua, perambulando, bêbada?

-- Claro que não! A Marcela não é disso!

-- Ai, desculpa, a Marcela... O nome dela é Marcela. Já que ela não é “disso” – fez as aspas com os dedos – Aonde você encontrou a Marcela, bêbada?

-- Na calourada. – Balbuciei com tom de culpa, sentindo que lá vinha outro chilique.

-- Oi? Você foi na calourada? Ow ser estranho, abandona esse corpo, devolva minha amiga!

-- Eu saí meio sem rumo, e aí, achei os convites que comprei para ajudar, e achei que era um sinal, e fui, ainda bem, assim, pude ajudar a Marcela, preencheu meu tempo, minha cabeça.

-- Sei...

-- Não está acreditando em mim? Clarisse, quando eu menti para você?

-- Hoje? Dizendo que ia visitar seus pais na serra pra me despachar e eu não flagrar sua mais nova pupila na sua cama!

-- Primeira vez! Para evitar essa cena, sabia que você pensaria o pior!

-- Luiza... O que você está me escondendo?

Eu e essa mania de ser transparente... Clarisse certamente captou nas entrelinhas, e naquele contexto todo, o quão especial Marcela já era para mim. Insistir em me mostrar indiferente, eu estava tão confusa, nem eu mesma me entendia, como explicar a alguém, e externar o fascínio por uma menina?

-- Nada! Não viaja, Clarinha! Deixa eu acordar essa menina, nem sei onde ela mora, com quem mora, devem estar preocupados.

-- Vou te ajudar nisso...

-- Clarisse, não. Ela nem te conhece, vai acordar de ressaca e morrendo de vergonha, por estar desse jeito na casa da professora, por favor, mais tarde almoçamos juntas, ou vamos ao cinema, pode ser?

-- Luiza...

-- Clarisse, por favor...

Ela concordou, insatisfeita, isso era evidente.

-- Tá... Ligo mais tarde.

Clarisse deixou meu apartamento, e eu, preocupada com o avançado da hora, segui para meu quarto, objetivando acordar Marcela. Sentei-me no pequeno espaço que ela deixou na cama, ela estava deitada na diagonal, imagino, se ela dividisse com alguém uma cama, quão complicado seria...

-- Marcela... – Mexi nos seus ombros – Marcela, acorda, já está tarde...

Meu tom de voz baixo, certamente não despertaria uma pessoa em estado normal, o que dirá de ressaca. Na verdade eu tinha mesmo pena de despertá-la de seu sono, tão linda, tão angelical, contemplei-a e insisti em acordá-la, quando notei ela se mexendo, apertando os olhos.

-- Professora Luiza? Eu... Tô sonhando?

-- Não sei... Você consegue abrir seus olhos mais um pouco? Ou a dor de cabeça já está pesando nos seus olhos? – Brinquei.

-- Aai... Estou acordada sim... Que dor filha da mãe! Pensei que fosse sonho, acordar do lado da senhora... Peraí! Onde eu estou? Ou melhor, onde nós estamos?

Marcela estava tão confusa, seu tom era cômico para mim. Tentando se ambientar, ela olhava em volta do quarto, levantou o cobertor e deixou escapar:

-- Puta que pariu! Eu estou só de... Professora... Isso é o quarto da senhora?

Gargalhei, não me contive com a reação dela, as bochechas lindas, estavam mais rosadas pela timidez.

-- Sim, é meu quarto.

-- Mas... Eu fiz algo com a senhora? A gente... Ai meu Deus!

-- Ei! Calma aí... Como assim você fez algo comigo? A gente, o que?

-- Professora, eu não lembro de quase nada... Como eu vim parar aqui?!

-- Fui a calourada, e você me encontrou, teve um desentendimento com um garoto abusado, pediu que eu te tirasse de lá, e que não podia ir para casa naquele estado, então, eu a trouxe para cá, e depois que você tomou banho, pegou no sono, e só acordou agora, quase nove da manhã.

-- Ai meu Deus!

Marcela deu um salto da cama, tonta, quase se espatifou, se eu não tivesse de pronto para segurá-la. Alguns segundos, e a menina percebeu seus trajes e voltou para cama na mesma rapidez, repetindo:

-- Ai meu Deus!

Não conseguia conter meu riso, Marcela conseguia demonstrar ser tão atrapalhada quanto eu.

-- Eu superei a Jéssica, cara, não acredito!

-- Pelo menos, não vomitou meus pés, se isso te consola.

-- Já é um consolo, mas, não diminui minha vergonha!

--Não há motivos para envergonhar-se, está tudo bem. Mas, acho melhor você ligar para alguém, sei lá, você saiu sem dar satisfações na festa... Seu celular está aqui na cabeceira.

-- Tenho que ligar mesmo!

-- Vou deixar você à vontade, depois venha para cozinha, preparei um café forte para você, e acho que você também precisa de um analgésico, não é?

-- Definitivamente, sim!

Saí do quarto, com a curiosidade aflorada. Para quem ela precisava ligar? Ora, Luiza! O que isso te interessa? Meus devaneios logo tiveram outro foco: sonho? Seria um sonho acordar do meu lado? O que Marcela quis dizer com isso? Ah, quantos delírios, quantas hipóteses! Minha cabeça fervilhava, como aquela menina mexia comigo, a desconfiança de Clarisse tinha mesmo fundamento, Marcela estava rompendo uma barreira histórica em minha vida, e eu, tinha medo de atestar o porquê disso.

Em poucos minutos, Marcela chegou à cozinha, vestida na roupa que usara no dia anterior. Rosto limpo, mas, as marcas do porre estavam evidentes.

-- Nossa! Que mesa farta! Não precisava se incomodar, professora. Agora estou mais sem graça ainda, dando tanto trabalho...

-- Shi... Você é minha hóspede, só estou cuidando de você, coisa que você já fez outras vezes por mim não é?

-- Trocamos os papéis – Respondeu sem graça se sentando.

-- Tome esse analgésico, e beba esse suco, você ainda não pagou farmacologia, mas, vai aprender que tudo que você está sentindo, é efeito da desidratação das células que o álcool provoca.

-- A doutora é a senhora, não ouso questionar, apesar da cor ser meio estranha... O gosto deve ser parecido né? – Fez careta.

-- Melhor do que o gosto de cabo de guarda-chuva que você está sentindo agora... Vamos, não enrola, toma tudo.

-- Ai, quando a senhora manda assim em mim, parece minha mãe... Ops, desculpa.

Marcela se desculpou ao notar minha expressão mudar quando ela de novo, me comparou à sua mãe.

-- Então seja uma menina obediente, e tome tudo de uma vez só!

Provoquei, sabendo que ela não gostava de ser chamada de menina. Fez bico imediatamente e franziu o cenho manifestando sua insatisfação com o título de menina. No entanto, obedeceu.

-- Argh... Essa é a hora que eu vomito?

-- Não, essa é a hora que você toma o café que lhe preparei.

Fui servindo Marcela, percebendo que era observada todo instante. Ela bebericou o café forte, repetiu a careta, aliás, ela fez isso a cada gole, a cada mordida que dava nos biscoitos.

-- Eu agora, me lembro de algumas coisas... Aquele zé ruela do Henrique me disse uns absurdos não foi?

-- Sim, acho que era esse o nome dele.

-- Ele me paga...

-- Esquece isso Marcela, não vale a pena.

-- Estragou minha festa! Justo quando a senhora chegou! Ainda não acredito que a senhora foi mesmo à calourada! Ai professora, tá me dando muita moral, viu?

-- Pois é, também acho. Mas, recebi um sinal e atendi, a minha socorrista precisava de mim.

-- Sinal?

-- É, você não acendeu o holofote com a imagem do morcego? Sou o Batman, você está na minha bat caverna, agora sabe meu segredo.

Brinquei arrancando aquele sorriso estonteante de Marcela.

-- Saber seu segredo... Isso seria uma informação valiosa!

-- Valiosa pra que? Pretende me chantagear? Não esperava isso de você.

-- Nossa, a senhora está sempre na defensiva professora! Por que pensa só nas coisas ruins? Por que eu chantagearia a senhora? Seria uma informação valiosa, por que assim poderia conhecer melhor a senhora, só por isso.

Fiquei sem palavras, que habilidade Marcela tinha de fazer isso: me deixar sem palavras. Engoli seco, baixei a cabeça e disfarcei meu constrangimento tomando um gole de café.

-- Mas, fique tranquila, fora a suspeita da senhora ser o Batman, não sei nada mais do que a senhora me revelou, isso me basta para admirá-la, e ser ainda mais grata, primeiro por minha amiga Jéssica, agora por mim. Muito obrigada.

-- Não precisa agradecer, você é uma aluna especial, Marcela. Era minha obrigação.

-- Aluna especial... Fez por obrigação... – Marcela repetiu minhas palavras num tom decepcionado.

-- Eu quis dizer que...

-- Tudo bem, professora, não precisa se explicar, entendi. Eu vou indo, tomei tempo demais da senhora, e já lhe dei muito trabalho, está tarde, preciso ir.

-- Não precisa se apressar, me deixa te levar em casa ao menos.

-- Não, imagina, a senhora já fez demais! Pego um táxi, rapidinho estou em casa.

Sem protelar sua permanência para meu desgosto, Marcela se levantou, pegou sua bolsa de alça transversal, e antes de sair pela porta da cozinha, se aproximou de mim, e beijou minha face. Aquele ósculo suave, acendeu um calor insano em mim. Foi uma fração de segundos, mas um turbilhão de sensações se fez, devo ter ficado paralisada, e corada também, porque percebi no canto dos lábios da menina, um riso discreto se formar.

-- Até amanhã, professora.

Deixou minha casa, antes mesmo que eu recuperasse minha voz e lhe respondesse. Os lábios macios de Marcela em meu rosto deixou uma marca invisível e misteriosa em mim, o suficiente para roubar minha paz.

CAPÍTULO 10: LIÇÃO 8 – RECONHEÇA O FINAL DE UMA BATALHA

Nova semana se iniciava, e lá ia eu para enfrentar minhas próprias guerras. Encarar Beatriz, mostrar uma superioridade que eu não sabia de onde tirar, dar explicações a Clarisse pelo episódio do dia anterior, já que eu não cumpri minha palavra de liga-la no mesmo dia, acabei indo mesmo visitar meus pais, e como se não bastasse esses enfrentamentos, ainda me restava o mais doce, e mais intrigante: reencontrar Marcela.

Patrícia foi a primeira a me cumprimentar na sala dos professores no departamento de Farmácia:

-- Lu! Nossa, eu estava ansiosa pra que você chegasse!

-- Oi Paty, cheguei.

-- Como você está? Não tivemos tempo de conversar, eu estou tão constrangida, me sentindo tão culpada, insisti para que você fosse, e acabei te expondo a uma situação chata...

