quarta-feira, 29 de novembro de 2017

CAPÍTULO 16: O CONGRESSO



Os alunos no GRUFARMA me surpreenderam. Com o esforço em equipe, conseguiram arrecadar dinheiro suficiente para as inscrições do Congresso de Pesquisa Clínica, nem todos puderam arcar com os custos das passagens, o escasso recurso fornecido pela universidade pagou parte da hospedagem do hotel mais modesto sugerido pela comissão do evento. Como palestrante convidada, minhas despesas estavam pagas, senti-me na obrigação de ajudar com os custos restantes da hospedagem, e partimos: três docentes e cinco pesquisadores do grupo, dentre eles, a mais linda e esforçada: Marcela.


No aeroporto, meu coração experimentou aquele aperto, que só os apaixonados sabem do que estou falando. De longe, reconheci pelas fotos, Laura, se despedindo de Marcela, no saguão. Não vi nada demais, qualquer outra pessoa veria um abraço entre amigas, mas, eu... Bem, eu sabia da verdade.


Marcela se aproximou um tanto tímida de nós, que já nos preparávamos para entrar na sala de embarque. Educadamente me cumprimentou, mas, evitava meus olhos. O voo foi curto, ficamos em poltronas distantes, entretanto, o simples fato de saber que essa seria uma viagem com Marcela, dias em outro ambiente, e longe da namorada dela, já de dava um alento (deprimente, confesso) de ter sua companhia perto por alguns dias.


Ao chegarmos no hotel, Aurélio se prontificou a fazer a divisão dos quartos, conforme nossa reserva, paga antecipadamente, para garantir um desconto a mais. Matemática simples: ele dividira o quarto com o outro colega docente, as três alunas em um quarto triplo e os dois meninos no quarto standart. Meu quarto estava reservado pela comissão do evento, ficaria sozinha em um quarto superior.


Mas, nem tudo é simples, quando se trata da logística de um evento gigantesco, e nós com orçamento curto. Percebi Aurélio exaltado com uma das recepcionistas do hotel e me aproximei.


-- Algum problema Aurélio?

-- Pelo visto, sim. Esse hotel tem um sistema completamente desorganizado. Não há quartos suficientes! E como pagamos antecipado, não temos direito a ressarcimento por causa das regras do desconto...

-- Ei, ei, calma, Aurélio. Como assim, não tem quartos suficientes? Já pagamos pelos quartos, o hotel tem que providenciar. Moço – dirigi-me ao recepcionista – Temos os recibos dos pagamentos, se foi o sistema de vocês a errar, não podemos pagar por esse erro, como vocês vão resolver isso?



O recepcionista, estava nervoso, a fila para o check-in estava enorme, e obviamente, ele não poderia fazer nada que contrariasse a política do hotel.


-- Senhora, eu estava explicando ao seu colega, que não temos quartos suficientes. Infelizmente não posso pelo sistema, fazer o ressarcimento imediatamente...

-- Isso eu já entendi, chame seu gerente, para que resolvamos isso sem maiores constrangimentos para o hotel, por que com certeza, acredite, a irritação do meu amigo não é nadinha perto da minha.



De valentia, eu só tinha pose, mas isso bastou para intimidar o funcionário. Rapidamente o gerente do hotel surgiu, e após a cansativa repetição da história, ele se desculpou, mexendo no monitor do sistema de reservas.


-- Infelizmente, não temos as acomodações que foram pagas por vocês, um terrível erro do sistema, e estamos lotados. Posso acomodar vocês em outro hotel da rede, mas, é um pouco distante do centro de convenções.

-- Um pouco distante, exatamente quanto? – Aurélio perguntou.

-- Uns 40 minutos de carro...

-- O que?!



Aurélio berrou antes do gerente concluir a sentença.


-- Completamente inviável para nós, senhor. Sem contar que isso aumenta nossos custos com deslocamento. – Respondi irritada.

-- Infelizmente, só tenho dois quartos. – O gerente explicou.

-- Quantas camas, tem esses quartos? Tenho um de casal, e outro tem três camas, mas uma delas é beliche, então posso acomodar mais uma cama se vocês desejarem.

-- Mas, mesmo assim, não nos acomoda. – Aurélio bufou irritado. – Vou processar esse hotel! Começar agora a tuitar, vou até fazer um “live” no Instragram.


Ele cumpriu a ameaça, e concordamos que de fato, processaríamos o hotel. Aurélio se afastou para começar a publicar sua insatisfação colérica. E eu, tentava negociar com os demais como resolveríamos o problema.


-- Professora, não me incomodo em dormir em beliche, então esse quarto maior pode ficar com os homens. – Humberto sugeriu.

-- E nós, as três meninas, a gente se vira em um quarto de casal, sem problemas professora. Não podem colocar uma cama extra lá? – Jessica indagou.

-- Tudo bem, deixe-me ver.



Eu estava completamente constrangida. Enquanto eu me ficaria no conforto de uma grande suíte só para mim, os demais membros do grupo, iam se apertar em um quarto, sem um mínimo de privacidade e conforto.


-- Seria possível, colocar mais uma cama no quarto de casal? Para acomodar as três meninas? – Perguntei ao gerente.

-- Senhora, não há espaço. Esse quarto disponível, é menor. O hotel devolverá o excedente, vocês pagarão apenas pelos dois quartos, com as nossas mais sinceras desculpas.

-- As desculpas e o ressarcimento no cartão não resolve nossos problemas. Diga-me, o quarto reservado pela comissão para mim, é amplo?

-- Sim senhora, mas... Trata-se de um convênio com a empresa que está organizando o evento, perdoe-me mas, não posso colocar camas lá, está completamente fora do meu alcance, a mobília do quarto nem permite tal arranjo.



Respirei fundo, contrariada com a situação. No saguão do hotel, todos já estavam exaustos da situação, e o tempo ficara mais curto, em pouco menos de duas horas, a abertura do congresso aconteceria, e sequer acomodação tínhamos para todos. Foi quando sentei em uma das cadeiras vazias, junto aos demais membros do grupo e sugeri:


-- Pessoal, eu sinto muito pelo contratempo. Podemos sair deste hotel e ficar em outro mais distante, e sacrificarmos horas de descanso, no trânsito até o centro de convenções, ou nos adaptarmos ao que o hotel está nos oferecendo. Aurélio, César, sei que é pedir demais, mas, é possível ficar com Humberto e Artur no quarto maior? Meninos, tudo bem para vocês?


-- Luiza, não temos muita opção, ir para outro hotel é insanidade, vamos perder muito tempo. São poucos dias, acho que podemos nos organizar sim, mas, com certeza vou processar esse hotel.


Aurélio falou, demonstrando um tom mais calmo, e os demais concordaram com a solução.


-- Meninas, Jessica, Marcela e Carol, o quarto é de casal, e não cabe outra cama. Dormir três de vocês em uma cama só é demais, eu, estou com um quarto sozinha, é espaçoso, uma de vocês pode ficar comigo, é o mínimo que posso fazer, gostaria de fazer mais, entretanto, o hotel não permite. Então, o que vocês acham?


As meninas se entreolharam, tímidas, só falaram que entendiam a situação, mas, nenhuma se candidatou a vaga no meu quarto.


-- Professora, a gente se vira no quarto, não tem problema. Não vamos tirar a privacidade da senhora, não se preocupe, estudante dá um jeito pra tudo, ficamos no quarto as três. – Carol disse.

-- De maneira nenhuma! Já que ninguém se candidata, vamos fazer um sorteio, seja por sorte ou azar, uma de vocês vai dividir comigo o conforto de uma boa suíte.



Rapidamente coloquei o nome das três em post-it, dobrei-os e pedi para Aurélio retirar um deles. Por alguns momentos, logicamente, desejei que Marcela se oferecesse espontaneamente para ficar comigo, foi uma pequena frustração por isso não ter acontecido. Entretanto, não sei se mais uma vez a vida me sacaneou, ou o universo conspirou a meu favor, Aurélio anunciou o nome do post-it sorteado:


-- Marcela. Dito isso, então, está resolvido. Vamos nos registrar.


Olhei rapidamente para Marcela, que estava com os olhos brilhando, não sei de medo ou alegria. Eu entendia essa dubiedade de sentimentos se assim o fosse, por que eu sentia o mesmo.


-- Vamos.


Fingi naturalidade, e minutos depois, estava travando uma luta com meu músculo cardíaco e a caixa torácica que o abrigava, se eu não estivesse com tanta roupa, certamente seria possível visualizar minha blusa balançar, tamanha era a intensidade das batidas do meu coração. Eu e Marcela, seguimos sozinha no elevador, o hotel, disponibilizava elevadores diferentes de acordo com o andar dos apartamentos, e o meu estava localizado entre os últimos andares.


Visivelmente tímida, Marcela, demonstrava o quão estava intimidada pela atmosfera do hotel. Segurava com força a alça da malinha rosa, e evitava encarar o espelho do elevador. Certamente por isso, não percebeu o quão trêmula eu estava para acertar o cartão magnético no painel, antes de apertar o andar correspondente. Se ela não percebeu o quanto eu estava tremendo dentro do elevador, à porta do quarto, ela viu.


-- Essas chaves são chatas, só falta não estar magnetizada, e eu ter que descer esses vinte andares para apanhar outro... – Comentei tentando disfarçar.


O quarto era bem espaçoso mesmo. Já morei em apartamentos menores do que aquilo: sala com um confortável sofá de dois lugares, pequeno office, cozinha embutida (com pia, frigobar, cafeteira, cooktop, forno micro-ondas e um jogo básico de copos e talheres), TV de plasma de 20 polegadas, uma cama espaçosa, poltrona, cofre, e um guarda-roupas igualmente amplo. Banheiro sofisticado, como o resto do quarto, espaçoso. Olhei na direção de Marcela, e percebi que ela estava intimidada, e tratei de deixa-la mais à vontade.


-- Acabou de pensar: “me dei bem”, né? Imagina se você iria ficar em um quarto apertado, tendo isso tudo aqui, de graça heim? Venha, vamos acomodar essas malas.


-- Professora, eu durmo aqui mesmo no sofá. Bem melhor do que o aperto da cama com três, a Jessica toma espaço de três, sozinha.


-- Marcela, para de bobagem. O sofá só serve para sentar, por mais confortável que pareça, não dá para dormir não. Olha o tamanho dessa cama, você nem vai me notar, juro.

-- Faço questão, professora...

-- Olha, não vamos discutir isso agora. Vamos nos arrumar, daqui a uma hora e meia precisamos encontrar o pessoal no saguão para irmos à abertura do Congresso. A palestra inaugural é importantíssima para nosso grupo, inclusive para tentarmos um contato com diretor de agência de financiamento. Quer ir tomar banho primeiro?


-- Que é isso, professora, o quarto é seu, por favor, pode ir.

-- Vai ser assim, com essas regras? Estou na lista de portadores de necessidades especiais só porque sou uma década mais velha que você?

-- Na verdade, mais que uma década. – Marcela disse sorrindo.

-- Ah, só por esse desaforo, agora, eu que mando! Vá já para o banho, mocinha.


Marcela se deu por vencida, mas, com muita timidez, tentando tomar menos espaço possível no quarto, abriu a sua mala rosa na parte que equivalia a antessala da suíte, e eu, fiz minha parte para lhe dar mais espaço, acomodei minha mala no guarda-roupas, enquanto de rabo de olho, observava Marcela ir de malas e cuia para dentro do banheiro, na verdade, só as cuias, várias necessaries, roupas dobradas, o que me fez supor que ela se trocaria ali mesmo no banheiro. Respeitei, e não fiz nenhum comentário, até mesmo porque, seria um martírio vê-la desnuda, sem poder dar vazão ao meu desejo que crescia com raízes profundas.