-- Paty, você não me expôs a nada, quem fez isso foram outras pessoas, inclusive eu.

-- Ficou um climão entre as duas...

-- Paty, posso te pedir uma coisa?

-- Claro, Lu.

-- Não vamos mais falar nesse assunto, tudo bem?

-- Claro, tudo bem Luiza, é melhor mesmo.

-- Eu acho melhor me apressar, o maior tempo que conseguir evitar encontrar nossa cara coordenadora de curso, melhor pra mim...

-- Sua pressa, não adiantou nada, amiga...

Patrícia olhou em direção à porta, institivamente olhei na mesma direção, e vi Beatriz chegando. Dessa vez, não respondi nem mesmo ao cumprimento formal dela. Esperei ela seguir para sala dela, ignorando o olhar dela sobre mim, e saí da sala, me tremendo confesso. O abalo não tinha mais o gosto do término, e sim, o sabor de raiva, indignação e vergonha, por ter me permitido uma recaída tão dantesca como a que tive por ela.

Meu horário de almoço foi reservado para finalizar a prova que seria a primeira parte do processo seletivo para o GRUFARMA, as inscrições se encerrariam naquele dia, logo, saberíamos quantos candidatos teríamos para as quatro vagas disponibilizadas.

A tarde me reservava o reencontro com Marcela. Confesso minha ansiedade. Mentalmente, comecei a exercitar a ideia que justificasse tamanha ânsia, que não se explicasse com meu encantamento por aquela aluna. Pensei: talvez, se meus pais não tivessem resolvido parar a ter filhos depois de mim, eu teria uma irmã da idade de Marcela, era isso, tinha uma afeição fraternal pela menina, uma afinidade. Bastaram alguns segundos para eu reconhecer o quão ridícula era minha justificativa, e o quão incestuosa também ela começava a se configurar.

Em meio aos meus pensamentos um tanto quanto perturbadores, não vi o tempo passar, perdi a hora do almoço, e só fui desperta pela chegada de Beatriz na minha sala no laboratório.

-- Procurei você no refeitório, e na sala dos professores, não te encontrei, imaginei que estivesse escondida aqui.

-- Não estou escondida. Estou trabalhando.

-- A gente precisa conversar, Luiza.

-- A gente? Engano seu, você pode querer me dizer algo, eu não, então, não tem “a gente”.

-- Luiza, não seja intransigente. Nós precisamos sim conversar. Nós somos colegas de trabalho, tivemos um relacionamento, você não pode me hostilizar assim, como fez logo cedo...

-- Eu não posso? Claro que eu posso! Eu posso agir com você da forma que eu quiser, sem ter que me apegar a nenhum tipo de política de boa vizinhança, porque você, Beatriz, perdeu o direito de esperar de mim até respeito, que dirá polidez!

Eu já estava exaltada a essa altura, levantei-me e indiquei a porta para Beatriz.

-- Não tenho mais nada a conversar com você, nada do que você tenha a me dizer me interessa ouvir. Saia da minha sala, por favor.

-- Luiza...

-- Agora, Beatriz!

Chegando enfim a hora da aula de Farmacologia na sala de Marcela, encontrei-a sentada no lugar de sempre, mal me encarou. Deduzi que estaria envergonhada pelo que acontecera. Confesso minha atitude protecionista: naquele dia, não a provoquei, não lhe dirigi perguntas, respeitei a ressaca moral da minha nova pupila, ou pelo menos, candidata a isso.

A aula se encerrou, e os alunos me cercaram, ansiosos por respostas sobre a seleção do grupo de pesquisa:

-- Professora, a concorrência?! E a prova? Será mesmo amanhã?!

Basicamente, as perguntas feitas ao mesmo tempo, tinham a mesma curiosidade. Sorri, no fundo, aquela empolgação me contagiava, o contato com os discentes ávidos pela pesquisa, era uma das minhas principais motivações para continuar estimulando a pesquisa, mesmo, sendo uma tarefa árdua, cheia de percalços burocráticos e financeiros.

-- Pessoal, a concorrência está até razoável, temos cinquenta e oito candidatos, a mais alta até hoje, e sim, a prova será amanhã pela manhã, no auditório 2.

Alguns minutos de algazarra, e apesar de me deliciar com aquele ânimo todo, eu buscava Marcela entre os alunos, sem encontrá-la. Aos poucos os alunos foram se dispersando. E a vi, sentada, no mesmo lugar que estava na aula. Tentei esconder minha satisfação ao vê-la.

-- Ainda de ressaca, Marcela?

Uma expressão de insatisfação se fez, e imediatamente me arrependi do início infeliz do diálogo com a menina.

-- Não, professora Luiza. Estava esperando a galera vazar para que eu pudesse agradecer mais uma vez a senhora, pela gentileza no fim de semana.

-- Estava tão calada durante a aula...

-- E a senhora logo deduziu que fosse por causa do meu porre na calourada ne?

-- Marcela, eu...

-- Eu estava calada na sua aula, porque estou realmente cansada, mas, antes que a senhora ache que é ressaca, eu estou exausta, porque passei meu domingo estudando para a seleção do grupo de pesquisa, eu sabia que seria concorrida.

-- Você quer me convencer que passou o domingo de ressaca, estudando?

Outra vez o arrependimento bateu à minha porta. Marcela baixou a cabeça, levantou-se e se aproximou, encarando-me, respondeu:

-- Improvável para a senhora? Talvez ache que eu não sou do tipo que estuda, mas, do tipo que bebe todas e fica com qualquer um não é?

-- Não disse isso, Marcela.

-- Mas, pensou... E eu repito, passei o domingo estudando, não tive ressaca, parece, que fui muito bem cuidada, nem parece que tomei todas no sábado. E por isso, eu queria agradecer a senhora. Valeu, professora Luiza, muito obrigada.

Faltou-me as palavras, fiquei estática. Situação surreal: eu intimidada por uma menina, que sem o menor esforço, dava uma mostra da sua força e segurança diante de mim, uma mulher, até ali, imune ao charme jovial dos alunos.

Tive alguns minutos solitários naquela sala vazia, o suficiente para nutrir uma raiva descomunal de mim mesma. Tudo bem vai... Inexplicável também. Eu não entendia porque me autopunia tanto pela forma como tratei Marcela, afinal de contas, não disse nada demais. Joguei meu material na bolsa, aliás, não joguei, soquei os papéis resmungando:

-- Quis dar uma de moralista engraçadinha, Luiza? Ofendeu a garota sem necessidade! Como se a menina não tivesse motivo o suficiente para estar constrangida diante da professora!

Mais inexplicável ainda, foi minha atitude que se seguiu: parti dali, em busca de Marcela. Não tinha ideia de onde encontra-la, olhei em volta, na direção dos grupinhos de alunos que rotineiramente papeavam pelos corredores, escadas e não achava o alvo da minha procura. Profundamente frustrada, nem mesmo passei pelo laboratório como era meu costume, fui direto para o estacionamento do campus, intencionando ir para casa, sem escalas para encontros com colegas, especialmente com Clarisse, que certamente recomeçaria o inquérito iniciado no dia anterior.

Enquanto acomodava minhas coisas no banco traseiro do carro, avistei Marcela de longe, entrando em um carro, pelo lado do motorista. Nem hesitei. Fui em sua direção o mais rápido que pude, só que essa categoria de rapidez para mim, era uma velocidade perigosa e porque não dizer cômica? Pois é, foi cômico, especialmente quando meu salto ficou preso entre os ladrilhos em meio aos meus berros:

-- Marcela! Espera!

A menina me olhou surpresa, logicamente estranhando a professora séria e sempre tão comedida, andando em passos desequilibrados, uma vez que deixei um dos sapatos presos, e segui com apenas um deles nos pés.

Marcela acompanhou meu trajeto com um grande ponto de interrogação no rosto, que logo deu lugar aquele sorriso arrebatador, ele me desarmava, me desestruturava: FATO!
Se eu estava nervosa, beirando o ridículo, mancando com uma perna com uns 10 centímetros a menos que a outra, diante do sorriso dela, desabei, para meu azar ou sorte, nos braços ágeis da garota.
Momento único, reações improváveis para uma mulher como eu diante de uma menina: desconjuntada, sem palavras diante de Marcela.


CAPÍTULO 11 – LIÇÃO 9: ENTRE EM NOVAS BATALHAS QUE VALHAM A PENA

Marcela me segurava firme, e eu mais mole que gelatina nos braços dela, não conseguia me equilibrar no pé sem salto. Foi dela a iniciativa de me por de pé, preservando aquele sorriso lindo, praticamente uma afronta à minha sanidade.

-- Desculpe-me o mau jeito... – Gaguejei.

-- Se isso fosse um conto de fadas, o certo seria eu guardar o sapato perdido, e procurar a donzela dona dele depois que a carruagem virasse abóbora não é mesmo? - Marcela brincou.

-- Oi?

Perguntei por pura lerdeza mesmo. Não compreendi naquele momento a alusão feita por ela ao conto da Cinderela.

-- Ah, esquece, professora... A senhora quer falar algo urgente comigo?

Visivelmente perdida, e desequilibrada sem um dos sapatos, demorei alguns segundos para responder.

-- Assim, é... Não é urgente, mas, é necessário.

-- Então?

-- Preciso me desculpar, Marcela. Eu fui grosseira, rude com você, perdoe-me.

-- Não é preciso se desculpar, professora, a senhora não foi rude, nem de longe foi grosseira.

-- Eu fui no mínimo insensível, perdoe-me.

-- Não há necessidade de pedido de desculpas, nem muito menos de desculpar a senhora, está tudo bem, mas, se faz tanta questão de se desculpar, a ponto de perder um sapato, sinta-se desculpada.

Marcela deixou um sorriso no canto dos lábios se fazer, o suficiente para fazer meu coração galopar.

-- Bem melhor assim... – Correspondi ao sorriso.

-- Então... Eu preciso ir agora, tenho que derrubar uma concorrência alta na prova de amanhã, preciso estudar, dizem por aí que a professora é uma carrasca nas provas que elabora, sabe?

Não contive meu riso, conhecia minha fama, e Marcela falava de um jeito tão ingênuo... Ah! Aquele jeito amolecado dela era um charme a mais naquela beleza inebriante...

-- Ouvi a mesma coisa pelos corredores, é melhor mesmo que estude! – Reforcei.

-- Então, melhor que eu vá, nos vemos amanhã, professora.

Marcela me deu uma piscadela de olho, e a observei entrar no carro, deu a partida, e antes de sair disse:

-- Não esqueça seu sapato perdido... Se bem que... A senhora nunca será a gata borralheira.

Com um semblante nada inteligente, eu fiquei ali parada, tentando entender que diabos Marcela falava sobre abóbora, sapato, e agora gata borralheira. Catando o tal sapato perdido, as milhares sinapses do meu cérebro finalmente aconteceram e entendi, ou pelo menos acho que entendi, os comentários da menina.

Uma nuvem de hipóteses surgiu na minha cabeça, e meu andar desequilibrado combinado com minha distração, me fez tentar abrir o carro errado. Pois é! Lá estava eu, enfiando minha chave em um carro que não era o meu, foi o que eu achei mais próximo, e parecido com o meu: mesma marca, mesma cor... Além disso, eu precisava me sentar, minhas pernas tremiam, e refletir sobre o que acabara de acontecer.
Ao invés disso, o som irritante do alarme do carro, que não era o meu, disparou, e eu fiquei ali, fazendo papel de idiota estabanada no estacionamento, chamando atenção de quem estava ao redor. Um dos seguranças do campus se aproximou, e logicamente, eu me atrapalhei na explicação, mas, ao final, o verdadeiro dono do carro “invadido” se apresentou e o equívoco se desfez.

A nuvem de hipóteses? Bem, ela me seguiu. Marcela estava me comparando à uma donzela de conto de fadas? Será? Ela queria ser “meu príncipe”? Não... Não podia ser, era só uma menina, ah Luiza! Tenha juízo! Ela é sua ALUNA, parece que eu conseguia ouvir o que Clarisse me diria se eu compartilhasse minhas hipóteses com ela.

Marcela não saiu do meu pensamento. Volta e meia entre meus afazeres acadêmicos, a lembrança do rosto dela, e daquele jogo de palavras do conto de fadas vinham à tona. Esses pensamentos começaram a perturbar meu sono, me apavorei, e para desviar o foco apelei para uma conversa que certamente só sairia muita asneira, mas, era o que eu precisava. Liguei para Cris.

-- Fala sapa chefe! – Cris atendeu no tom de escracho.

-- Ah Cris, fala direito, isso são modos de atender meu telefonema? E desde quando sou chefe do brejo?

-- Estou respeitando a titulação, só tenho você de amiga doutora! Você sempre esfrega isso na minha cara quando está bêbada.

-- Mentira, que não faço isso! Você é que diz isso bêbada! E nem é verdade, tem a Clarisse também.

-- Aquela enjoada é sua amiga, não minha.

-- Essa implicância com a Clarinha não acaba nunca? Que besteira heim? Se não conhecesse vocês diriam que é paixão encubada. “Tu te sentes atraído por aquilo que repeles”.

-- Pronto! Começou a psicologia de botequim. Ainda inventa de falar bonito só porque é doutora, não seria mais fácil dizer: Quem desdenha, quer comprar?

Gargalhei, Cris apesar do seu jeito que poderia sugerir grosseiro, era uma das pessoas mais inteligentes que eu conhecia. Sabia captar as entrelinhas, isso era uma arma de sedução que ela usava muito bem, mas, quando o intuito não era esse, tal inteligência, servia para traduzir as atitudes e discursos de quem ela conhecia bem, entre essas pessoas, estava eu.

-- Deixar de embromação, fala aí, você está bem? Novidade você me ligar no meio da semana assim.

-- Ow bocão! Deixa de ser faladeira! Eu sempre te ligo, você é que sumiu, no whatsapp, só mandou emotions e vídeos bizarros, você deve estar enrolada né?

-- Estou enroladíssima, em trabalho! Estou saindo agora do escritório. Pregada!

-- Certeza que não tem nenhuma arquiteta escândalo, ou uma estagiária gatinha nesse trabalho aí que está te enrolando tanto?

-- Ah vá se fuder Luiza! Acha que meu mundo só tem mulher? Eu trabalho pra caralho, porra!

-- Incrível, como você consegue agrupar tanto palavrão numa sentença só?

-- Deixe de mi mi mi, vai, sabe como sou. Agora desembucha, você tá de boa? Aconteceu alguma coisa pra você me ligar?

-- Não, quer dizer, aconteceu um lance chato aí no final de semana com a Beatriz e a “Inha” dela, mas, já foi superado, pelo menos é o que espero.

-- Tenho dúvidas aí dessa superação, você está sumida demais, evitando a mim e o Ed, você está aprontando, com certeza. Se esse lance chato, não gerou uma reunião de emergência entre nós, ah, tem algo podre que você quer esconder.

-- Ai para né! Tem nada de podre, mas, heim, amanhã poderíamos nos encontrar, saudade de vocês, vamos jantar juntos?

-- Vou me organizar para isso, porque hoje, olha a hora que estou saindo... Mas, combina o local com o Ed, e me manda mensagem.

-- Mas, responda, sapa peão! Já que eu sou a chefe...

-- Já mandei você ir se fuder hoje?

-- Já, Cris! Estou mandando você responder, porque eu vejo lá os dois “Vês” azuis e você nunca mais responde!

-- Essas tecnologias só me ferram, eu heim... Bateria acabando, nos falamos amanhã, fique bem!

Sabia que o jantar do dia seguinte, seria um bombardeio de perguntas dos dois, na verdade, tinha que ir preparada para um interrogatório dos moldes da KGB, ambos, conseguiam me torturar pra adquirir as informações que queriam adquirir. O motivo real do meu tormento naquela noite, era fichinha perto da minha recaída com Beatriz, e esse seria meu desabafo.

Demorei a dormir naquela noite, e agradeci a mim mesma pela ideia genial que tive ao criar o GRUFARMA, na primeira seleção dos participantes discentes, coloquei como um dos critérios na prova, a identificação do candidato por um código, só o candidato teria acesso no ato da inscrição. O sistema só fornecia a informação dos candidatos para os avaliadores, depois que fossem lançadas todas as notas das etapas da seleção. Assim, eu não correria riscos de fugir à minha ética para aprovar Marcela naquele processo.

Eu e uma colega docente do grupo de pesquisa aplicamos na hora marcada a prova de seleção. Poderia ser algo habitual para mim, apesar da boas perspectivas de agregar novas mentes no mundo da pesquisa, aquela seleção tinha uma brilho a mais: Marcela.

Lutei para não fita-la, contudo, vez por outra, ela me flagrava em delito. Poderia afirmar sem contestação que seus olhos exerciam em mim magnetismo. Mas, não, eu me recusava a aceitar tamanha atração por uma menina, uma aluna.

O fato é que eu estava ali, com o buço suado, sinal de nervosismo, quem me conhecia, sabia disso. Prestava atenção em cada gesto de Marcela, o jeito de colocar os olhos atrás da orelha, o batido da caneta na cadeira, depois colocando a mesma caneta na boca, estreitando os olhos ao ler a prova. Tudo tão banal, entretanto, ali tomava ares de uma propaganda sensual de TV, especialmente quando ela envolveu os longos cabelos em um coque, alcançando outra caneta para segurar o penteado.

Meu Deus! Luiza tenha vergonha nessa cara! Sim, eu me censurava mentalmente. Aquela tarde passou lentamente, por um lado, eu experimentava uma sensação estranha de prazer estando perto da garota, em contrapartida, eu me culpava de maneira inédita por tamanha atração.

Quando Marcela entregou a prova, evitei encará-la, tomada pela culpa, e pelo medo de denunciar meus pensamentos de fascínio a seu respeito.

-- O gabarito sai que horas, professora?

Uma voz do corredor ecoou. Um aluno ansioso, perguntou.

-- Daqui a uma hora estará no site do GRUFARMA. Assim como a lista das inscrições aprovadas para a fase de análise curricular.

Respondi prontamente, lacrando o envelope de provas. Como anunciado, lancei os resultados no site, torcendo para que os códigos divulgados guardassem o nome de Marcela. Metade dos concorrentes foram eliminados na prova escrita, outros se saíram muito bem, a ponto de me deixar entusiasmada com os novos alunos que eu orientaria na pesquisa, dois em especial, atingiram a pontuação máxima.

Já era noite, quando saí do meu pequeno gabinete dentro do laboratório de farmacologia. Marcara com Ed e Cris um jantar em uma pizzaria, ali mesmo perto da universidade. Clarisse me alcançou no corredor:

-- Mas, olha só, quem é viva...

-- Clarinha! Estava mesmo pensando em te ligar. Vamos comer pizza?

-- Acha que vai acabar em pizza a conversa que você prometeu, domingo passado? Aquela conversa que você ia me explicar a presença de uma aluna na sua cama?

-- Shiii, fala baixo!

-- Tá com medinho, é?

-- Ai, para de ser chata! Não tem nada pra explicar, deixa de ser maliciosa, eu já expliquei tudo, se você não acreditou, aí, o problema não é meu, né?

-- Cada vez se enrola mais... Isso não vai prestar...

As palavras soaram em tom profético, disfarcei o “medinho” reforçando o convite:

-- Vamos à pizza ou não?

-- Tudo bem, vamos lá, estou morrendo de fome mesmo...

Não avisei sobre as demais companhias da noite, sabendo da antipatia que permeava a relação dela com Cris. E foi a própria que acenou quando nos viu entrando na pizzaria.

-- Ah não Luiza! Essa mala aqui? Essa pizza já está me dando indigestão!

-- Deixa de implicância!

Não demorou para Ed chegar, e felizmente minha dura tarefa de mediar a troca de farpas entre minhas amigas foi dividida com ele.

-- Qual o local estratégico para eu me sentar e conseguir concorrer ao Nobel da Paz?

Ed perguntou quando deu uma olhada rápida no cenário. A tromba de Cris e o revirado de olhos de Clarisse ao olhar na direção da outra, e eu, no meio das duas, clamando socorro com o olhar.

O jeito despachado do meu amigo falar, cheio de comicidade, acabou por quebrar o clima animoso. Minhas duas amigas sorriram meio amarelo, foi o momento de iniciar um assunto para tentar manter um diálogo pacífico, para isso, nada melhor do que estimular Ed a compartilhar suas histórias de trabalho tendo as peruas já conhecidas por nós, pelos relatos do cabelereiro.

A pizza chegou, e o clima agradável entre amigos estava consolidado, até um grupo de jovens entrar na pizzaria: nada menos do que meus alunos de medicina, entre eles alguns que estavam na seleção de mais cedo, e a mais linda da turma, Marcela.

Aquele magnetismo me fez encontra-la imediatamente, e a partir daí, não consegui tirar os olhos, esquecendo-me por segundos os olhos atentos na minha reação de Clarisse.

-- Então, aquela ali, não é a sua aluna queridinha? Sua hóspede?

Clarisse foi rápida, e nada discreta, despertando a curiosidade de Ed e Cris.

-- Aluna queridinha? Hóspede? Que babado é esse? – Ed, soltou os talheres perguntando.

-- Eu sabia que tinha rolo aí nesse seu sumiço, qualé, Luiza? – Cris disparou.