Aquele ritual tão próprio do mundo feminino: duas mulheres arrumando-se para sair, passara pelos meus olhos em câmera lenta. O jeito delicado de Marcela se ajustar no vestido justinho, na altura dos joelhos, abaixava-se para pegar suas bijuterias na mala, procurando um par de brincos mais adequado, tudo tão banal, e para mim, estava carregado de sensualidade.


-- Marcela, tem um espelho de corpo inteiro aqui no guarda-roupas, não precisa fazer malabarismo aí no banheiro. Eu já me arrumei, posso me maquiar no banheiro, aliás, devo!


Marcela aceitou tímida meu convite. Pelo espelho notei que ela me olhava, abusei, tentando parecer imune ao seu olhar, joguei os cabelos para um lado, depois para o outro, simulei prendê-lo, tudo para passar mais tempo ao alcance dos olhos de Marcela.


-- Está pronta? – Perguntei, voltando do banheiro.

-- Acho que sim. Não dá para melhorar mais do que isso.

-- Você tem razão, não dá para melhorar o que já é perfeito.


Não percebi que verbalizei em voz alta meu pensamento mais verdadeiro. Marcela balançou a cabeça negativamente, e totalmente acanhada.


-- Na sua idade, não precisa de muito esforço para produção, está linda, podemos ir?


Tentei fingir naturalidade, mas eu me atrapalhava toda, chutando a cama, a porta do guarda-roupas.


-- A senhora está linda, como sempre. – Marcela retribuiu o elogio.

-- Tenho que te avisar, que não estou dando pontos na avaliação parcial do semestre nesse congresso, melhor guardar sua munição para o próximo mês.


Tentei brincar para não deixar tão evidente que eu estava abobada com nossa troca de olhares encantados.


No saguão, esperamos os demais, sem conseguir emendar um assunto na conversa. Estava nervosa com a presença de Marcela, tão linda, produzida com simplicidade, não menti, ela não precisava de nenhum artifício para ficar deslumbrante, mesmo assim, foi a primeira vez que a via daquela forma, isso me apavorou, imaginando como seria minha noite no mesmo quarto que ela.


Dividimos dois táxis para chegarmos ao Centro de Convenções, e lá, houve aquela separação de tribo. Docentes para um lado e discentes para outro, tínhamos objetivos diferentes. Os alunos estavam empolgados, isso sempre me animou. Reencontrei vários amigos pesquisadores do país, alguns estavam fora do Brasil, e foi uma excelente oportunidade de trocar informações sobre bolsas ofertadas por universidades estrangeiras, era o que eu precisava para meus orientandos do mestrado.


Logicamente, como esse era meu mundo desde que ingressei na pesquisa ainda como acadêmica, encontrei também duas ou três ex-namoradas ou rolos do meu passado. No coquetel de abertura do evento após a palestra inaugural, foi inevitável cumprimenta-las e quase formalmente atualizarmos nossa condição atual profissional. Durante todo o tempo, buscava Marcela entre as centenas de pessoas espalhadas, só a encontrei quando fui encontrada por minha ex-namorada mais próxima, aquela que antecedeu Beatriz.


Celina era infectologista, era professora e chefe da residência da Universidade Federal, em outro campus. Nosso término se deu justamente por ela não aceitar namoro à distância, segundo ela, isso não funcionava em nenhum relacionamento, especialmente entre mulheres, onde tudo era mais dramático. Depois de algum tempo concordei com os argumentos dela, pelo menos entre nós a distância mataria nossos sentimentos, Celina era passional, ciumenta, intensa em tudo, a presença física para ela era o ponto principal para o sucesso de uma relação saudável. Ela terminou comigo antes de me trair, na verdade ela me avisou sobre seu interesse em novas pessoas, isso para ela, já era traição, e foi o suficiente para terminarmos sem maiores dramas (da parte dela pelo menos, por que eu sofri a dor de corno).


-- Fiquei muito feliz em ver seu nome na lista dos conferencistas, foi um dos motivos para que eu aceitasse vir a esse coquetel de abertura. – Celina me disse com um largo sorriso, depois de me abraçar.

-- Não me surpreendi em ver seu nome na lista também, mas, confesso que não esperava te ver na abertura, você odeia essas convenções sociais.

-- Estou na cidade desde ontem, vim para uma banca de defesa de mestrado, ah, estava entediada no hotel, ninguém topou fazer um programa fora desse evento, cedi.



Celina falava com aquele jeito despojado dela de sempre. Quem não a conhecia bem, pensaria que ela era uma criatura ranzinza e fria, no entanto, ela era uma companhia agradabilíssima, muito divertida, e sem dúvida uma linda mulher. Nosso papo animado, era observado de longe por Marcela, vi nisso uma excelente oportunidade de provocar ciúmes na garota. Então, eu pegava nos braços de Celina enquanto ela me narrava uma história engraçada, servia taças de espumante para ela, fazendo parecer que eu estava me derretendo por ela.


-- Pelo seu comportamento, posso deduzir que está finalmente solteira? Sem a nuvem Beatriz te circundando?

-- Esperta demais você!

-- Claro que sou, sou brilhante, mas, nesse caso é lógica pura. Você está sorrindo normalmente, sem parecer aquelas montagens de edição de foto, Luiza. Nunca te escondi o quanto eu achava a Beatriz um atraso de vida para você. Alguém para me superar, ah Luiza! Eu merecia alguém melhor na linha sucessória, não é?


Fiz uma careta infantil para Celina.


-- Você me deixou Celina, e sua fila andou rapidinho, está mesmo me criticando?

-- Claro que estou! Você pode ter a mulher que quiser Luiza! Aí, se conformou com Beatriz, uma pessoa medíocre, que você arrastou como peso, apagou seu brilho, eu fiquei muito decepcionada quando encontrei com você e ela naquela convenção em Brasília.

-- É, você não escondeu sua decepção. Atacou a Beatriz com essa sua língua felina!

-- Leonina, meu bem. – Celina brincou.

-- Pois é, deixou sua juba bem saliente. Como você consegue seguir tanto um estereotipo assim?

-- Nasci assim, não preciso me esforçar.


Gargalhamos. E eu, me contorcia inteira para fazer um giro de 360° com os olhos em busca de Marcela, que continuava ali, com os colegas, mas fuzilando com o olhar eu e Celina.


-- Já sabe que estou solteira, e você? Também está?

-- Direta e objetiva! Essa é minha garota! – Celina sorriu.

-- Não me enrola, vai.

-- Solteira, e pelos mesmos motivos de sempre. Paixão que leva a ciúme, que gera sexo de pazes, e isso vicia, até alguém ter que partir. Geralmente sou eu que parto, mas, dessa vez, fui deixada. E adivinha? Eu quis manter o namoro à distância, mas, ela não. Usou minhas próprias palavras contra mim, e me disse, que eu não sou capaz de namorar a distância, presença física era tudo.

-- O mundo gira, heim meu bem?

-- Acho que esse coquetel já deu o que tinha que dar, vamos tomar uma bebida de verdade?


O convite de Celina, tinha traços de malícia. Em qualquer outro momento da minha vida, isso seria lisonjeiro, mas, naquela situação, parecia um convite à traição dos meus sentimentos por Marcela. Antes que eu respondesse a proposta de Celina, Aurélio se aproximou com os meninos, e ao ver Celina, empolgou-se, lembrei-me de que foram amigos íntimos quando ela estava no nosso campus.

-- Ai meu Deus! Celina! Algo de bom tinha que acontecer hoje!

Aurélio deixou um pouco do seu jeito afeminado comedido dar as caras. Logo os dois amigos organizaram uma fugida daquele evento mais formal do evento e partimos para um bar tradicional da cidade.

-- Pessoal, não podemos demorar, quero que vocês aproveitem o congresso! – Chamei a atenção dos alunos mais novos.

-- Luiza, relaxa, de manhã não tem nada de muito interessante. – Celina disse, passando a mão pelos meus ombros.

-- Para você pode ser que não, mas, para eles sim!

Disse isso antes de nos sentarmos na mesa situada no calçadão que abrigava o bar escolhido. Celina fez questão de sentar-se ao meu lado, e por ironia do destino, ficamos à frente de Marcela e Jessica. Isso ia dar merda, pensei. Provocar os ciúmes de Marcela, poderia ser um bônus inesperado, Celina solteira, era um risco, ela poderia se insinuar para que nosso reencontro oportunizasse um “remember”, contudo, meu medo era que Celina identificasse o clima entre eu e Marcela, e aí sim, a noite poderia ser um desastre.


E não deu outra! Depois de algumas cervejas, mais a vontade na mesa, Marcela passou a encarar eu e Celina frequentemente. Eu já nem tocava na caipivodka de kiwi, precisava ficar sóbria. Já Celina, esta não parava de pedir “Manhattan”, o que começava a me preocupar.


Senti uma mão de Celina afagar minhas pernas, especificamente a parte interna da minha coxa, e no susto, levantei bruscamente a perna derrubando minha bebida na mesa. Celina ria maliciosamente, enquanto Marcela virava as tulipas de cerveja, nitidamente desconfortável com a situação. As investidas de Celina ficavam mais obvias, cochichava lembranças de momentos nossos, afagava mechas do meu cabelo, e eu, por mais que tentasse colocar limites, afastando minha cadeira e puxando assunto com outras pessoas na mesa, não conseguia escapar do olhar fuzilante de Marcela.


Insanamente experimentei culpa, um receio tão absurdo de que aquilo estava magoando Marcela, não pensei em nenhum momento em Marcela como uma aluna, nem tampouco que ela tinha uma namorada que afirmava amar. Era hora de encerrar a noite naquele bar.

-- Pessoal, não sei quanto a vocês, mas, para mim, já deu. Estou indo para o hotel, alguém quer aproveitar o táxi?


Disse, olhando para Marcela.

-- Eu te acompanho. – Celina se antecipou.

-- Eu também. – Marcela disse em tom de desafio.

-- Ok, então, vamos...


Como diria o personagem Ferdinando do programa de humor Vai que Cola: “Bicha, eu fiquei toda cagada!”. Comecei a me tremer logo naquela hora, antes mesmo de levantar-me e seguir para o ponto de táxi. Enquanto estava na fila para pagar minha comanda, Celina, atrás de mim, praticamente me abraçando por trás, sussurrou:

-- No meu quarto, ou no seu?


Aí pronto! A mulher gelatina incorporou, me tremi inteira. Disfarcei para não responder o convite de Celina.

-- Aqueles petiscos, ficaram na sua ou na minha comanda?

-- Isso importa? – Celina falou roçando seus lábios no meu ombro.

-- Claro que sim, podem cobrar duplicado.


Não respondi ao convite de Celina, e saímos do bar, as três em direção ao ponto de táxi.

-- Você está no Intercontinental também, Celina?

-- Sim, estou.

-- Ah, tudo certo então. Marcela está dividindo quarto comigo, vamos no mesmo táxi então.


Marcela andava no mesmo passo que nós, como se fosse meu guarda-costas. Entramos no táxi, e seguimos para o hotel, e não teria como ser pior a minha posição, fui no meio das duas no banco traseiro do carro.

À porta do hotel, Celina, dessa vez não me perguntou, ela me intimou:

-- Quarto 2112, já que você adotou um mascote no seu quarto.

Fiquei pálida, Marcela ouviu o comentário, e eu sem saber o que falar, apenas encarei a jovem quase que implorando perdão.

-- Acho que vou precisar pegar um cartão-chave para mim.