Apertei os olhos, franzi a testa recriminando a indiscrição de Clarisse, que aparentemente, se arrependera do comentário, e tentou emendar:

-- Falei que era aluna queridinha porque a menina é super CDF, e a Luiza está doida para torna-la sua pupila, escravizar a coitada.

-- Ah, e vocês acham que nós somos surdos e idiotas? Ouvi você falar de hóspede! – Ed retrucou, cruzando os braços.

-- Brinco com isso porque a garota praticamente mora na universidade.

Clarisse disfarçou, mas, foi em vão, a desculpa não foi engolida, especialmente por Cris, que ao contrário de Ed não insistiu em perguntas, não daria esse gostinho a Clarisse, de tirar dela, informações a um suposto escorregão meu. Todavia, Cris me observava, eu sabia que estava sendo lida por ela. O fato é que o diálogo acabou por dirigir nossos olhares ao grupo de alunos, não tardou para que eles também percebessem a minha presença.

Humberto, um dos alunos, acenou de longe sorrindo e cochichou com os colegas apontando a direção da minha mesa. Para minha surpresa, os alunos vieram até a mesa, e me cumprimentaram bastante animados:

-- Se a gente tivesse combinado, não daria tão certo! Estamos aqui por causa da senhora, professora Luiza! Desculpem-me, boa noite senhoras.

O rapaz educado, disse visivelmente animado. Eu devia estar variando do pálida cor de “papel sufit” entre “vermelho tem o toque tem o som da minha voz” da Fafá de Belém.

-- Por minha causa, Humberto? – Perguntei sem graça.

-- Sim, professora. Estávamos todos aqui perto, na casa do Maurício, esperando os resultados da prova, pelo gabarito, e pelas regras da pontuação dos nossos currículos, nós passamos! Estamos comemorando.

O rapaz disse inocente.

-- Quer dizer, nem todos...A Marcela não...

-- Vocês não podiam ter me dito isso. Ainda não conheço as identidades de vocês, só sei os números que o sistema forneceu a vocês, e além da fase de análise curricular, tem a entrevista, a última etapa, e vocês não sabem o que os docentes do grupo avaliarão nessa fase.

Interrompi Humberto em tom firme. Estava mesmo com o intuito de censurá-lo, mas, acho que abusei no discurso rígido, visivelmente os alunos desanimaram. Até então, eu evitava olhar para Marcela, sabia que estava sendo lida por meus amigos, não podia me denunciar, o que ocorreria, se meus olhos encontrassem o dela.

-- Ow cabeção! – Jéssica deu um tapa na cabeça de Humberto.

-- Desculpe-nos professora, ficamos tão animados... – Humberto praticamente balbuciou.

-- Vamos esquecer isso. Fico feliz por vocês que se saíram bem, e tem bons pontos para a próxima fase. Torço para que a comemoração antecipada traga sorte.

Dessa vez, fui mais amável no tom, sorri para o rapaz, que pareceu relaxar. Nesse momento o magnetismo me jogou para a direção de Marcela e encontrei seus olhos, me encarando fixamente, assim como olhava para Clarisse e Cris, eu estava no meio das duas.

-- Vamos pessoal, atrapalhamos o jantar da professora e dos amigos dela. Comemorando ou não, estou faminta! – Jéssica chamou atenção.

-- Não atrapalharam nada, já estamos esperando a conta. E além disso, vocês tem o que comemorar, afinal, se saíram bem na prova, comemorem, e a “portuguesa” está muito boa, recomendo.

Tentei animá-los de novo. Marcela permaneceu com a mesma expressão, atenta a mim e as minhas amigas, fiquei desconcertada. O grupo de alunos se afastou e alguns segundos separaram o silêncio de uma observação descabida da Cris:

-- Olha, não sei que vacina vocês professores tomam, mas, deve ser mesmo fodona, porque um monte de gatinhas como essas, me cercando, eu, não resistiria!

-- Cala a boca, Cris! Eu heim... – Falei estapeando o braço dela.

-- Tinha que sair de você uma imbecilidade dessas... – Clarisse disse irritada.

-- Ah, falou a representante da moral e dos bons costumes do brejo. – Cris foi sarcástica.

-- Você não cansa de falar tanta merda não?

Pronto, Cris conseguiu de novo, tirar Clarisse da linha. A fisioterapeuta dava os sinais de irritação exacerbada.

-- Vai me dizer que você não repara em uma aluna bonita? Aquela dali, por exemplo, a de camiseta verde, olha que coisa mais perfeitinha... Nossa, se caísse na minha mão, uui!

Cris falou de um jeito cafajeste, em outra situação eu até acharia cômico, mas, quando percebi a quem ela se referia, o sangue esquentou e minha irritação foi maior do que a de Clarisse. Cris se referia a Marcela.

-- Cuidado com o que você fala, Cris! Olha o respeito! São minhas alunas, não ouse arranhar com sua malícia nenhuma delas!

-- Ow! Você entrou pra mesma associação dessa outra aí? Qualé, Luiza? – Cris retrucou assustada.

-- Olha a sapataria aí! Sosseguem aí esses “pares 44”! É muito estrogênio querendo virar testosterona, como diria uma amiga minha doutora... – Olhou para mim – Querem brigar como um monte de macho, vamos ali pro meio da rua! Credo! O que deu em vocês?

Ed foi duro, mesmo nas piadas. Cris sorriu discretamente, Clarisse balançou a cabeça negativamente e eu... Percebi a armadilha que eu acabara de cair. Cris comentou daquela forma propositalmente, usou Marcela como exemplo para confirmar o que ela leu em mim na cena que acabara de testemunhar. Devo ter olhado para a garota até de maneira involuntária, era instintivo meus olhos repousarem em Marcela.

A conta chegou, e rapidamente como era típico, Ed fez a divisão e cada um foi pagando sua parte, em um silêncio constrangedor. Quase formalmente nos despedimos na porta da pizzaria, antes de sair, acenei para a mesa na qual o grupo de alunos estava, Marcela, mantinha um semblante mais sério.

Depois de uma noite precedida de suposições sobre o que Cris e Clarisse haviam concluído naquela noite, pouco dormi. Especialmente, pelo que Humberto anunciara, sobre Marcela não ter passado na prova, talvez por isso, estivesse tão séria na pizzaria. Confesso que com desânimo segui para a universidade para convocar os aprovados na segunda fase, após analisar os currículos e atribuir-lhes a pontuação anunciada no edital. O professor Alberto e a professora Vânia, ficariam responsáveis por tal avaliação, uma vez que as entrevistas seriam feitas por mim e pelo professor Aurélio.

Na mesma tarde, a lista foi divulgada no site, assim como o horário das entrevistas que se realizariam no dia seguinte. Almocei em casa, já que não teria aulas no período da tarde, era melhor evitar um encontro com Clarisse, sabia que ela voltaria ao assunto da noite anterior.

Nem de perto eu estava em paz, a desmotivação por não ter Marcela no meu grupo de pesquisa era um dos motivos do meu mal estar. Adicionado a isso, a pressão psicológica que eu me impunha para dar satisfações das minhas atitudes e reações diante de uma aluna para minhas amigas. Fechando com chave de ouro minha inquietação, a caixa de e-mails me chamava atenção para uma obrigação acadêmica que eu ainda tinha: a co-orientação da tese de doutorado de Beatriz.

E-mails do Marcos, o colega que estava orientando-a e outros da própria Beatriz. Abri e os li com nota zero em disposição. Estava lendo o material enviado, quando notei a porta se abrir, para minha surpresa, minha ex-namorada adentrava dizendo:

-- Se Maomé não vai à montanha...

CAPÍTULO 12 – LIÇÃO 10: SEGUE O SOM, PISE LEVE E NÃO RETROCEDA.
Beatriz não me deu tempo para me refazer do susto. Sem cerimônia fechou a porta e seguiu falando, enquanto se aproximava de mim, sentada no sofá com o notebook sobre as pernas.

-- Eu tentei falar com você na universidade, mas, você se recusou veementemente, não vi escolha se não vir aqui.

-- O que te faz pensar que aqui na minha casa, eu iria falar com você?

-- Não insisti lá pra que não tomasse ares de escândalo, você estava tão alterada...

-- Ah, e invadir minha casa foi sua alternativa pra não me “alterar” mais?

-- Não invadi, eu usei as chaves, que ainda estavam comigo. Se eu anunciasse que estava subindo, você não me receberia.

-- Então você sabe que não é bem-vinda, nem no meu laboratório, nem na minha casa, nem na minha vida!

Joguei o notebook no sofá e me levantei, irritada.

-- Nosso contato será puramente profissional Beatriz, estava agora mesmo lendo seu material da tese, responderei por e-mail, não quero nada mais além disso, quero você longe de mim, você, sua noivinha e os bois dela bem longe!

-- Luiza, calma. Tenta me escutar, alguns minutos, só preciso disso.

-- Você já me tirou muito tempo, não tenho mais nenhum minuto pra você, que dirá alguns. Vá embora Beatriz. Eu vou olhar o que me mandou e cumprir minha obrigação com você e com seu orientador.

-- Luiza, você verá que a tese está pronta, e está no e-mail as duas cartas de aceite dos artigos que enviamos. O Marcos deve ter te mandado e-mail pedindo sugestões pros nomes da banca de qualificação.

-- Você terminou tudo então?

-- Fiz o que me sugeriu, paguei um estatístico, bem, não foi fácil, mas fui bem orientada por você, e depois das correções da banca de qualificação, poderei finalmente defender minha tese, graças a você.

-- Que bom, então nosso contato está encerrado.

Falei tentando disfarçar minha surpresa, não esperava que Beatriz concluísse a tese sozinha, e nem muito menos que me procurasse depois disso.

-- Luiza, não está. Nós tivemos uma história, até semana passada, essa história deu mostras que ainda não acabou, precisamos sim conversar, como duas mulheres adultas que somos.

-- A mostra da semana passada, foi exatamente do contrário que você acha. O que aconteceu semana passada foi a prova de que essa história acabou.

-- Não... Está latente, e você está aí ferida, mostrando sua dor nessa irritação toda comigo e Alicinha.

A irritação era legítima, mas, eu conseguia ver com muita nitidez que não restava mais amor naquela dor. Era mais o amor próprio que ressurgia, e ele sim, estava ferido.

-- Beatriz o que você está vendo é cansaço! Já deu! Você, ela, tudo isso me cansa! Isso não é dor, é exaustão. Não quero mais para mim, o que tive com você nas últimas semanas, nem tampouco retomar o que tínhamos.

-- Luiza...

Beatriz se aproximou, e eu, imediatamente a afastei, ela então recuou.

-- Beatriz, para...