Marcela disse com aspecto tristonho, o que me cortou o coração. Mas, o que eu poderia alegar? Fazer uma “DR a trois” no saguão do hotel não era uma opção. Celina me puxou pela mão e praticamente me empurrou para o elevador, sem cerimônia avançou na minha boca, beijando-me com volúpia, tocando-me com toda propriedade que ela tinha sobre as minhas preferências sexuais. Dentro do seu quarto, ela foi se apressando em se despir, se desequilibrou e caiu sentada na cama, fato que foi providencial para que eu me afastasse dela para falar:

-- Celina, para. Não, eu não quero, não posso.

-- Oi? O que é isso Luiza? Como assim?

-- Você é uma mulher maravilhosa, senti muito a sua falta, seus beijos, suas mãos, ai, continuam incríveis! Mas, eu não posso. Não seria certo, não seria justo comigo, nem com você.

-- Não estou entendendo Luiza. Somos duas mulheres adultas, solteiras, que se desejam, o que há de errado nisso? Não estou te pedindo para voltarmos a namorar, é carinho, desejo.

-- Não teria nada de errado, se eu não estivesse emocionalmente envolvida com outra pessoa. Mas, eu estou. Desculpe-me Celina, mas, está além de mim, eu não conseguiria entregar meu corpo a você, ele está ausente.


Celina se arrumou na cama, e perguntou:

-- Você está apaixonada?

-- Não sei, não sei se essa é a palavra. Mas, prefiro não aumentar a confusão que já está na minha cabeça.


Saí do quarto depois de beijar os lábios de Celina e corri para o elevador. Ao entrar no meu quarto, dei de cara com Marcela, tirando a maquiagem borrada de lágrimas no banheiro. Ao notar minha presença, ela fechou a porta e disse baixinho:

-- Não vou demorar, professora.


Fiquei muda. Fui retirando os sapatos, bebi um copo de água, e andei de um lado para outro à porta do banheiro, até que Marcela abriu.

-- Desculpa a demora, professora. Pode ficar à vontade.

-- Não demorou. Marcela, está tudo bem?

-- Acho que passei da conta nas cervejas, só isso.


Não acreditei, lógico, mas não insisti. Entrei no banheiro quase fugindo de encarar o olhar decepcionado de Marcela. Tirei a maquiagem, envolvi-me no roupão, e saí, encontrando Marcela vestida em um pijama juvenil, colorido com estampas. Ela estava arrumando o sofá para deitar-se.

-- Ei, o que você está fazendo?

-- Arrumando o sofá, vou dormir aqui. – Marcela respondeu.

-- Não mesmo. Venha, tem espaço de sobra aqui na cama.


Puxei Marcela pela mão, que estava gelada, e ela imediatamente soltou.

-- Não, eu não quero! Já estou atrapalhando demais.

-- Marcela não seja infantil. Você não atrapalha em nada, e não te trouxe para dormir nesse quarto em um sofá minúsculo.

-- Sou infantil? Um mascote?


Percebi a mágoa dela no tom.

-- Esquece o que a Celine falou, ela bebeu demais. Mas, está sendo infantil, cabeça dura em insistir em dormir aí nesse sofá. Venha comigo, essa cama tem espaço de sobra.


Dessa vez, empurrei Marcela até a cama, ajeitei os travesseiros, e praticamente ordenei:

-- Deite-se.


Contrariada, ela se deitou. Puxei o cobertor para envolve-la, apaguei a luz do abajur do seu lado e disse:

-- Nem precisa dividir o cobertor comigo, tem outro ali no guarda-roupas. Eu não quero mais discutir isso.


Peguei minha camisola no guarda-roupas e me vesti no banheiro. Acomodei-me na cama, a uma distância segura de Marcela, mas suficiente para ouvi-la soluçar.

-- Marcela? - Acendi a luz do abajur. – Você está bem?


Ela não respondeu, mas chorou mais alto. Não me contive, e me aproximei dela. Virei o corpo dela para que eu pudesse encará-la e vi seus olhos vermelhos e nariz inchado, evidenciando seu choro.


-- Ei pequena, o que houve?


Ela apenas balançou a cabeça negativamente. Entendi que ela não queria falar. Abracei-a contra meu peito, afaguei seus cabelos, esperei que os soluços cessassem, e deixei que ela adormecesse nos meus braços, contendo meu desejo pulsante de tomar sua boca, e ter seu corpo inteiro no meu.


Ao acordar, ainda sentia o cheiro doce e a maciez da pele de Marcela na minha, ela, acordou assustada, timidamente se desvencilhou de mim e disse acanhada:


-- Desculpa professora.

-- Bom dia pra você também, Marcela. Você costuma iniciar seu dia assim, já se desculpando?


Marcela riu.

-- Bom dia.

-- Vamos nos apressar para tomar o café? Os meninos já estão se aprontando.


Marcela concordou e sem tocar no assunto da noite anterior, seguiu para o banheiro, e eu, assinava mentalmente meu atestado de boboca apaixonada, contemplando cada gesto dela, manuseando suas muitas necessaries guardadas naquela mala rosa.
**************


Durante o primeiro dia de congresso, estávamos todos espalhados. Fiz questão de que todos explorassem o que mais lhes atraia. O dia seguinte seria o das apresentações deles, então aquele era o dia de fazer o tour na afinidade de cada um. Mas, ao final da tarde, todos estavam em um dos maiores auditórios do centro de convenções para assistir minha palestra, os membros do grupo, e para minha surpresa, Celine também.

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Novo Capítulo

CAPÍTULO 15 – LIÇÃO 13: NUNCA DIGA QUE PIOR NÃO PODE FICAR


A semana começou pesada para mim. Uma segunda-feira daquelas que o Garfield odeia. Meu humor não era o dos melhores, as poças de lama pelo estacionamento só aumentavam a irritação gratuita que eu espalhava em cada passo dado em direção a sala dos professores.


As notícias da política e dos sucessivos cortes de recursos a pesquisa foram a cereja do bolo para dar vazão a minha pior face do mau humor. O que mais poderia acontecer? Alunos antigos do grupo com atraso para receber as bolsas, e as chances de novas bolsas, eram ainda mais escassas. Minha preocupação com meus dois alunos da pós-graduação era sem dúvida o maior dos meus problemas, precisava de alternativas e de maneira rápida.


Mas quem disse que não podia piorar? A reunião no final da tarde com o grupo de pesquisa foi tensa e triste, era notória a desanimação dos meus colegas docentes, e a decepção dos alunos. Marcela seria a aluna que por direito, seria a primeira a receber a bolsa de iniciação científica, já que conquistara o primeiro lugar no processo seletivo, e justamente a ela, eu não poderia mais garantir a bolsa. Naquele dia, completamos as submissões dos trabalhos ao congresso que marcaria o início do nosso semestre como grupo de pesquisa, e logicamente a falta de apoio financeiro para a ida dos alunos, era outra angústia.


Apesar de tudo, Marcela estava de volta. Meus olhos sempre a procuravam no meio daquela discussão, e mesmo com a decepcionante recém descoberta para mim sobre seu namoro, eu não perdia o fascínio quando estava diante dela. Outra constatação que tive naquele dia, era que Marcela lutava para aparentar que estava bem, participando das discussões, se voluntariando para ajudar outros colegas, e por mais ingênuo que pareça da minha parte, sentia que ela continuava a acompanhar meus gestos com encantamento, pelo menos isso era o que eu conseguia captar pelas furtivas trocas de olhares entre nós.

E por falar em piorar mais... Depois que os alunos deixaram o laboratório, fiquei no gabinete, enviando e-mails para as mais diversas agências de fomento à pesquisa, buscando recursos para o grupo. Estava tomada por aquele objetivo, precisava focar minha energia em algo, e aquilo era urgente. Entretanto, a vida insistia em me sacanear, e meu dia de cão teria seu gran finale com a chegada da minha digníssima ex-namorada: Beatriz.


-- Se eu pedir para entrar vou receber uma recusa? – Beatriz perguntou segurando a porta entreaberta.


-- Se você receber uma recusa, vai obedecer? – respondi sem direcionar-lhe o olhar.


-- Claro que não. Nunca fui obediente, e algo me diz que você precisa de mim hoje.


-- Esse algo está te dando informações erradas. O que preciso hoje é de dinheiro para o custeio das bolsas dos meus alunos, você trouxe algum?


-- Que tal esquecer um pouco de trabalho e apreciar esse delicioso pedaço de bolo... de amêndoas com recheio de avelã e nozes, com cobertura de ganache de chocolate,que você adora!


Beatriz colocou o embrulho sobre minha mesa, como se me trouxesse uma surpresa romântica. Pelo menos era, quando namorávamos.


-- Ah Beatriz, sério? Acha mesmo que uma bomba calórica vai diminuir meus problemas reais e sérios com meu compromisso...


-- Ei! Calma aí... Poxa, demorei quase duas horas para te trazer essa “bomba calórica”. Chuva, trânsito, perdi meu horário de almoço para te comprar esse mimo. Sei que não resolve os problemas do financiamento das bolsas, eu também não tenho culpa ok? Não apoio o governo golpista.


Por alguns instantes, vi verdade nas palavras de Beatriz. Fui forçada a me desculpar. A delicatesse que vendia aquele bolo, era de fato do outro lado da cidade.


-- Desculpe-me Beatriz. Mas, realmente hoje não estou para conversa, estou mesmo preocupada.


-- Tudo bem, não precisamos conversar hoje, mas, podemos comer esse bolo? Seria um desperdício leva-lo para comer sozinha...


Beatriz ameaçou tirar o bolo da mesa, quando segurei sua mão.


-- Nem pense nisso. Agora que ele entrou aqui no meu gabinete, ele não sai daqui intacto. – rendi-me.


-- Rola dividir comigo? – Beatriz apertou os olhos, segurando dois garfos descartáveis nas mãos.


-- Seria indelicado da minha parte, claro que divido.


Permiti-me relaxar. Estava exausta, e afinal, era Beatriz, ela sabia ser agradável quando queria.

-- Então, eu imaginei como você estaria tensa, depois de tantas notícias ruins vindas da CAPES, ouvi rapidamente você falando na sala dos professores mais cedo, e não tive dúvidas, pensei que seria menos amargo terminar o dia com um pedacinho do seu bolo favorito.


-- Obrigada pela gentileza, Bia.


-- Quantas vezes você já fez muito mais do que isso por mim, em dias terríveis, Lu... Entenda como uma retribuição do universo.

Não esperava Beatriz agindo daquela forma tão despretensiosa comigo, e ao mesmo tempo tão tenra. Eu estava vulnerável, isso é verdade, entretanto, reconheci ali, a mulher que me apaixonei um dia.

-- Meu Deus, que delícia! Que a crise não acabe com essa delicatesse! – Falei com a boca cheia.

-- Amém! – Beatriz respondeu da mesma forma. - Você está pegando toda a cobertura, e se lambuzando toda, algumas coisas nunca mudam!

-- Vá à merda, Bia! Comer doce só tem graça assim! – Joguei um guardanapo sujo em sua direção.

-- Tem razão! – Beatriz deu outra garfada no bolo e dessa vez, espalhou a cobertura pelos lábios, nariz e até no queixo.

-- Ow! Não desperdiça assim não, essa é a melhor parte do bolo! – Reclamei, tentando limpar o rosto de Beatriz com a ponta dos dedos.


Beatriz fechou os olhos, saboreando mais do que aquela ganache de chocolate, saboreava meu toque sobre sua pele. Institivamente eu toquei mais suavemente, lentamente, e quando estava à beira de prolongar aquela carícia, usei do humor para me livrar da merda que eu caminhava para fazer. Dei-lhe duas tapinhas na bochecha:


-- Acorda! Esse bolo é bom, mas não me enfeitiça.