-- Deixa eu te falar, pelo menos tentar te explicar... Aquilo que aconteceu no aniversário da Patrícia foi inesperado. Eu estava completamente perdida nos meus sentimentos, estar com você, nossa intimidade, aquela cumplicidade que tínhamos, essa coisa de pele tão forte entre nós, reascendeu tudo, eu fiquei confusa!

Eu me desarmei, escutei com atenção o que Beatriz falava.

-- A Alicinha chegou antes do esperado, eu nem contava que ela estaria aqui para o aniversário da Patrícia, eu estava ansiosa na verdade para encontrar com você lá... Mas, ela chegou... Eu estava confusa, acho que involuntariamente a rejeitei, e não tive coragem de dizer os motivos reais, acabei dando uma desculpa, para ganhar mais tempo, e disse que estava preocupada com minha tese, com os prazos e estava com dificuldades de concluir sem sua ajuda.

-- Beatriz ela me ofendeu na sua frente, e você sequer tentou me defender com alguma desculpa esfarrapada desse tipo que você usou com ela!

-- Eu sei! Fiquei perdida, não sabia o que falar pra minimizar aquele constrangimento, mas, me apavorei, quando percebi sua mágoa e a Alicinha tão descontrolada, não podia falar nada a nosso respeito, eu já tinha sido uma filha da mãe com você, e seria com ela também...

-- Ah! Agora você melhorou tudo Beatriz, tudo! Já que você já tinha sido uma puta sacana comigo, então tudo bem ser de novo, não é mesmo? Uma humilhação a mais, uma a menos, a Luiza aguenta! Foi isso que você pensou?

-- Não! Eu pensei que você entenderia que eu não podia nos expor daquela forma, que qualquer conversa com Alicinha, não podia envolver você! Eu já tinha te machucado demais, não podia colocar você de novo no foco da fúria de Alicinha, quis te proteger...

-- Mentira Beatriz... Você é dissimulada. Não queria se ferrar com Alicinha, e achava que poderia me manipular com esse discurso aí de mulher dividida com crise de consciência. O que você quer afinal?

-- Quero que você me entenda, e em nome do que tivemos, me dê um tempo pra resolver isso tudo...

-- Espera um pouco, quando você fala em resolver isso tudo, quer dizer exatamente o que?

-- Resolver as coisas, organizar meus sentimentos, tentar sair dessa história com Alicinha de uma maneira íntegra e então...

-- Não estou ouvindo isso... - Resmunguei perplexa.

-- Luiza eu percebi o quanto ainda te amo, o quanto ainda te quero! Eu me arrependo muito de ter me envolvido com Alicinha, me deixei levar por um momento infantil, nosso relacionamento estava conturbado e ela apareceu... Eu precisava viver aquilo para reconhecer quão forte é nosso amor...

-- Cala a boca... Quanta baboseira você fala! Eu, eu, eu... Tudo gira em torno das suas necessidades! Como você consegue ser tão narcisista? Quer sair de maneira íntegra da relação com Alicinha, quer que eu entenda isso, mas está se lixando para a situação que me deixou não é mesmo? Onde estava essa sua integridade toda comigo? Esse amor que descobriu, estava escondido onde? Nosso relacionamento não estava conturbado, se bem me lembro, nossas discussões giravam em torno da sua implicância em escolher um apartamento para morarmos juntas.

-- Então, eu estava sufocada, você me pressionando para dar um passo maior, e eu estava vulnerável...

-- Parou! Essa conversa não faz o menor sentido, nem no tempo, nem na conjuntura atual. Você só mudou seus argumentos para explicar sua traição, o outro argumento era mais nobre: “eu me apaixonei por Alicinha de novo, na verdade acho que nunca a esqueci”, é menos canalha do que o que está me dizendo agora.

-- Mas, Lu, eu estou te dizendo que te amo, que quero reconstruir nossa história...

-- E eu estou te dizendo, que não há nada para ser reconstruído. Você tem todo tempo do mundo pra se resolver com Alicinha, com você mesma, mas, me tire dos seus argumentos e dos seus planos.

-- Você já me esqueceu?

-- Já? Você me deu um pé na bunda, noivou com outra e me pergunta se eu “já” te esqueci?

-- Estou abrindo meu coração, reconhecendo meu erro, e te dizendo que vou terminar com Alicinha para voltar para você!

-- E eu estou te dizendo, eu não acredito em você! Já lutei demais por você, fiz tudo que podia e não podia pra te agradar e não tardou para você me trocar por outra, se acovardou diante dela, me machucou de novo, essa batalha já acabou para mim.

-- Luiza, olha pra mim...

Beatriz segurou meu rosto, não pude evitar encará-la.

-- Eu errei, você é a mulher da minha vida, ainda não é hora de desistir de nós, dessa batalha como você disse.

-- Agora, é sua vez de lutar, se eu realmente sou a mulher que você ama, lute por mim e mostre que ainda é a mesma mulher que me apaixonei, e não essa mulher que não sabe o que quer, nem o que sente.

Fui firme. Seria hipócrita se negasse que minha história com Beatriz ainda tinha uma chama, no entanto, não era mais suficiente para mim. Aprendi a duras penas que eu não podia me conformar com qualquer migalha de afeto, A inconstância de Bia não cabia mais no meu contexto de vida. No fundo, eu acreditava que Beatriz não lutaria por mim, lancei o desafio convicta de que ela não levaria a sério.

-- Eu vou lutar. Vou te reconquistar, me reencontrar, e te ter de volta.

Beatriz selou a promessa com um beijo nos meus lábios e deu as costas, deixando sobre o centro da sala as chaves.

-- Vou esperar você me dar essas chaves de novo.

Foi um alívio para mim quando ela bateu a porta. Ela não era uma qualquer, mexia comigo, o sofrimento que passei quando ela me deixou era proporcional ao quanto a amei, ou será que ainda amava? Meses atrás, eu estava jogada em um quarto escuro, torcendo para que Bia voltasse para mim, e agora, não estava convencida que o relacionamento com ela me preencheria, a separação deixou evidente as lacunas que existiam entre nós.

Essas conclusões ou novas dúvidas, se configuravam em um passo de maturidade, de sobriedade que aqueles meses de aprendizado me trouxeram quando Beatriz me deixou. Tudo bem que essa tal maturidade era questionável quando o assunto era minha paixonite por uma aluna. Naquele momento, eu enxergava esse sentimento pela garota como um devaneio, uma fantasia, não ousei sair desse campo, era o mais prudente.

O dia seguinte me reservava as entrevistas dos alunos aprovados nas duas primeiras etapas. Não sabíamos das pontuações dos candidatos, assim, ficaria mais justa essa etapa. Eu e o professor Aurélio seguíamos os critérios pré-estabelecidos por nós, os docentes, buscávamos identificação com a linha de pesquisa, compromisso, além do potencial para iniciativas.

Era um grupo diversificado, entre alunos da medicina, farmácia e biomedicina. No final da manhã, uma surpresa me deixou sem fala, ao chamar o candidato das 11h: Marcela.

-- Bom dia.

Marcela nos cumprimentou. Aurélio respondeu, e eu, bem, eu não consegui nem balbuciar, apenas acenei com a cabeça. Fiquei trêmula, me atrapalhei com os formulários, acabei por derrubar alguns da mesa, Aurélio como cavalheiro que era, se apressou em apanhá-los.

Eu me perguntava o que Marcela fazia ali, já que na noite anterior o colega afirmou que ela não passara na prova escrita. Constrangida em indagar sobre a informação na frente de Aurélio, perguntei:

-- Você é a candidata desse horário mesmo, Marcela?

-- De acordo com o site, sim, professora.

Dessa forma, iniciei a entrevista, contendo meu olhar de fascínio para a menina, tarefa difícil, o magnetismo exercia todo seu poder físico sobre mim, imaginou lutar contra a física? Então, era assim que eu me sentia, lutando contra as leis do universo...

O dia de trabalho chegou ao fim, restava a mim e aos colegas docentes, a computação dos pontos das três etapas e finalmente conhecer e divulgar os novos membros do grupo de pesquisa. Para minha surpresa, quem surgiu como primeira colocada na seleção foi um nome doce aos meus ouvidos: Marcela.

Juro que segurei o impulso de bater palminha feito foca do “Sea World”. Lancei a lista no sistema, empolgada, minha vontade era de dar a notícia pessoalmente à minha nova e brilhante aspirante à pesquisadora: QUE LINDO!

Adorei o novo título que consegui para Marcela. Aliás, ela conseguiu, de maneira incontestável! Eu, mesmo sem mérito nenhum, estava radiante de orgulho dela. Sai da universidade, torcendo para encontrar aquele grupo de alunos, mas, os corredores estavam vazios. Teria que esperar até a sexta-feira, teria aula na turma de medicina, veria ela e os colegas que comemoraram antecipadamente o sucesso no processo seletivo.

Como eu imaginava, os alunos aprovados, me aguardavam na porta da sala naquele frenesi. Parabenizei a todos, publicamente na sala, antes de iniciar a aula. Procurei o canto de sempre que Marcela ocupava, não a encontrei. Justamente naquele dia, ela faltou minha aula. Não resisti, perguntei ao final da aula a Jéssica:

-- Sua amiga que passou em primeiro lugar não veio? Exageraram na comemoração de novo ontem?

-- Ah não professora, não comemoramos ainda, nem deu tempo, mas, parece que deu sorte nossa antecipação não é mesmo? A Marcela, não sei porque faltou, não me deu notícias hoje.

-- Eu entendi que ela não tinha passado na prova escrita, pelo que seu colega adiantou na pizzaria.

-- Ele ia dizer que a Marcela não passou, ela humilhou a gente, gabaritando a prova.

-- Ah...

Só então percebi que eu fui mal educada e interrompi o rapaz naquela noite, antes que ele completasse a frase. Disfarcei minha frustração pela ausência de Marcela, parabenizando a amiga dela pela aprovação no mesmo processo seletivo.

No mesmo dia recebi outra boa notícia do meu orientador: o relatório das atividades do pós-doutorado foram aceitas, e consolidaria assim minha linha de pesquisa, o título era uma questão de tempo.

Duas batidas na porta, e Clarisse entrou no meu escritório.

-- Já é noite, e hoje é sexta-feira! O que você faz aqui ainda?

-- Poderia te fazer a mesma pergunta.

--Ah, eu, na minha ingenuidade burra, marquei uma reunião com os alunos do meu grupo de pesquisa, imagina né? Apareceram dois alunos.

-- Professora! Reunião de pesquisa com alunos no final da tarde de sexta? Pelo amor né? Mas, pera, um dos alunos te deu essas rosas de consolo?

Clarisse segurava um buquê de rosas, inevitável não perceber.

-- Ah! Acha mesmo que algum aluno pensaria nisso?

-- Então... Foi da assistente social bonitinha? Ainda está rendendo esse rolo? É namoro mesmo?