Beatriz abriu os olhos, nitidamente decepcionada pegou outro guardanapo e disse:


-- Dirigiria quantas horas fossem, para trazê-lo, se o feitiço te tirasse essa carcaça dura que você aprendeu a usar comigo.


-- Beatriz, olha, muito obrigada pelo bolo, foi muito delicado da sua parte, mas, é só um bolo. Você precisa de muito mais que isso para mostrar que está lutando por mim.


Levantei-me enquanto recolhia as embalagens vazias sobre a minha mesa.


-- Não sou tão imbecil como me julga, Luiza. Sei que você é valiosa demais para reconquistar com gestos tão pouco importantes como esse. Só queria que baixasse um pouco a guarda, e permitisse que ao menos nossa amizade pudesse ser resgatada.


-- Amizade? Então, você desistiu de lutar por mim?


-- Claro que não! Mas, não quero errar em nada, começar do zero inclui reconquistar sua amizade.


-- E sua noiva? Sabe dessa nova velha amiga que você está tentando se reaproximar?


-- Luiza, não usa esse tom sarcástico comigo... Eu te conheço...


-- Tudo bem, sem sarcasmo. Vamos ser honestas? Rosas, mensagens, e isso aqui... – exibi a embalagem do bolo – Isso aqui, não vai nos levar a lugar nenhum. Dito isso, que tal a gente encerrar esse encontro não programado, com um amigável “boa noite”?


-- Eu não posso. Sei que precisa de mim, não está bem, Luiza, eu estou vendo nos seus olhos. Conversa comigo.


-- Bia, não quero conversar com você e não vamos ser amigas. Desiste dessa luta, e segue sua vida com a Alicinha, não há nada aqui para ser reconstruído.

Beatriz avançou na minha direção, colocando seus dedos nos meus lábios.


-- Não fala assim. Não traz mais ninguém para essa sala. Boa noite.

Antes que eu me desse conta, Beatriz, já estava com seus lábios nos meus, e como não sou de ferro, entreguei o beijo que ela me roubara ardilosamente. Beijo quente, que me fez desejar mais dela... Até que o barulho da porta batendo nos interrompeu. Abri a porta imediatamente, e segui para as bancadas do laboratório, iluminada por um único foco de luz vindo de uma estufa.


-- Oi?! Quem está aí?


Quase alcançando a porta da saída, avistei Marcela.


-- Desculpa professora, eu só pensei em mostrar esse edital que achei sobre uma bolsa... Amanhã conversamos.


Marcela não me deixou falar mais nada. Bateu a porta da saída e me deixou ali, cheia de dúvidas, insanidades e devaneios, e um sentimento de culpa terrível.


-- Acha que ela nos viu? Desde quando seus alunos vem a essa hora até seu gabinete?


Amargando o arrependimento que nenhum bolo amenizaria, pedi com sinceridade:


-- Bia, vai embora, me deixa em paz, por favor.

*****************



Eu revivi aquele beijo de Beatriz durante a semana toda. Todavia, com mais vivacidade eu revivia a cena com Marcela, saindo daquele laboratório, após provavelmente ver o mesmo beijo. Não havia razão para que eu sentisse qualquer culpa, pelo menos não no que dizia respeito a Marcela. Mas, era nela que meu pensamento se fixava.


Pelo menos naqueles dias, Beatriz atendeu meu pedido: me deixara em paz. Mas, que paz? A cada aula ministrada eu era tomada por uma perturbadora sensação de que decepcionei Marcela. Ela estava apagada em sala de aula, nenhuma pergunta, nenhum comentário ou provocação. O edital que ela veio me mostrar pessoalmente, decidiu enviar por e-mail. Estava distante, e eu absurdamente sofria por isso.


Quando não sofria pela presença fria de Marcela, sofria com minha imaginação fértil, realizando em minha cabeça o cotidiano dela com a namorada. Viviam sob o mesmo teto, compartilhavam uma vida de casal, mesma cama, banhos? Cozinhavam juntas? Faziam planos? Estava enlouquecendo. Para piorar um pouco mais a situação (por que desgraça pouca é passatempo para mim!), acessei minha conta fake do facebook e para minha surpresa, Marcela aceitara minha solicitação de amizade.


E sobre as coisas piorarem? É, atingi meu objetivo estúpido. Estava ali escancarado as fotos de Marcela em meio a muitos amigos, e ao seu lado, marcada nos seus posts, a namorada, Laura. Li cada comentário, analisei cada foto, e de uma maneira quase masoquista, unia minha imaginação com aquelas imagens, até ser interrompida pelo som da janela do bate papo. Era ela, a própria Marcela.


-- Oi, de onde a gente se conhece?


Fiquei estática. Boca aberta e certamente com a cara mais idiota que já registrada em minha história.

-- Desculpe-me, aceitei sua solicitação de amizade, mas, acho que me enganei - Marcela continuou a digitar.


Digita algo, sua idiota! Minha consciência berrava.


-- Oi, não sei ao certo, mas acho que te vi pela universidade. Você faz medicina não é?


Que imbecil! É, isso estava no perfil dela!


-- Sim, mas, já nos esbarramos? Não lembro com certeza, como sou distraída, imaginei que sim, você faz mestrado na mesma linha de pesquisa da professora Luiza, achei que fosse do grupo de pesquisa também.

Parece que não fui tão imbecil assim, chamei a atenção de Marcela, e justamente pelo ponto que eu queria: a professora Luiza, que louca que sou! Referindo-me a mim mesma na terceira pessoa!


-- Ah sim... Fui aluna dela, certamente nos vimos no laboratório sim. – Deixei o gancho para conversa.


-- Ela é incrível, não é?



Respirei fundo e abri um largo sorriso.


-- É, ela é muito competente, e o grupo de pesquisa dela tem ótimos resultados, publicações. Você conseguiu entrar?


-- Felizmente sim! Estamos nos preparando para o congresso internacional de pesquisa clínica. A professora Luiza, está se desdobrando para levar o máximo de nós do grupo, mas, sem os recursos de ajuda de custo, acho que será complicado.


-- Ela fará todo possível, tenho certeza. – Defendi-me tentando animá-la.


-- Claro, ela é fantástica... Você, tem ou tinha contato com ela, fora da faculdade?


-- Como assim? A professora Luiza, é muito profissional. Mas, não é o monstro gélido que pintam por aí.




Eu fazia defesa como se eu adquirisse de fato, uma nova personalidade, personalidade esta, que seria do fã clube Luiza, patética!


-- Nunca pensei que ela fosse um monstro gélido, pessoal exagera, ela só é exigente, mas, gosto disso. Ela é uma mulher espetacular.


-- O que você quis perguntar sobre meu contato fora da faculdade?


-- Sabe algo dela? Assim, vocês saiam, ou ela saía com outros orientandos, sobre relacionamentos dela...


-- O que você quer saber exatamente?


Estava curiosa com a insistência de Marcela.


-- Ela é tão linda, e inteligente, não é casada...


-- Você quer saber se ela é lésbica? – Fui direto ao ponto.


-- Já ouvi comentários...


-- Sim, ela é. Mas, por que o interesse? – Eu me alegrava com a curiosidade dela.


-- É, que eu desconfiava, falaram que ela tinha um relacionamento com outra professora, e acabei flagrando um beijo entre ela e uma outra mulher, agora sei que essa outra mulher é professora da universidade.


Respirei fundo. Confirmei o que precisava, Marcela viu o beijo entre eu e Beatriz.

-- Isso, te incomoda?


-- Incomoda? Não tenho nada contra, não sou homofóbica, curiosidade de aluno, você entende não é?


-- Entendo. Só curiosidade então, acho que você já tem uma resposta, viu a resposta não é?


-- Lorena, então, é o que falam, elas são namoradas?


-- Não sei, a professora Luiza é muito discreta. Isso é tão importante assim para você?


-- Como eu disse, é só curiosidade. Ela foi muito gentil comigo...


Aquele bate-papo durou muito mais tempo do que eu desejaria racionalmente. Estava confusa, e convicta que eu estava trilhando um caminho muito perigoso.


-- A gente podia se encontrar qualquer dia, Lorena. – Marcela sugeriu.


Fiquei pálida, meu perfil fake estava ameaçado.


-- Claro, qualquer dia... Só para esclarecer, você perguntou se a professora era lésbica, e você?


-- Eu o que?


-- Lésbica? Você é linda e, está sugerindo um encontro nosso...


Eu precisava arriscar, sondar como estaria o namoro de Marcela? Ela era do tipo de garota que traía a namorada?


-- Eu tenho namorada, desculpe-me se dei a entender outra coisa. Tinha curiosidade sobre a professora, porque a admiro muito.


-- Ah, então você tem namorada, que decepção para mim. – Joguei um flerte – Você a ama?


-- Acho que sim.


Uma punhalada no meu coração confuso. Precisava dar um fim a essa aventura pueril, por que no fim das contas, nada é tão ruim que não possa piorar.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

NOVO: MANUAL NADA PRÁTICO

CAPÍTULO 14: LIÇAO 12 – A VERDADE NEM SEMPRE É COLORIDA

Pausa para pânico. Processar aquelas informações que Ed acabara de nos trazer.

Chegamos à sala, prontas para nos entregarmos a polícia, eu, imaginando minha carreira descendo lama abaixo em um noticiário das 6 com a voz do Datena anunciando a prisão da professora universitária, e eu, cobrindo com minhas mãos o rosto para não matar meus pais de infarto ou AVC ao mesmo tempo. Numa fração de segundos imaginei a Cris se tornando a nova dona do pedaço na carceragem, com uma namorada em cada pavilhão, e eu, sendo a eterna protegida dela.
Clarisse merecia uma medalha de honra ao mérito pelo sobriedade e sensatez naquele final de semana, certamente, as cinco encarnações que ela odiaria a Cris mereciam a recompensa nessa vida ainda. Ela já estava na sala, entregando as chaves do carro, explicando toda situação, e para minha surpresa, um dos amigos do Ed, era advogado, e logo chamou para si a responsabilidade de nos defender. Felizmente, o carro foi localizado em uma rua próxima a boate, exatamente no local que a foto registrava. A dona do carro, era nada menos do que a morena sensacional da Cris, que tão bêbada quanto nós, não lembrara onde estava seu carro, muito menos as chaves.

O mal entendido foi esclarecido, e aquela noite rendeu o suficiente de assunto para o resto do final de semana. Para nosso alívio, até para diminuir o pagamento do carma, Karla voltou a casa de praia, e enfim, se entendeu com a Clarisse. E eu, vez por outra escapulia, para espiar minhas redes sociais, na esperança de que naquela lista de solicitações de amizades que as notificações do Facebook me mostrava, houvesse o pedido de Marcela.
A frustração me acompanhou, e a imaginação continuava a fluir, e cada vez mais me sentia mais convicta em colocar em prática o plano da criação de um perfil fake para “stalkear” a vida de Marcela. Esqueci-me apenas do pequeno detalhe naquela confusão do feriado na casa de praia: a memória da Cris, ela não me deixaria em paz até descobrir o que eu sentia por Marcela.
***************
Diante da tela do meu notebook eu só pensava: “Que nome atrairia Marcela?”. Naquele território inexplorado para mim, nada que uma boa “googlada” para achar o mais vasto repertório para fazer nascer uma nova pessoa: fotos, imagens, frases, afinal de contas, até sites especializados no assunto já estava disponível. E eu me sentindo a criatura mais desesperada do universo, ahah! Advinha só? Como eu, existiam milhões de mulheres que apelavam para o mesmo recurso.

Mas, não podia ser qualquer imagem, qualquer nome. Paradoxo ridículo: ser única no meio de tantos perfis falsos, única e irresistível para que Marcela me aceitasse. Não perdi a esperança da própria me adicionar no meu perfil verdadeiro, entretanto, a vida, essa adorava me fazer de trouxa. Ironicamente, naquele feriado, eu devo ter aceitado todas as solicitações de amizade de alunos, exceto a que eu mais precisava.
E... pronto! Estava criada a mais nova gata sensual, blogueira, intelectual moderna, enigmática e filósofa Lorena Bachio. A última vez que passei tanto tempo fazendo escolhas, foi no supermercado, na minha frustrada tentativa de me tornar vegana (tentativa que durou exatamente 12horas e um estoque de soja que alimentaria uma expedição da NASA por um mês pela órbita terrestre).
O encerramento do meu feriado, foi coroado com “essa nova mulher, aqui dentro de mim”. Dentro de mim uma ova, Lorena Bachio era para mim, o estereótipo que se adequava a Marcela, a imagem de Laura foi um bom parâmetro, já que eu, concluíra sozinha que a garota possessiva era a namorada da minha pupila.
Perfil criado, personagem montado: estudante de mestrado em farmacologia da mesma universidade, graduada em farmácia, amante de artes cênicas, feminista. Em questão de horas, Lorena já tinha mais solicitações de amizade do que eu. E eu, experimentando algo novo, uma liberdade que só a internet pode dar de uma maneira fugaz: SER QUEM VOCÊ QUISER. Saí adicionando as menininhas todas, que tinham alguma ligação com aquelas que me adicionaram, e aquela janelinha do bate papo, saltava horrores. Assuntos fúteis, convites para “sociaizinhas”, pedido de homem tarado para ligar a webcam, e eu inusitadamente, me divertia naquele mundo, até ter a coragem de enviar a solicitação de amizade para meu alvo principal: Marcela.
Dormi ali por cima do meu notebook, exausta de copiar e colar as mesmas coisas naquele monte de janela de bate-papo, ow mundo brejo! Muita sapa nesse universo! Por pouco não perdi a hora para chegar à universidade, porque precisava conferir se meu plano estava evoluindo, e agora, eu precisava logar em duas contas diferentes de Facebook. Mentalmente eu já começava a fazer mil conjecturas, se, eu conseguisse conversar com Marcela, sob a segurança de outra personalidade. Perceberam o tamanho da minha enrascada emocional? Eu não... Hora, estava olhado o telefone, hora olhava o tablet, hora o notebook, e aquelas malditas bandeirinhas vermelhas começaram a me escravizar.
Na sala dos professores, se eu já estava reclusa pela presença espaçosa de Beatriz, agora, estava absorta, assumindo um costume nada benéfico: viciada no mundo virtual. Alheia a qualquer pauta sobre as manifestações do sindicato dos professores, o corte de verbas para as pesquisas e bolsas, eu me focava nos meus apetrechos tecnológicos. Busca completamente insana, e até então, sem êxito. Antes de deixar o campus, decepcionada por não encontrar Marcela nem no mundo virtual e tampouco no mundo real, passei pelo laboratório na última esperança de ter algum sinal de fumaça daquela que me roubara todos os pensamentos.

-- Oi Humberto! Está sozinho aqui? Nenhum dos seus colegas veio hoje?

Perguntei tentando disfarçar minha real dúvida. Humberto, era um dos novos bolsistas aprovados no GRUFARMA, colega de Marcela.

-- Ah, oi professora! Marquei com mais dois colegas, mas, furaram comigo. Tudo bem, se eu ficar por aqui? Quero finalizar o resumo para o congresso que a senhora falou. A Alessandra estava me ajudando nessas lâminas.

-- Claro que pode ficar aqui, mas, não é a Alessandra que tem que te ajudar no trabalho. Ela é técnica do laboratório, onde estão seus colegas?

-- Então, o Artur está em aula ainda, e a Marcela, não apareceu hoje.

-- Marcela não apareceu? Aconteceu algo? – Meu coração já acelerava.

-- Nem sei dizer professora, ela só me mandou mensagem avisando que não poderia vir, e me disse que faria a parte dela em casa.

-- Ela acha que pode fazer atividades de laboratório em casa? Faça-me o favor de avisar que se o trabalho não for feito aqui por todos, não permitirei que o nome dela entre na submissão.

Mal percebi que não disfarcei minha decepção raivosa, e completei a tempo:

-- Diga o mesmo a Artur. A função da Alessandra não é substituir os alunos nos trabalhos.

Respirei fundo e saí dali me sentindo uma bruxa mal amada. Talvez por isso, meu novo vicio no mundo virtual me deu alento. Não podia negar o quanto me envaidecia o assédio das meninas no meu perfil falso, já que no meu perfil verdadeiro, eu não conseguia derrubar a barreira que eu lutei anos para construir, não dando espaço a qualquer aluno me incomodar através daquela mídia social. Fazia questão de estabelecer essa norma para todos, sem exceção, era mais um dos fatores que contribuía para minha péssima fama de chata e inflexível.
************
Durante a semana, Marcela sumira. Não compareceu as aulas, nem a reunião do grupo de pesquisa. Entre os membros do grupo, foi a única a não se manifestar sobre o andamento dos resumos para submissão do congresso, o primeiro que iríamos como atividade do grupo. Não respondeu e-mails, nem mesmo um simples emoticon no grupo de whatsapp. Isso não só me preocupava, me tirava a paz!

Ao contrário de Marcela que me fez sofrer com sua ausência, Cris não me esqueceu. A noite de sexta chegou com a minha amiga na minha porta, me sacaneando, com uma garrafa de tequila na mão.

-- Demorei, baby, mas, estou aqui!

-- Chagas abertas! Você entra Cris, esse demônio aí em forma de garrafa não!

-- Dramáticaaaa! Cuervo fica aqui, para lembrarmos o quão mulherzinha nós somos!

Cris colocou a garrafa na mesa de centro da sala, depois de me arrancar uma gargalhada.

-- Estamos ficando velhas, fato! Quando um “Cuervo” nos derrubava assim? Nunca! Acho que batizaram nossa bebida, não é possível... – Cris comentou.

-- Cris, nós enfiamos o pé na jaca, não foi só essa garrafa que bebemos... Meu cartão de crédito pelo menos me disse isso.

-- Você também pagou conta alta? Tem algo errado aí, toda aquela bondade da Clarichata tinha um motivo, ela nos deu um golpe, isso sim!

-- Para de falar bobagem! Você vira o próprio Neymar, quando está bêbada, fica milionária, pagando bebida pra todo mundo, e quem garante que não foi a morena fenomenal que você estava pegando? Clarisse não precisa disso, Cris.

-- Ah! Que seja, pagaria de novo, se eu a encontrasse, depois de tentar roubar o carro dela, pensei que nos veríamos...
Gargalhamos, foi inevitável.

-- E por falar em carro roubado... Quem é Marcela?

-- Oi?! – Fiz cara de surpresa.

-- Não banca a sonsa. Essa foi a pergunta que fiz no final de semana, quando fomos interrompidas pelo Ed, falando do tal roubo do carro. Manda a real, quem é Marcela?

-- Marcela? Sei lá, de onde você tirou esse nome? – Levantei-me e caminhei em direção a cozinha. – Quer uma cerveja?

-- Luiza, qual é! Alouuu, quem pensa que engana? Eu te conheço de muitas tequilas, cervejas e porres atrás! Sem enrolação, manda, quem é essa garota?

-- Cris, de boa, não sei do que você está falando. Você se lembra do que o Ed contou? Eu estava na pista de dança com mulheres lindas, uma até batizei com meu vômito, vai ver o nome de alguma delas era esse... Quer ou não a cerveja?

Berrei da cozinha a pergunta, querendo me esquivar de novo do interrogatório.

-- Traz essa cerveja, mas, não pense que você me enrola não. Tem perereca aí nesse brejo, e eu vou descobrir mais cedo ou mais tarde.

-- Não duvido da sua habilidade de caçar perereca! – Gargalhei – E falando especificamente nesse anfíbio... O que faz você estar aqui no meu apartamento em plena noite de sexta?

-- Semana puxada, e estou de plantão na obra do condomínio novo, então, vou dar oportunidade para outras caçadoras brejeiras...

-- Então, quando você está de castigo, minha companhia é seu destino?

-- Menos, Lu.

Cris revirou os olhos, e como era tão próprio dos nossos encontros, ela me fez rir e esquecer por alguns momentos, o motivo que absorvia as energias dos últimos dias. Contudo, não o suficiente para me impedir de mergulhar no universo virtual em busca das meia-verdades, a ilusão e a esperança de ser outra pessoa através de likes e bate papos bobos e fantasiosos. A ausência de Marcela me confundia, e pior, me perturbava.

Aquela chuva de informações me saturou. Eu precisava de notícias de Marcela, precisava de um passo em direção a ela, também pelo meu dever como professora e orientadora dela no grupo de pesquisa, aquele sumiço poderia representar atraso no rendimento dela, e nas atividades da pesquisa. É, vez por outra, eu consigo a façanha de enganar a mim mesma, qualquer terapeuta de meia tigela veria meu subterfúgio para justificar minha necessidade de ligar, mandar mensagem, e-mail, com remetente específico. Não era a professora Luiza preocupada, era Luiza, a mulher aturdida como uma adolescente apaixonada.

Peguei o telefone, e pelos dados do grupo de pesquisa, puxei uma janela no whatsapp com contato de Marcela, e com as mãos trêmulas, enviei:
“Marcela, bom dia. Estou preocupada com você, preciso de respostas aos e-mails do grupo de pesquisa, aguardo seu retorno”.
Talvez a mensagem fosse fria, mas ela continha tanta preocupação. Postei imediatamente no meu perfil fake um verso de um poema, de um filme do Oswaldo Montenegro:
“E se acaso não crer em minha partida, comece a contar de sempre os dias da minha ausência”
Era minha outra personalidade pedindo perdão por ser tão distante nas palavras, de alguém que sofria insana e precocemente a ausência contada, dia a dia, em outros parâmetros, a cada visualização da caixa de entrada do e-mail, mensagem do celular...
Não podia mais tolerar tamanho silêncio. Assumi meus TOCs, e comecei uma faxina daquelas que começou na minha escrivaninha e quando me dei conta, já estava com lenço na cabeça, revirando os papéis e pastas da minha estante. Com a faxineira incorporada, nem percebi a noite cair, somente quando o interfone tocou me dei conta da escuridão que estava pela casa, quando tive que tatear os interruptores até atender a chamada.

- Oi, quem é? – Perguntei ofegante.

- Oi Professora Luiza, desculpa o incomodo, sou eu, Marcela.

Pausa para uma pequena vertigem e um turbilhão de sensações. Disfarçando minha agonia e pressa em vê-la, fui econômica nas palavras:

-- Oi Marcela, melhor você subir.

Respondi de pronto, autorizando a entrada do meu desassossego. Logicamente esqueci-me do meu status de mulher do lar, ao passar de frente a geladeira de inox, eu vi meu visual doméstico. Para! Marcela não pode me ver assim! Tarde demais, a campainha já tocava, e eu não tinha poderes da “Supergirl” e sair tirando minha capa de “diarista”. Uma conferida no poder do Rexona no máximo foi o que deu tempo.

-- Oi Marcela!