Clarisse revirou os olhos, bufou e disse:

-- Quem dera! A bonitinha como você disse, simplesmente sumiu do mapa. As rosas, são para você!

-- O que?

-- É, o entregador estava perdido aqui pelos corredores, eu recebi, já que estava vindo para cá.

-- Quem mandou? - Perguntei assustada.

-- Não sei né! Acha que eu seria tão indiscreta e invasiva assim? Não abri o cartão.

Clarisse empurrou na minha direção o buquê. E ficou de braços cruzados, de prontidão, esperando que eu abrisse o cartão e revelasse o remetente. Eu mesma, estava curiosa, e eis que leio silenciosamente o cartão:

-- “Eu não vou desistir de você. Estarei sempre por perto, para que não se esqueça disso. Bia”

-- Então? Vai me dizer quem é florista aí?

-- Beatriz...

-- Mentira! O que deu nela? Como assim?

-- Longa história, está com tempo? E outra coisa... Nada de brigar comigo! - Levantei-me segurando o buquê.

-- Ai, assim você me faz parecer uma chata intransigente...

Clarisse fez bico, eu a abracei com um dos braços e beijei seu rosto, já que na outra mão estava o buquê.

-- Chata sim! Sempre!

Disse em tom de brincadeira e dei-lhe outro beijo no rosto para amenizar o xingamento. Para minha surpresa, Marcela surgiu na porta, flagrando a cena de carinho entre eu e minha amiga.

-- Desculpa, professora, a porta estava aberta... – Marcela disse, visivelmente constrangida.

-- Marcela? Oi! Entre, fique à vontade, não tem que se desculpar, afinal, esse laboratório será seu local de trabalho também.

Falei rápido, me afastando de Clarisse, quase como um impulso. Olhando para os lados, Marcela emendou:

-- É, eu não pude vir no período da manhã pra aula e... Enfim, estava passando por aqui e vi a luz acesa, imaginei que a senhora estivesse aqui, passei pra dar um “oi”, não queria atrapalhar.

-- Atrapalhar? Atrapalhar o que? Eu queria mesmo te ver! – Indaguei alheia ao que Marcela se referia.

-- Queria? – Marcela perguntou, ruborizada.

-- Sim, claro! Parabenizar você! Primeiro lugar na seleção! Olha, nunca tive uma candidata assim, será uma excelente pesquisadora, grande ganho pro GRUFARMA.

-- Não importa a colocação, o importante é que eu entrei, e vou poder aprender muito com a senhora.

-- Será um período de muito aprendizado, com certeza.

Eu estava tão abobada com a presença de Marcela, que até me esqueci que estava com aquele buquê na mão, e também da outra pessoa na sala: Clarisse.

-- Parabéns, Marcela. Você vai mesmo aprender muito com a professora Luiza.

Clarisse estendeu a mão cumprimentando Marcela, só aí me lembrei da presença dela, e da repercussão daquela visita.

-- Obrigada.

Marcela respondeu sem jeito. E eu, joguei o buquê na lixeira, atitude que logicamente chamou a atenção das duas.

-- Bom, então, eu vou indo, está tarde, nos vemos segunda-feira, tem reunião do grupo não é? A Jéssica comentou.

-- Sim, no final da tarde.

Respondi, agora, tensa, sob o olhar atento de Clarisse. Marcela saiu lentamente, se despedindo de maneira mais formal. Depois que ela saiu, aquele olhar atento, se transformou em inquisidor.

-- Ok, você pode me explicar o que acabou de acontecer aqui?

-- Como assim? – Meu buço já suava.

-- Luiza! Uma aluna te procurar aqui, essa hora, em plena sexta? Pera... Essa é a sua hóspede? Claro! Marcela, foi esse o nome que você disse na sua casa!

-- Não, você está enganada, eu disse Graziela...

-- E eu, tenho cara de idiota né?! Para né!

-- Ai Clarisse, eu que peço, para! Aconteceu nada aqui.

-- Luiza, você está se encrencando, e escondendo tudo, por que? Primeiro, eu encontro essa menina dormindo na sua cama e você desconversa, foge de mim, na verdade. Depois você, me fala que a Beatriz voltou à sua vida e ela até te manda rosas! Coroando a encrenca: a menina que estava na sua cama, aparece no seu escritório essa hora, com uma carinha toda de encantada e você se estabanando pra explicar...

-- Você acha que ela estava com carinha de encantada? – Perguntei tímida.

-- Meu Deus! Luiza! Você está flertando com essa menina?!

-- Não!

-- Ainda bem, porque se você estivesse, ia estar bem encrencada, a cara dela quando viu a gente, você me abraçando, um buquê de rosas na mão... Deve estar achando que nós temos alguma coisa...
-- Será? – O pavor ficou visível.

-- Seria tão ruim assim, se ela pensasse isso?

As indagações de Clarisse sondavam minhas reações.

-- Não... Não é isso, é que não quero burburinhos pelos corredores que as professora estão se pegando dentro da universidade...

-- Então, a Marcela é fofoqueira?

-- Não! Imagina!

-- Claro que não, a Marcela não é dessas!

-- Não mesmo!

Minha pronta defesa de Marcela foi mais uma das minhas reações bem analisadas por Clarisse, que não perdeu tempo:

-- Luiza, você está apaixonada por essa menina!

Titubeei mas me refiz para responder:

-- Que apaixonada?! Você está doida?

-- Não, você é que está!

-- Clarisse, presta atenção: eu não estou apaixonada coisa nenhuma, especialmente por uma aluna! Estou encrencada sim, mas, é a mesma encrenca de anos, o nome da encrenca não é Marcela, é Beatriz.

-- Acha que consegue me enganar?

-- Espera eu te contar tudo, aí você tira suas conclusões, e para de falar tanta sandice!

Naquela noite, Clarisse foi comigo para minha casa, preparamos um jantar enquanto eu narrava toda minha epopeia com Beatriz. Diante de tantos acontecimentos, não foi difícil fazê-la acreditar que minha encrenca era mesmo só minha ex.

Ao final da noite, estava convicta de que pelo menos com Clarisse, eu conseguira contornar a situação, no entanto, a hipótese de Marcela ter deduzido que eu e minha amiga éramos mais que amigas me deixou inquieta.

O final de semana passou lento, estava ansiosa para reencontrar Marcela. O domingo me reservou um programa comum entre mim e meus amigos: praia. Não escapei de repetir os motivos das minhas consecutivas fugas de conversas do tipo confessionário com eles nas últimas semanas. Usei a mesma desculpa, que afinal, não era mentira: Beatriz.

Na segunda-feira, eu mais parecia estar me arrumando para uma noite de paquera do que para um dia de trabalho. Podia ouvir as frases feitas do Ed:

--“Pra diva, toda calçada vira passarela, meu bem! Qualquer cenário vira palco pra um espetáculo, vai e arrasa!”.

Com esse pensamento gay, dei uma caprichada no visual e parti para universidade. Eu mesma não entendia minha motivação, mas, cedi. Patrícia como sempre, estava pronta para levantar minha autoestima, o problema é que ela fez isso justamente quando Beatriz adentrava a sala dos professores:

-- Nossa, que produção heim? Algum motivo especial, Lu?

A cara de Beatriz evidenciava um sorriso vitorioso. Certamente, ela julgava que o motivo especial era ela, egocêntrica como era, deve ter concluído que minha produção era uma resposta ao buquê de rosas enviado por ela na sexta-feira.

-- Imagina Paty, tem nada de produção, essa sou eu de verdade, quando não estou assim, é que você tem que estranhar, diva é diva todo dia não é mesmo?

Patrícia gargalhou concordando. Enquanto isso, Beatriz mandava mensagem para meu celular:

-- “Linda como sempre, mais do que qualquer rosa”.

Ai que piegas! Como não percebi que Beatriz era tão clichê? Pensei até em responder com um desaforo, dar aquele “simancol”, mas, preferi ignorar. O problema é que eu não consigo acumular duas funções ao mesmo tempo: ser diva e ao mesmo tempo não ser uma ameaça à segurança das pessoas e a minha própria.

Segurando minha caneca térmica de café com uma mão e na outra apagando a mensagem de Beatriz, me estabaquei com uma aluna, derramando o café em nós duas. Como uma grande piada do destino, de novo meu acidente teve a mesma vítima: Marcela.

CAPÍTULO 13: LIÇÃO 11 – RELAXE UM POUCO, E VEJA NO QUE ESTÁ SE METENDO

Por alguns segundos fiquei inerte, nos segundos que se sucederam fiquei presa ao magnetismo que os olhos de Marcela exerciam sobre mim. Só saí daquele estado que se assemelhava a uma catatonia, quando a menina deixou escapar uma risada ao me encarar.

-- Marcela, desculpe-me... Nossa! Queimou você? O café estava quente!

-- Não o suficiente para me queimar, se não queimaria a senhora também!

Marcela apontou para minha roupa, completamente manchada de café. Sorri, completamente deslocada.

-- Nossos esbarrões precisam ser menos violentos, professora.

-- É verdade...Nossa, agora vou me sentir culpada, vou te deixar toda suja o dia todo!

-- Ah, eu vou ter aula de laboratório, trouxe meu jaleco, está no carro, posso usar e na hora do almoço vou em casa, relaxa, professora.

-- Bom, eu vou ter que trocar de jaleco... Acho que tenho um no meu laboratório.

Mais pensei alto, do que falei à menina. No entanto, Marcela ouviu e logo se ofereceu para ajudar:

-- Vamos ajudo a senhora então, está aí toda suja, cheia de bagagem...

-- Mas, você vai se atrasar pra sua aula, e...

-- A senhora também! E eu já ia para o estacionamento mesmo, pegar meu jaleco, é caminho.

Mesmo que eu tivesse motivos para contra argumentar, eu preferiria negá-los. Minha assistente no laboratório ainda não chegara, ficamos a sós no meu escritório.

Marcela acomodou minha maleta em uma das cadeiras no meu escritório, olhou em volta, enquanto eu tirava o jaleco sujo de café, deixando à mostra, a roupa caprichada que escolhera naquele dia. Nesse momento, os olhos de Marcela pararam sobre mim. Disfarcei a dubiedade da insegurança e satisfação dessa atitude dela procurando no armário um jaleco reserva dentro de uma sacola. Será que ela gostava do que via?

-- Achei! – Disse retirando o jaleco da sacola.

--A senhora é obrigada a usar esse jaleco para dar aulas?

-- Não, quer dizer, obrigada não, mas, é de bom tom, e já estou acostumada, por que?

-- Por nada... Sabe, é que... Deixa pra lá.

Marcela desconversou tímida. E eu, se estava insegura, agora estava ainda mais, e tomada de curiosidade insisti:

-- Fala, Marcela! Não acha que o uso de jaleco pelos professores, contribua para uma imagem da academia?

-- Ah, professora Luiza, a imagem da senhora por si só já é perfeita pra academia, independente de jaleco...

-- Han? – Minha perplexidade se deu pelo que supus entender na fala de Marcela.

-- Eu quis dizer que, uma professora como a senhora, com a fama que tem, que é justa, de pesquisadora reconhecida, premiada, já dá status o suficiente, que o uso de um jaleco não influencia, considerando sua carreira acadêmica.

-- Ah... Entendi.


Possivelmente um tom de frustração deve ser escapado na minha frase. Vesti o jaleco e apressei-me:

-- Vamos! Estamos atrasadas já.

-- Vamos. Mas, vou dizer: é uma pena a senhora esconder essa elegância toda em baixo do jaleco.

Marcela disse e saiu rápido, como uma criança levada que disse desaforo. Ainda bem, assim, ela não testemunhou minha cara abobada, e meu tropeço na saída do escritório, se não fosse a bancada dos microscópios à minha frente, teria ido ao chão.

Tudo bem, ela não disse nada demais, mas, para mim, foi o suficiente para deixar minhas pernas trêmulas. E elas voltaram a tremer quando revi Marcela na aula da tarde, o magnetismo do olhar dela, era surreal, passei a procura-la em meio aos alunos, enquanto ministrava a aula, vez por outra, ela me dava um sorriso com o canto dos lábios, gesto que me deixava ridiculamente feliz.

Como marcado, reunimos o grupo de pesquisa no final da tarde no laboratório. Os novos membros demonstravam a ansiedade, os olhos curiosos, os cochichos, as risadas. Os alunos que já participavam do grupo, falavam sobre o trote com os novatos despertando especulações a respeito. O clima de boas expectativas tomou de conta dos momentos que antecederam minha fala.

Nem todos os docentes do grupo puderam estar na reunião, coube a mim as boas-vindas e listar o cronograma de atividades do semestre.

-- Vocês serão divididos em grupos menores, para que as atividades sejam permanentes, e não sobrecarregue nenhum docente nem discente. Terão sempre um dos professores para coordenar as atividades, e os alunos que já são bolsistas, atuarão como monitores. Esse laboratório estará sempre de portas abertas para vocês.

Distribui nesse momento fichas de cadastramento e segui explicando:

-- Essa ficha vocês entregarão preenchidas no setor de informática desse campus, lá será feito o cadastramento biométrico, porque os laboratórios não terão mais chaves nas portas, serão abertas eletronicamente, portanto, só as pessoas do GRUFARMA, terão acesso a esse laboratório. Esse sistema também poderá identificar quem entrou aqui, a que horas, e por quanto tempo ficou aqui.

-- Nossa, praticamente um laboratório da NASA! – Um dos alunos veteranos brincou.

-- Na verdade, esse é um projeto pioneiro, mas que daqui a alguns anos será comum nas repartições. Nosso laboratório foi escolhido para ser o primeiro para testar esse sistema, em virtude do teor de nossas pesquisas. O que estamos desenvolvendo aqui, envolve muito dinheiro, vocês devem imaginar o poder da indústria farmacêutica, nossa pesquisa, representa uma alternativa a classe de antibióticos, muitos milhares de dólares em potencial, serão cultivados aqui.

Eu disse isso sabendo que chocaria os alunos novatos. Alguns arregalaram os olhos, outros sorriram, outros praticamente pararam de respirar.

-- Vocês são agora pesquisadores, serão cobrados por isso. Nós temos aqui, docentes e profissionais da área clínica, e agora também de engenharia química. Nossos próximos passos nessa pesquisa são ambiciosos, mas, como precisamos manter as bolsas pelos critérios da CAPES e solicitar novas bolsas para vocês que acabaram de ingressar, precisamos avançar em passos menores, é bom que saibam, que essa atividade exigirá muito de vocês, e a qualquer momento, quem não atender essas exigências, será desligado do grupo, e chamaremos outros que ficaram fora das vagas.

Dessa vez o discurso foi de Aurélio, um bioquímico como eu, com uma ampla experiência em pesquisa farmacêutica. Ligia, uma das médicas do grupo, prosseguiu falando das linhas de trabalho, ditou algumas atividades que seriam desenvolvidas nas próximas semanas, e anunciou o primeiro evento do semestre o qual, o grupo deveria enviar participantes:

-- Será um congresso internacional de pesquisa clínica, os meninos - apontei para os veteranos – Já tem trabalhos prontos, mas, os novatos tem tempo ainda para preparar algum trabalho, temos aí uns vinte dias antes de se encerrar o prazo de submissão, assim, quem tiver interesse, estamos à disposição para orienta-los, quanto mais trabalhos, melhor para o grupo.

Finalizei a reunião, e aos poucos, restavam poucos na minha sala.

-- E ai? Alguém topa, uma pizza? – Fernando, um dos veteranos convidou.

-- Eu topo! – Renatinha, uma das novatas disse.

Um grupo menor, seguiu para a pizzaria, e quanto a mim, que recusei o convite, quando percebi, estava sozinha na sala, nem vi, Marcela e sua amiga Jessica, deixarem a sala. Reuni minhas coisas e quando saía do escritório, fui surpreendida pela novata mais linda no grupo:

-- A senhora não vai para a pizzaria?

-- Ah, não... Estou exausta. Mas, você deveria ir, se enturmar com o pessoal.

-- Estou um pouco cansada também, acho que não faltarão oportunidades...

--Não faltarão mesmo, logo você vai se enturmar.

Saímos do laboratório, e Marcela me acompanhou até a saída para o estacionamento.

-- Eu gostaria de ir ao congresso, professora.

-- Olhe o site do congresso, veja se consegue fazer algum trabalho, eu posso te ajudar.

-- Olharei hoje mesmo.

-- Procure-me com alguma ideia, estão aceitando trabalhos de revisão bibliográfica, então, pode ser uma opção. Todos os finais de tarde, estou no laboratório, fique à vontade para me procurar.

-- Obrigada, professora.

Marcela sorriu, e eu me desmanchei. Observei-a se afastando, em direção oposta à minha, que estava indo para o estacionamento.

-- Marcela! O estacionamento é por aqui...

-- Eu sei, mas, não estou de carro, vim de carona com Jessica e ela foi para a pizzaria com o pessoal. Vou para o ponto de ônibus.

-- Ah, que é isso? Venha, te dou uma carona.

-- Professora, é muito contramão, moro no lado oposto da casa da senhora.

-- Mas, não vou te carregar nas costas... – Brinquei – Vamos, está tarde para você ir de ônibus.

Marcela fez um sinal positivo com a cabeça e seguimos para meu carro. Eu, estava tomada pela energia juvenil da menina. Olhava para cada detalhe do seu gestual, meu encantamento começava a se tornar escrachado.

-- Então, onde você mora?

-- Zona norte da cidade, perto da BR.

-- Vamos lá então, me diga o melhor caminho, não conheço muito bem esse lado da cidade.

Marcela acenou em acordo, e seguimos.

-- Sabe, engraçado, quantas vezes já andei nesse carro com a senhora...

-- Acho que você é a aluna que mais o frequentou, e olhe que não temos nem um mês de aula direito, e hoje foi a primeira reunião do grupo de pesquisa.

-- Então... Espero que eu continue batendo esse recorde.

Sorrimos juntas. O silêncio no carro, contribuiu para que qualquer barulho ecoasse, ouvi o movimento peristáltico vindo do estômago de Marcela, segurei o riso, até o momento que ela não conseguiu fazê-lo:

-- Ai que vergonha! – Marcela disse gargalhando.

-- Você devia ter ido comer a pizza com o pessoal, heim? Tanta fome assim?

-- Ah...Normal...Nem muito, nem pouco... Ah! Mentira! Estou morrendo de fome!

Ri do jeito moleque que Marcela confessava sua fome. Com o carro parado no sinal, pude observar os olhos da menina se fixarem em uma furgão transformado em barraca de cachorro quente.

-- Você gosta de cachorro quente? – Perguntei.

-- A senhora já provou esse? Nossa, é muito bom, o purê de batatas é uma coisa...

Marcela parou de falar de repente, quando me viu sorrindo.

-- Imagina, se a senhora fina como é, ia conhecer o cachorro quente da esquina né?

O sinal abriu e eu encostei logo à frente da tal furgão.

-- Não provei esse ainda, mas, adoro purê de batatas, vamos lá?

-- A senhora? Dra. Luiza, vai comer cachorro quente no meio da rua?

-- Xi, pode parar, acha que sou fresca?

-- Não, que é isso! Estou envergonhada, eu e minhas tripas rocando... Minha cara de esfomeada...

Notei que Marcela estava sendo honesta, estava visivelmente tímida.

-- Vai me deixar com fome? Vou atravessar a cidade e voltar antes de comer algo se não comermos agora.

Saí do carro e abri a porta para ela:

-- Vamos lá, Marcela!

Mesmo demonstrando constrangimento, Marcela desceu do carro.

-- Agora me apresente ao super cachorro quente, com o purê de batatas incrível!

Não demorou até Marcela me trazer “a iguaria”, sentadas em banquinhos de plástico perto do meio fio, degustamos o cachorro quente. Se eu lutava para vê-la como uma menina, aquele momento contribuiu para isso. A garota estava lambuzada de mostarda, purê, e sua roupa já não estava mais tão limpa. Vendo a cena, não contive um sorriso.

-- Que foi? – Marcela perguntou, desconfiada.

-- Você, não está dando chance pro cachorro quente...

-- Hum?

A carinha dela merecia ser eternizada numa fotografia. Peguei um guardanapo, e limpei sua boca, delicadamente, por alguns segundos, nossos olhares se cruzaram, e foi um momento apavorante para mim, tamanha a dimensão das sensações que experimentei: taquicardia, frio na barriga, tremor nas pernas. Se o brilho dos meus olhos fosse semelhante ao que vi nos dela... O diagnóstico de uma paixão estava fechado!

De tanto pavor, simplesmente parei o que estava fazendo e entreguei um guardanapo limpo a Marcela.

-- Ainda tem purê na sua roupa – Apontei – O que é um desperdício, porque o purê é realmente muito bom!

-- Que bom que gostou... Não acredito que trouxe a senhora pra comer no meio da rua...

Percebi as mãos de Marcela trêmulas também enquanto limpava a roupa. O tom seguro na voz da garota, pareceu se esconder.

-- Na verdade, eu te trouxe. Então relaxe, e limpe-se direito, pra não sujar meu carro. – Brinquei tentando minimizar o clima constrangedor.

-- Parece que você está falando com sua filha de cinco anos de idade.