Cadê meu fôlego? Subitamente me vi sem ele, alguns rastros me sobraram, acenando com a cabeça pedindo para Marcela entrar. Minhas pernas tremiam, e meu coração palpitava, primeiro pelo alívio de vê-la sã e salva na minha frente, segundo, por que ela, bem... Não me perguntem como, mas, ela estava mais linda desde que a vi...Pareceram meses... E foram apenas dez dias?
As mãos dentro do bolso da frente do jeans rasgado, na cintura uma camisa quadriculada amarrada, e uma camiseta com estampas da Minie. Que sexy! Não riam! Aquela imagem, era de longe, uma das mais sensuais que registrei em muito tempo. O sorriso, bem, esse estava opaco, Marcela mal me encarava, os óculos de grau disfarçavam as olheiras, não o suficiente para meus olhos atentos.

-- Professora Luiza, eu gostaria de pedir desculpas pelo sumiço, esses dias sem cumprir meus compromissos com o grupo de pesquisa... Eu estava passando aqui perto, bom, achei que merecesse um pedido de desculpas pessoalmente e não por e-mail...

-- Marcela, o que houve? Você não parece bem...

Não deu tempo eu concluir o meu texto, e já percebi uma lágrima escapar pelo canto do olho de Marcela. Contive minha vontade de abraça-la e apertar seu rosto no meu peito, e consolá-la, seja qual fosse sua aflição.

-- Ei, sente-se um pouco. Respire. – Conduzi Marcela até o sofá e pedi que sentasse, e fiquei diante dela, sentada no puff – Agora me conte o que está acontecendo.

-- Professora, eu tive alguns problemas, na verdade, não são problemas meus, mas, me afetaram, e tive que me ausentar esses dias.

-- Tudo bem, Marcela, todos temos problemas, mas, me diga, posso ajudar em algo? – Eu estava aflita, e queria ela confiasse em mim.

-- Está tudo bem agora professora, pelo menos... Acho que está. Só queria deixar claro que esse sumiço não vai se repetir e amanhã mesmo eu concluo minha parte nos resumos, e na segunda, enviamos para sua avaliação.

-- Marcela, calma. Estou preocupada com você, não com os trabalhos da pesquisa, sei que vocês farão a tempo. Posso te perguntar uma coisa?

-- Claro, professora.

-- Antes do feriado, quando estávamos no estacionamento do campus, aquela garota...

Marcela baixou a cabeça e a balançou negativamente, e deixou uma expiração longa quase resmungar.

-- Laura, o nome dela. Sinto muito professora, ela não é daquele jeito. Mas, foi grosseira e mal educada com a senhora, perdoe-me.

-- Lembro-me do nome, isso mesmo, Laura. Impressão minha, ou ela, não gosta de mim? Eu já fui professora dela? Não costumo esquecer-me de alunos, mas...

-- Não, professora, Laura é da minha cidade natal. Ela só conhece a senhora de nome, falo muito sobre a senhora...

-- Senhora? Pensei que já combinamos deixar esse tratamento formal de lado... Ora Marcela...

-- Estou me policiando...

-- Policiando, mas, por quê? Não estou entendendo.

-- Professora, aceite minhas desculpas, foi uma situação desagradável, mas, não vai se repetir também. – Marcela desconversou.

-- Tudo bem então. A Laura então é da sua cidade e veio passar o feriado com você e estava com problemas?

-- Mais ou menos isso. Ela veio passar o feriado comigo e depois disso, resolveu ficar.

-- Resolveu ficar?

Minha curiosidade já começava a se mostrar de maneira invasiva, mas, minha língua desenfreada pouco ligou para isso. Marcela levantou-se e outra vez notei outra lágrima densa escapar pelo seu rosto.

-- Ela está morando comigo agora. Surgiu uma oportunidade de estágio aqui, ela acabou de se formar, e não tinha onde ficar, então ela está morando comigo agora.

-- Ah... – Uma indagação ainda permanecia: quem diabos é essa garota para ela? Contive-me. – Então você tem uma nova colega de apartamento. Isso é um problema?

-- Como isso é difícil de falar... Professora, ela é minha namorada.

Maysa (a cantora já morta, não aquela menina prodígio que Silvio Santos criou) cantou no meu ouvido: Meu mundo caiu...

-- Estávamos praticamente terminando o namoro, mas, essa reviravolta, ela precisando começar uma carreira, e com oportunidade aqui, não pude negar... Então passei a semana procurando um apartamento com mais um quarto, já que estava tudo acertado para eu dividir apartamento com a Jéssica, tivemos que procurar outro, e aí além de fazer a minha mudança, acabei tendo que ajudar na mudança da Laura também...

-- Então era esse o problema que te fez sumir esses dias todos?

-- É complicado...

Respirei fundo, como se compartilhasse a angústia de Marcela.

-- Você está com medo, de ter que de uma hora pra outra morar com sua namorada, quando o namoro já não estava indo bem...

Marcela só concordou com um gesto, e sentou em outra poltrona do sofá. Aproximei-me dela e não sei de onde surgiu aquele insite de serenidade, e consolei-a:

-- Vai ficar tudo bem. Você praticamente passa o dia na faculdade, terão rotinas diferentes, não se sinta pressionada, e já que está me dizendo que ela não é daquele jeito como se comportou, considere que será uma boa companhia, e quem sabe faça bem para o namoro de vocês.

-- É que... As coisas não são mais como eram lá no interior, na nossa cidade. Alguns sentimentos mudaram, novas pessoas... Saí daquela cidade para ser um pouco mais livre...

-- Não sofra por antecedência, vai dar tudo certo. Não se prive de sua liberdade, isso não seria saudável para nenhuma de vocês.

Marcela deu de ombros, demonstrando sua completa insatisfação. E eu, amargava minha decepção. Quem foi que escolheu uma bandeira colorida como representação do mundo gay? A verdade para minha “sapice” ali era cinza, assim como a noite daquele sábado e o domingo inteiro de chuva.

CAPÍTULO 33 - LEIS DO DESTINO (1ª FASE)

CAPÍTULO 33 Tutari voluit
*Intenção de proteger


Pedro acompanhou Natalia até a delegacia, onde um dos preceptores de prática jurídica da universidade os aguardava, se apresentando como advogado da moça a pedido do amigo.

-- Natalia pode ficar calma, pedi para o Doutor Prado vir só pra te deixar mais segura, mas é só um depoimento.

A menina apenas acenou em acordo, visivelmente tensa. Narrou para o delegado tudo que aconteceu entre ela e Sandro até o seu último ataque. Reviver aquele pesadelo em cada palavra trouxe à tona a fragilidade da aparente moça forte do interior. Exatamente por tal motivo, Natália lamentou interiormente não poder contar com o apoio da namorada, que insistia em manter em segredo a relação.

-- Natalia, você está bem?

A jovem apenas acenou em acordo apaticamente à pergunta de Pedro.

-- O Sandro está preso, mas não vou mentir: em breve ele sairá e responderá ao processo em liberdade.

-- E vai estudar na mesma sala que eu, vai me perseguir, publicar aquelas fotos na internet, ou seja: fará da minha vida um inferno.

-- Não! Não vou permitir isso!

-- O que você poderá fazer Pedro? Vai me escoltar?

-- Faria isso se fosse necessário, aliás, faria com todo prazer, só pra ficar ao seu lado o dia inteiro...

O rapaz disse com os olhos cintilando sua paixão.

-- Entretanto, temos outros meios mais eficazes para lhe proteger. Faremos isso judicialmente. O Doutor Prado vai solicitar uma ordem de restrição, que proibirá Sandro de se aproximar de você, a coordenação do curso terá que agir, certamente vai sugerir a transferência dele para o curso noturno.

-- Isso vai demorar quanto tempo?

-- Com a influência do pai da Diana, garanto que isso será rápido!

-- O pai da Diana?

-- É, sabe que estou verdadeiramente surpreso com o empenho da Diana pra te ajudar. O pai dela tem intervindo todo tempo para acelerar as coisas, não é típico de a Diana requisitar assim o poder do pai dela.

-- Mas, por que o pai dela tem tanto poder assim?

-- Você não sabe quem é o pai da Diana?

-- Não! Por que deveria saber?

-- Por que todos na faculdade sabem...

-- Ok, o que a faculdade toda sabe?

-- A Diana é filha do senador Acrisio Toledo Campos.

Natalia franziu a testa, como se evidenciasse uma interrogação.

-- Você não sabe quem é Acrisio Toledo Campos? – Pedro indagou surpreso.

-- Esse nome não é estranho, mas não lembro exatamente de quem estamos falando.

-- Ele é o dono do Mato Grosso. Era um advogado pouco convencional, o mais procurado pelos criminosos mais famosos do país, rapidamente multiplicou o patrimônio da família investindo principalmente em terras e gado, até ingressar na carreira política. Volta e meia aparece uma denúncia contra ele, inclusive naquele escândalo de compra de sentenças, na participação de grupos de extermínio...

-- Claro! Sei quem é! – Natalia interrompeu.

-- Ele é seu mais novo defensor.

A expressão de Natalia ao ouvir isso foi tão confusa quanto seu sentimento diante daquela situação. Para ela, Acrisio Toledo Campos era a personificação de tudo que ela mais repugnava no meio político, o exemplo da politicagem opressora.

-- Agora posso entender porque Diana odeia que a chamem pelo nome completo... – Natalia pensou alto.

-- Como você sabe disso? – Pedro perguntou.

-- Pela reação dela nas aulas de IED... – Natalia disfarçou.

-- Essa é outra história... A professora Dorotheia odeia Acrisio Toledo e tenta se vingar perseguindo Diana na disciplina dela.

-- Então pelo jeito serei mais uma a ter rabo preso com o senador Acrisio?

-- Pergunta capciosa heim... Na verdade, o que me intriga é o empenho da Diana em pedir ajuda do pai. A consciência dela deve mesmo pesar muito, ela julga que é culpada por essa perseguição do Sandro...

-- Mas isso é absurdo, eu nunca pensaria dessa forma!

-- Eu sei disso, mas de qualquer maneira, a intervenção dela, do pai dela, vai nos ajudar muito, inclusive para obter esses originais das fotos, pode se tornar uma moeda de troca para diminuir a pena dele em um acordo.

-- Quais são os próximos passos nesse processo?

-- Bem, o advogado do Sandro deve conseguir um Habeas corpus nos próximos dias, e ele responderá em liberdade. Entretanto, o Doutor Prado vai entrar com um pedido para que você seja incluída no programa de proteção a vítima imediatamente.

-- Obrigada por tudo Pedro, agora, preciso ir pra casa.

-- Sua casa... Esse é outro ponto que gostaria de conversar com você Natalia.

-- O que tem minha casa?

-- Não sei, nunca entrei lá... Mas, sei que é no fim do mundo! Muito arriscado você continuar morando lá!

-- O que você sugere Pedro? Meus pais não tem grana pra pagar os preços absurdos dos apartamentos perto do campus...

-- Pensei nisso com o Lucas, e conversamos com algumas amigas que estão se organizando para abrir vaga na república delas.

-- Pedro...

-- Não se preocupe Natalia, as meninas são ótimas, algumas você já conhece do time de vôlei.

Natalia ficou pensativa, a dedicação apaixonada dos irmãos despertava além de culpa por enganá-los escondendo seu namoro com Diana, um sentimento de segurança. Pedro e Lucas, gratuitamente manifestavam o carinho protetor que ela tanto precisava naquele momento. O cuidado da namorada era indiscutível, mas o teor clandestino do relacionamento provocava em Natalia a incômoda sensação da instabilidade do namoro.

******

Diana mal conseguiu prestar atenção nas aulas, seu pensamento e seu coração estavam com a namorada, na delegacia, depondo contra Sandro. Sua vontade era de estar ao lado de Natalia, mas, seus receios impediram tal atitude.

A mensagem no celular recém comprado por Natalia foi suficiente para fazer a loirinha sair no meio da última aula e correr para casa.

-- “Estou em casa. Esse é meu novo número. Nat”.

A caminho de casa, parou em uma confeitaria, comprou a torta “floresta negra”que Natalia confessara ser seu doce favorito. Encontrou a namorada na cozinha, aparentemente concentrada preparando o almoço.

-- Olha que posso me acostumar com isso... – Diana disse abraçando Natalia pela cintura.

-- Isso o quê?

-- Você me esperando em casa, preparando nosso almoço...

-- Ah... Você quer me contratar como sua cozinheira?

-- Claro que não! Quem vai fazer a faxina se você ficar só cozinhando?

Diana gargalhou depois da expressão indignada da outra.

-- Falava da sua companhia sua boba... – Diana beijou os lábios de Natalia.

-- Mas vai ter que desacostumar...

Natalia falou se afastando de Diana. A loirinha franziu a testa estranhado a reação da namorada.

-- Do que você está falando?

-- Tenho que voltar para meu apartamento.

-- Mas Nat, você mal se recuperou...

-- Diana não tive ferimentos sérios, posso me cuidar. – Natalia interrompeu.

-- Ah pode? Da última vez, um louco quase te violentava! E seus ferimentos físicos até podem não ter sido sérios, mas como vai ser quando você acordar no meio da noite com pesadelos, sozinha naquela caixa de fósforos que você chama de casa?

Natalia se encostou no balcão da cozinha baixando os olhos.

-- Nat não tem sentido você sair daqui. Mesmo que o advogado consiga uma ordem judicial limitando a aproximação do Sandro, não é bom você ficar sozinha nesse momento. E não há porque isso acontecer, já que você não está sozinha!

-- Não mesmo Diana?

-- Claro que não! Você não acredita que estou ao seu lado?

-- Não vi você do meu lado naquela delegacia hoje...

-- Não estava ao seu lado fisicamente, mas estava te protegendo com os recursos que tenho...

-- Os recursos os quais você se refere são os recursos do seu pai, o grande senador?

-- Se você acha que meu cuidado com você se limita às intervenções do meu pai, você não tem noção do quanto gosto de você e o quanto é importante para mim.

-- Acho que entre quatro paredes, longe do mundo você deixa isso muito claro, mas sinto falta de mais...

-- Por que não estou publicamente ao seu lado? Estou nos bastidores, passando por cima de meu orgulho e das minhas promessas interiores, só pra te proteger.

-- Não quero você nos bastidores da minha vida Diana. Quero você ao meu lado no palco.

Natalia saiu da cozinha deixando Diana sem palavras. Estava muito clara a insatisfação dela com o namoro, e isso angustiou a loirinha profundamente. Diana seguiu a namorada até o quarto e com voz mansa a chamou:

-- Nat...

-- Oi Diana.

-- Você está chateada comigo?

-- O que você acha?

-- Seu tom já me respondeu...

-- Diana é querer demais que minha namorada fique do meu lado?

-- O fato de eu não estar em público com você, não quer dizer que não esteja ao seu lado. Por que é tão importante pra você assumirmos nosso namoro para todos? Acho que não tem noção das consequências disso.

-- Se não podemos assumir nosso relacionamento, permanecer aqui mais tempo é muito arriscado para seus amigos nos flagrarem.

Diana tentou argumentar, mas, os seus argumentos pareciam frágeis diante do tom magoado da namorada, engoliu as palavras, enquanto observava Natalia recolher suas coisas espalhadas pelo quarto.

-- Nat, por que você está guardando suas roupas?

-- Por que é hora de voltar pra minha casa ou caixa de fósforos como você chama.

-- Natália para com isso! Você não vai a lugar nenhum!

Diana se aproximou da namorada tomando as roupas que ela tinha nas mãos.

-- Você não vai se expor a riscos sem necessidade, não vai ficar sozinha, continua aqui até essa confusão toda se resolver, e se os meninos nos flagrarem, eu não vou esconder nada!

-- Então vamos continuar mentindo esperando um flagrante?

-- Só te peço um pouco mais de tempo Nat... É um momento muito tenso para carregarmos de mais drama ainda.

-- Acho que você está é me enrolando!

-- Nat... Será que não mereço um crédito? Um tempinho?

Diana fez cara de anjo, arrancando um sorriso tímido de Natalia.

-- Tudo bem... Vou te dar mais alguns dias, até essa história do Sandro se resolver, os meninos sossegarem mais...

-- Ótimo! Agora vamos comer, estou faminta, trouxe sua sobremesa favorita e você nem ligou!

-- Jura que você trouxe torta charlote?

-- Não é floresta negra a sua favorita?

Diana perguntou sem graça. Natalia sorriu e respondeu:

-- Vai passar a ser agora, só pra você tirar essa cara de frustração.



Natalia se aproximou dos lábios de Diana, roubando um beijo delicado selando o acordo, acreditando que sua insatisfação tinha os dias contados, numa esperança ingênua de que os problemas no namoro se encerrariam em breve.

terça-feira, 21 de novembro de 2017

CONTINUAÇÃO 1ª FASE - LEIS DO DESTINO

CAPÍTULO 32 - Curam vulneribus
* Cuidando das feridas


Depois de pegar algumas roupas na casa de Natália, as duas seguiram para o apartamento de Diana, a loirinha se derramava em cuidados com a namorada, o que comovia e divertia ao mesmo tempo Natalia.

Com muita delicadeza, Diana ajudou a namorada a se acomodar na sua cama, cercando-a de travesseiros.

-- Di, vai faltar espaço para você nessa cama se você colocar mais travesseiros, você está com medo que eu caia da cama? Estou machucada, não voltei a ser bebê!

Natalia brincou.

-- Você não quer ligar pra casa? Avisar aos seus pais sobre o que houve? – Diana perguntou sentando-se ao lado da namorada.

-- Di, não posso contar a eles. Se eles sabem o que aconteceu, eles vem me buscar na mesma hora e não me deixam mais voltar para cá!

Diana acenou em acordo.

-- Vamos ter que tomar muito cuidado Nat, primeiro, você não vai ficar sozinha naquela lata de sardinha no fim do mundo que você mora.

-- Ah ótimo, vou morar onde então?

-- Por enquanto aqui.

Natalia arregalou os olhos, manifestando sua surpresa.

-- Você pode me dizer que desculpa dará para seus amigos?

-- Pra começar, você vai ligar para eles, dizendo que está no interior, que seus pais vieram te buscar, ganhamos alguns dias para pensar em algo melhor...

-- É esse seu plano? – Natalia perguntou visivelmente decepcionada.

-- Você tem outra ideia?

-- Na verdade tenho: dizer a verdade!

-- Han?

-- Isso mesmo que você ouviu Diana: dizer a verdade. Já está na hora, chega de nos escondermos, não quero mais isso!

-- Ei Nat... Calma...

Diana se sentou ao lado de Natalia e ponderou:

-- Você tem noção do que será se assumir como lésbica? Como minha namorada?

-- Não estou falando de assumir ser lésbica, não sou lésbica... Estou falando de assumir que estamos juntas!

-- Nat... Olha só o que você acabou de falar... Nem você mesma tem convicção sobre sua sexualidade, e já quer assumir uma relação lésbica publicamente? Você não tem noção do que vai enfrentar, do quanto as pessoas são preconceituosas...

-- Diana sua preocupação é com isso mesmo?

-- Porque você está perguntando isso Nat?

-- Porque eu acho que sua preocupação é perder a amizade do Pedro e do Lucas.

-- Claro que também me preocupo com isso! Você se esqueceu da declaração de amor que o Pedro te fez ontem? Eu vi o abalo do meu amigo, testemunhei o empenho do Lucas em punir o Sandro a ponto de pedir a intervenção do meu pai...

-- Pelo que vejo, eles dois não tem restrições em assumir o que sentem por mim...

-- Você não pode estar falando serio Natalia... Não dá pra comparar.

-- Diana o que sei é que estou cansada de mentir, de esconder nosso namoro, por ser grata aos meninos o que eles fizeram e fazem por mim, eu preciso ser honesta com eles, não quero dar esperanças a eles, especialmente por que não quero que nunca mais nenhum homem me toque!

Diana franziu a testa, assustada com a declaração da namorada.

-- Nat eu entendo que você está traumatizada com o que aconteceu, a Dra. Rosana me advertiu que isso poderia acontecer, acho que não é o melhor momento para tomarmos decisões tão importantes...

-- Que se dane os conselhos que essa psicóloga deu! Estou falando de nós! Você está usando desculpas, porque na verdade tem vergonha de assumir namoro com uma caipira como eu não é?

-- Natália!

Diana exortou Natalia segurando o rosto da namorada.

-- Eu não tenho motivos pra ter vergonha de você! Para com isso! Eu me preocupo sim com a repercussão disso na sua vida, e claro com as consequências na amizade com os meninos. Pedro e Lucas são como irmãos para mim, porque os meus irmãos de sangue são preconceituosos, machistas, cópias fiéis do meu pai, que me criou para ser um meio para ascensão social ou algo do tipo, me casando com alguém do interesse dele. Os meninos seguraram minha barra por muito tempo aqui, até minha mãe convencer meu pai a me manter aqui, me protegeram, inclusive quando resolvi assumir minha sexualidade, apesar de estarem apaixonados por mim... Você não pode achar que é fácil magoá-los assim...

Natalia baixou os olhos, Diana ergueu o rosto dela delicadamente, e disse:

-- Não pensa nisso agora, me deixa cuidar de você...

Diana beijou ternamente a face de Natalia, colhendo com seus lábios as lágrimas que escorriam pelo rosto da namorada. Natalia se entregou ao carinho da loirinha, e logo se acomodou no peito de Diana, e as duas permaneceram abraçadas, aninhadas uma na outra.

O cuidado de Diana beirou a comicidade, o que para Natalia se transformou em adicionais de carinho, quando observava a loirinha se esforçar para preparar algo na cozinha.

-- Di... Deixe-me ajudar...

-- Não! Você deveria estar na cama descansando! Volte pra lá! Estou me saindo bem aqui... Seguindo direitinho a receita que peguei no site: picadinho com legumes, minha mãe sempre mandava fazer pra mim quando eu estava doente.

Diana disse jogando os legumes inteiros na panela, se afastando do fogão como se temesse uma reação química devastadora.

-- Di, você deveria descascar as batatas e cenouras antes de jogá-las na panela junto da carne.

-- Mas isso não está escrito aqui!

Diana exclamou exibindo a folha de papel com a receita copiada.

-- Acho que quem publicou isso não imaginou que precisaria colocar o obvio como: acenda o fogo com fósforo...

Natália riu, com a expressão irritada da namorada, que cruzou os braços encostando-se na pia.

-- Que bico mais charmoso!

Natalia brincou se aproximando de Diana, envolvendo sua cintura.

-- Nunca cozinhei nem ovo ta? Pega leve comigo...

Diana disse com voz manhosa.

-- Então eu cuido da mesa, e você cuida da... Cama!

Natalia beijou Diana ardentemente acendendo o desejo da loirinha, que segurou a outra com força arrancando um gemido de dor.

-- Ai...

-- Desculpa Nat... Caraca como sou desastrada... Seus machucados!

-- Calma Di... Está tudo bem... Dá beijinho que passa.

Diana beijou delicadamente as costas de Natalia.

-- Agora acho melhor eu assumir a direção desse fogão, antes que esse picadinho vire ração...

Natalia falou sorrindo, mexendo nas panelas, enquanto Diana fazia careta.

-- Você trate de ficar quietinha só observando!