Marcela fez bico involuntariamente, limpando bruscamente os farelos espalhados pela roupa. Meu Deus, aquilo estava ficando ridículo, eu achei a cena fascinante, sorri pateticamente.

-- É, eu tenho idade para ter uma menina de cinco anos, mas, não uma de vinte... Portanto, desfaça esse bico, e vamos embora, né?

Marcela foi me orientando no caminho, e quando finalmente chegamos à sua casa, em um bairro de classe média alta da cidade, a menina se apressou em agradecer:

-- Professora, não tenho palavras para agradecer tamanha gentileza.

-- Menos, Marcela, não foi nada demais. Está entregue, segura, amanhã me procure se tiver alguma ideia para apresentar no congresso...

-- Claro, eu vou olhar no site, agora mesmo.

-- Então, boa noite, Marcela.

O silêncio dentro do carro, aquele espaço tão pequeno, com qualquer outra mulher, eu sentiria que era a hora de um flerte mais pesado, uma carícia mais ousada, o ponto certo para o manifesto de sedução. Mas, não era qualquer mulher, era ela: Marcela, eu a vi pela primeira vez como mulher.

-- É difícil sabia?

-- O que?

-- Sair da sua companhia.

-- Ah...

Fiquei tímida. Não sabia o que responder, e Marcela como se aproveitasse do meu momento de ausência de fala, emendou:

-- Sua companhia, me faz tão bem, parece que te conheço há anos... Na verdade... Parece... Deixa pra lá.

-- Parece o que?

Fitei os olhos de Marcela, ansiosa por alguma respostas mais contundente que me impulsionasse a fazer o que meu corpo pedia. A pouca luz da rua, foi-se, um apagão aconteceu no instante que nossos olhares ficaram presos um ao outro.

Naquela escuridão, senti o calor e o perfume de Marcela se aproximarem do meu pescoço. Minha pele eriçou, meu coração galopou, ainda mais, quando ela falou ao meu ouvido:

-- Parece destino...

Marcela beijou meu rosto e saiu correndo, antes que eu conseguisse responder ou esboçar qualquer outra reação. Bateu a porta do carro e da calçada disse, agora a luz voltara à rua:

-- Boa noite, professora, obrigada mais uma vez, por tudo.

Ela subiu as escadas que davam acesso ao portão da casa, e rapidamente entrou em casa. E quanto a mim? Fiquei lá, catatônica, o máximo de movimento que consegui executar, foi desenhar com os dedos a marca da boca de Marcela em minha pele.

Uma batida no vidro do carro me arrancou do meu quase êxtase. Um guarda municipal fez sinal para que eu baixasse o vidro:

-- Está passando bem, dona?

-- Ah sim. Estou de saída já senhor guarda.

Saí da frente da casa de Marcela saboreando aquele momento. O cheiro dela parecia fixado nas minhas narinas, o tom de sua voz sussurrando, me fazia arrepiar outra vez. Naquela noite, demorei a dormir, nem as mensagens de Beatriz me fizeram sair do pensamento em Marcela. Minha insônia não era angustiante, era efusiva, era inquietante. Não enxergar mais na aluna uma menina, começava a despertar outras sensações em mim.

Um gesto tão simples, mas foi um dos momentos mais sensuais e delicados que experimentei até então. As aulas que ministrei na turma de Marcela eram os momentos mais ansiados por mim, ao passo que me desconcertava ao parar meus olhos nela, eu não me cansava de desafiá-la com perguntas sobre a matéria, me deliciava com aquele jeito de fugir pela tangente quando não sabia a resposta certa. A minha sorte era que nenhum dos meus amigos assistiam minhas aulas, de outra forma, veriam nosso flerte menos disfarçado.

A semana seria mais curta, o feriadão que começava na sexta, antecipou para quinta-feira o clima de final de semana. Todavia, como não tinha planos de viagem para o feriado, mantive minha rotina no laboratório. No final da tarde, os alunos veteranos deixaram o lugar e fiquei só, concluindo um experimento.

-- O que vê? Alguns milhares de dólares em patentes?

A voz de Marcela tomou de conta do laboratório. Ou ela entrou muito silenciosamente, ou eu, estava muito concentrada no microscópio de última geração, recém adquirido pela universidade.

-- Marcela?! Nossa! Essa porta automática é mesmo silenciosa... Não percebi sua entrada.

-- Aproveitei a saída do Joaquim... E você estava muito concentrada aí... Não quis atrapalhar.

-- Ah... Quer ver? – Apontei para o microscópio – Não tem dólares ainda, mas tem uma atividade interessante nesses macrófagos.

-- Que excitante! Quero ver sim.

E ela veio, senti de novo aquele perfume me se fixou no meu olfato desde a segunda-feira.

-- Então, essa é ação da droga? – Marcela perguntou.

-- É, uma delas, mas, ainda estamos em uma fase primária da pesquisa. Provocamos infecções com agentes microbianos simples, e mesmo assim, a sobrevida dos ratinhos é baixa, após curada a infecção, logo, temos muitos efeitos colaterais a combater.

-- Ah, mas, já é um bom resultado!

-- Verdade...

E mais uma vez nossos olhares se cruzaram. Marcela sorriu. Ah se ela soubesse o que aquele sorriso provocava em mim!

-- Então... Aquela amiga da senhora não vai aparecer por aqui hoje?

-- Amiga? Que amiga?

-- Aquela que te deu as rosas, estava aqui naquele dia...

-- Ah! A Clarisse, não... E não foi ela quem me deu as rosas...

Falei sem graça. Marcela continuava me encarando desconfiada. E disse, agora fugindo dos meus olhos, voltando ao microscópio:

-- Então, está afim daquele cachorro quente?

-- Sério? Está me chamando pra comer na rua, de novo?

Marcela sorriu para mim, e minha versão gelatina Royal deu as caras, me tremi toda.

-- Está sem carona, de novo? Perguntei.

-- Poxa professora, eu te convido para jantar, e a senhora já acha que tem algum interesse?

-- Fui indelicada não é? Perdoe-me, eu... – Gaguejei nervosa.

-- Calma, professora! Estou brincando! Mas, o convite para jantar continua, a senhora pode escolher dessa vez, e não precisa me dar carona...

Não sei o que me deu, nem pensei duas vezes antes de aceitar. Seguimos para o estacionamento, conversando amenidades, eu começava a enxergar Marcela com naturalidade, sem o fosso que eu construía com alunos.

-- Eu estou de carro, então, vou seguindo a senhora, tudo bem?

Marcela disse quando chegávamos perto do seu carro. Acenei em acordo, mas, de repente, uma voz estranha ecoou ali:

-- Eu precisava ver com meus próprios olhos que você, Marcela Ferraz, está até essa hora na faculdade em plena véspera de feriado.

O tom da voz era cheio de ironia, o olhar de Marcela era de susto, e desagrado. A dona da voz, era de uma jovem, talvez da mesma idade que Marcela, tinha cabelos longos castanhos com pontas cacheadas, usava um óculos de grau moderno, foi tudo que consegui prestar atenção nela.

-- Oi, Laura. O que faz aqui?

-- Você me disse que estava aqui, fiquei te esperando. Avisei que viria passar o feriado, não lembra?

-- Achei que fosse me ligar pra ir te pegar na rodoviária... Você não confirmou...

Notei o clima íntimo das duas, e isso me incomodou profundamente. Lembrei-me das vezes em que Marcela se afastou para atender telefonemas, e um dos quais escutei, logo associei a garota nova. Fiquei ali assistindo a cena, sem saber ao menos o que falar para cancelar os planos de jantar com Marcela, até que tentando disfarçar o constrangimento, ousei interromper:

-- Bem, Marcela, eu vou indo, nos vemos na segunda na reunião do grupo, bom feriado.

-- Professora, me desculpe, eu não sabia...

-- Professora? Você é a tal professora maravilha? – A jovem falou com sarcasmo.

-- Laura, por favor...

-- Não sei se sou a tal professora maravilha, mas, sim, sou professora da Marcela. Estava de saída, boa noite. Não tem nada pra se desculpar, Marcela, até mais.

Saí sem esperar as desculpas de Marcela, sequer tive coragem de olhar para a direção das duas, temendo testemunhar algo que me desagradaria. Precisava assumir para mim mesma: estava com ciúmes de Marcela.








19 comentários:

  1. História maravilhosa, divertida e cativante, com personagens bem estruturados, além de uma descrição bem realista das áreas de saúde e principalmente do meio acadêmico. Por tudo isto, li tudo que foi publicado neste blog, sem parar pois é impossível mas "preciso" da continuação. É uma história acabada?, neste caso, onde encontro a continuação ? Ou ainda está para ser publicada?

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  2. Chorando rios de sangue enquanto aguardo atualização dessa história maravilhosa 😭😭

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  3. Gente do céu, não vai ter continuação?

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  4. Melllllllllllllll já estou pra ficar doida, comecei a ler porque sei que e amor, e não conseguir achar a segunda temporada, agora esse aí, já tem um ano, e nada da continuação... o que fazer agora sem nenhuma resposta, nos de um caminho, onde posso achar a segunda fase do conto, esse já e o quanto que leio ...preciso da continuação: (

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  5. Melllllllllllllll já estou pra ficar doida, comecei a ler porque sei que e amor, e não conseguir achar a segunda temporada, agora esse aí, já tem um ano, e nada da continuação... o que fazer agora sem nenhuma resposta, nos de um caminho, onde posso achar a segunda fase do conto, esse já e o quanto que leio ...preciso da continuação: (

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  6. Ola, Mel.

    Faz algum tempo que acompanho seus contos, desde do ABC. Esses dias senti saudades da suas historias e decidi relê-las. Fiquei supresa a me deparar com os capitulos dessa nova historia. Não sei se você ira continuar, tendo em vista que faz algum tempo que não atualiza não é? Mas, eu espero que sim. Suas historias são apaixonantes, e sua escrita envolvente.

    Um abraço.
    Mariana Bittencourt.

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  7. Melll volta hauhauha, saudades demais. Esperando ansiosamente para sugar mais de sua criatividade hauhauah

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  8. é olha eu aqui de novo, vira e mexe venho por aqui, ver se por acaso você não voltou. Não perco a esperança. Afinal és minha autora preferida, dentre todos os gêneros de leitura, nem Agatha Christie te vence em minha preferencia rs.

    Brincadeiras a parte, a leitura no meio lésbico perdeu muito com sua ausência, Mel. Mas espero que você esteja bem, cheia de saúde e alegria.
    Beijos de uma eterna fã dos seus romances.

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  9. Espero que você volte a postar aqui Mel, nós suas leitoras sentimos muita falta de suas histórias, principalmente as que te acompanham desse o orkut, volte! Sua escrita faz muita falta! Espero que esteja bem, de umá leitora fiel sua!

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  10. Este comentário foi removido pelo autor.

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