Diana foi obediente, sentou-se junto ao balcão, e observou praticamente com devoção em cada movimento, expressão que Natalia exibia. Perguntava-se interiormente como conseguiu viver até aquele dia sem vislumbrar a beleza serena e limpa de Natalia. A presença dela inquietava e ao mesmo tempo trazia um sentimento de calmaria em sua alma que ela sequer sabia que desejava.
*********

O final de semana foi reservado para mimos e cuidados de Diana com Natalia, que por diversas vezes acordava de seus pesadelos assustada sendo acolhida pela namorada. A loirinha também se responsabilizou pela tarefa de trocar os curativos de Natália, usando uma delicadeza que comoveu Natalia.

-- Com uma enfermeira dessas, eu vou me machucar sempre! – Natalia brincou.

-- Nem brinca com isso... Meu coração não aguenta outra agonia dessas...

Natalia sorriu sem graça.

-- Prontinho!

Diana finalizou recolhendo o material de curativo da cama.

-- Di, amanhã é segunda-feira, tenho que voltar para a faculdade...

-- Ei! Você só vai voltar para a faculdade quando você se sentir preparada para isso. Quando aquele criminoso estiver preso, enfim... Quando estiver recuperada.

-- Diana na terça nós temos o tal júri simulado da Madimbu, ela não vai dispensar a oportunidade de te condenar!

-- Não se preocupe com isso! Eu e os meninos vamos dar um jeito...

Natalia sorriu, e aproximou a boca dos lábios de Diana, depositando um beijo suave, mas cheio de desejo.

-- Você está doente, não pode beijar sua enfermeira assim... – Diana disse com as bochechas coradas.

-- Assim como? – Natalia respondeu imprimindo sensualidade no tom de voz.

-- Assim... Quente...

Natalia se insinuou ainda mais contra o corpo de Diana, roçando seus lábios pelo pescoço da loirinha, que fechou os olhos sentindo o arrepio tomar de conta da cada poro da sua pele. Natalia acariciou a pele eriçada da namorada, que não se conteve, e retribuiu às investidas posicionando suas mãos por baixo da camiseta de Natalia, se desfazendo da peça.

Contemplou as marcas no corpo da namorada, que parecia se envergonhar dos hematomas espalhados pelo dorso e braços. Diana deslizou o dorso da mão pelos machucados, depositou seus lábios por cada marca beijando ternamente, dando aquele momento um clima de especial de carinho e paixão, como se aquele gesto representasse cura e redenção.

Natalia caiu sobre o corpo de Diana trocando beijos lentos e famintos, dando espaço para movimentos suaves, e o passeio das mãos, arrancando gemidos de prazer de ambas.

-- Eu sou tão sua Di...

-- Também sou sua Nat... Só sua.

O prazer transformado em fluidos e sons ditou o trajeto dos dedos e bocas, que as conduziram ao ápice simultaneamente.

Abraçadas, trocando carícias, em um clima íntimo de cumplicidade, Natalia confessou:

-- Se existisse uma compensação pelo que aconteceu comigo, estar com você assim, dividindo uma casa, como foram esses dias, seria a melhor de todas.

-- Não fala assim minha linda... Pra termos dias assim, não é preciso que você passe por tragédias para receber compensações...

-- O que você quer dizer com isso?

-- Ah... Dividirmos uma casa, ficarmos juntas assim, pode ser um plano.

-- Está falando sério Di?

-- Por que não?

Trocaram um sorriso, um sorriso que parecia preparar o clima para uma declaração contundente do sentimento óbvio que se consolidava entre elas, quando o celular de Diana tocou.

-- Oi Lucas.

-- Di, o filho da mãe se apresentou a polícia. Está detido.

-- Jura? Pelo menos isso!

-- Agora não tenho como avisar a Natalia, ela não deixou telefones da casa dos pais.

-- Ela deve entrar em contato logo Lucas.

-- É, na verdade ela precisa estar o quanto antes na delegacia para depor.

-- Lucas, na terça teria um trabalho da Madimbu, um júri simulado que Natalia apresentaria, será que você poderia falar com a bruxa para adiar? Se eu for, você sabe o que pode acontecer...

-- Pode deixar Diana, amanhã a procuro no departamento, ou melhor, peço ao Pedro, ele é queridinho dela.

-- Valeu.

Depois de compartilhar a novidade, Diana aconselhou Natalia a ligar para Lucas.

-- Nossos dias de paz acabaram? – Natalia perguntou contrariada.

-- Não minha linda. Não acabaram, estamos juntas, quer maior paz que isso?

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

CAPITULO 31 - 1ª FASE LEIS DO DESTINO

CAPÍTULO 31 A fortiori ratione
* Por causa de uma razão mais forte

Natália não sabia ao certo o que lhe doía mais, se o seu corpo, marcado pelo seu ato corajoso de autodefesa, ou as lembranças que insistiam em ecoar, trazendo de maneira vívida e incômoda a voz e as mãos agressivas de Sandro sobre ela. Sentia asco ao relembrar seu hálito, seu cheiro, o tom da sua voz, a repulsa era tanta que seu corpo rejeitava a lembrança, o reflexo era a ânsia de vômito que lhe sufocava.

Sentimentos angustiantes mesclados às dores da alma e do corpo tomavam Natalia quando ela retomou a consciência e tudo que desejou era ter Diana ao seu lado. Por mais que se sentisse sozinha e desprotegida, não foi a segurança de seus pais, de sua família que a jovem desejou, era a presença de sua namorada sua maior necessidade.

Não demorou a concluir que estava em um hospital. Ao abrir os olhos na esperança de encontrar Diana ao seu lado, identificou um rosto desconhecido, mas de expressão complacente:

-- Olá Natália, como se sente?

-- Bem... Bem mal...

-- Pelo menos, seu humor está preservado... Bem, deixe-me apresentar, sou Rosana Barros, psicóloga do hospital, estou aqui para conversar um pouco com você, claro se você quiser.

Natalia não esboçou reação, acenando que não estava disposta a conversar sobre o que lhe acontecera.

-- Há quanto tempo estou aqui? – Perguntou.

-- Há algumas horas. Você passou por alguns exames, felizmente, nada de mais grave aconteceu, apenas alguns ferimentos leves.

-- Onde estão minhas coisas? Preciso do meu celular.

-- Suas coisas estão aqui, mas seu celular sinto muito, na queda, ele se espatifou, deve ter caído da mochila...

-- Mas, eu preciso ligar para alguém... - Natalia se angustiou, imaginando que Diana sequer sabia o que se passara.

-- Calma Natalia, seus amigos já estão sabendo onde você está, certamente avisarão aos seus pais.

-- Amigos? Que amigos?

-- Um rapaz e uma moça estão lá fora, esperando para te ver, logo você poderá recebê-los.

-- Quero vê-los então.

-- Antes disso, você não gostaria de me falar algo? Você passou por uma situação de estresse, um trauma, às vezes ajuda desabafar um pouco...

-- Não quero nunca mais falar nisso... Só quero esquecer!

-- Natalia é normal sentir isso, mas, acredite, você vai precisar falar sobre o que aconteceu, até mesmo com a polícia.

Natalia permaneceu calada, deixando as lágrimas escorrerem pelo seu rosto, revivendo a angústia daquelas lembranças recentes.

-- Vou chamar seus amigos, volto mais tarde, você vai ficar essa noite aqui em observação, se estiver disposta, estarei aqui para te ajudar.
******

Pedro encontrou Diana com os olhos fixos no vazio, diante de uma janela de vidro com vista para os fundos do hospital.

-- Di?

-- Oi. – Diana respondeu ainda distraída.

-- Acabei de falar com o Lucas, seu pai foi rápido, já estão a caminho da casa do Sandro, para o azar dele, e nossa sorte, o cara já é fichado, não vai escapar de pelo menos passar essa noite na prisão.

-- Pelo menos isso... Mas, temos que conseguir mais, ordem de restrição para que ele nem se aproxime da Natalia, expulsão da faculdade, qualquer coisa!

-- Claro, vamos fazer algo a respeito sim.

Pedro estranhava a revolta da amiga, mas conteve seus comentários desconfiados. Rosana, a psicóloga se aproximou informando:

-- Natália já pode receber visitas, mas não demorem, ela precisa descansar.

Diana e Pedro caminharam apressados até o quarto indicado por Rosana. Pedro foi o primeiro a se aproximar de Natalia, segurando sua mão, falando bem próximo ao seu rosto, exasperado.

-- Natalia! Que bom te ver! Nem sei dizer o que senti quando me ligaram daqui do hospital, como está se sentindo?

Natalia estava quase assustada com o comportamento de Pedro, que não largava sua mão, e muito menos se afastava de seu rosto, tomando sua visão, impedindo até mesmo Diana de olhar para Natalia.

-- Estou bem.

Natalia respondeu, tentando manter distância de Pedro, que insistiu:

-- Eu não posso adiar mais, tenho que falar o que guardo em meu coração: Natalia eu te amo! Percebi isso hoje, quando imaginei como seria minha vida se algo ruim te acontecesse. Eu sei que errei com você, mas me perdoa, me dá uma chance, prometo que serei o melhor cara, vou te proteger, vou ser o que você precisa, por que eu estou completamente apaixonado por você!


Afobado, Pedro segurou o rosto de Natalia, forçando um beijo, despertando uma reação de pânico na garota, que não conseguiu oferecer resistência, nem tampouco retribuiu o beijo. O que sentiu por Pedro, foi nojo, repulsa, associando a ansiedade do rapaz com a obsessão de Sandro, por mais que racionalmente soubesse que Pedro nunca faria o que Sandro lhe fizera.

Entretanto, Diana não reagiu da mesma forma. Não ficou imóvel, pelo contrário, moveu-se dali rapidamente, deixou o quarto depois da declaração de amor de Pedro e do beijo entre o amigo e a namorada dela, tomada pelo sentimento controverso, surreal, de ciúme misturado confusão que se instalara entre o medo de perder a amizade de Pedro e o medo de perder sua namorada para esse mesmo amigo. Perderia de uma forma ou de outra, perderia por deixar Pedro acreditar que tinha chances com Natalia, ou perderia se assumisse seu namoro com ela. O fato é que ela já estava perdendo. Perdendo seu direito de estar ao lado de Natalia quando ela tanto precisava, perdendo a oportunidade de declarar o quanto ela era importante, do quanto a amava. Tal oportunidade, Pedro aproveitou ignorando a repulsa que sua amada sentia agora dele.

O barulho da porta interrompeu o momento que para Pedro seria seu momento mais romântico até então.

-- Não se preocupe, era Diana, ela entrou comigo, mas deve ter saído ao ouvir o que eu te disse.

-- Diana? – Natalia perguntou com os olhos arregalados.

-- É, mas, não se preocupe, ela só está um pouco enciumada, mas não temos mais nada, te juro!

-- Diana estava aqui?

-- Estranho não é? Mas ela foi super legal, fez algo que não esperava dela. Pediu ao pai para intervir, e a essa altura o filho da mãe que te atacou já deve estar preso. Acho que ela vai parar de te encher, você certamente a conquistou, por que merecer que a Diana peça algo ao pai, só sendo pra alguém muito importante para ela...

Natalia ficou pensativa, e quando Pedro tentou se aproximar de novo, dessa vez a moça o impediu, afastando-o.

-- Pedro, muito obrigada por estar aqui, você é um bom amigo. Mas, nunca mais faça isso, não consigo nem imaginar um homem me tomando a força como você acabou de fazer, e já sinto náuseas...

Foi então que Pedro percebeu que sua afobação foi completamente inapropriada, mesmo que tenha sido carregada de carinho.

-- Natalia desculpa não foi minha intenção...

Outra vez a moça pediu distância com um gesto, visivelmente tensa.

-- Pedro, por favor, eu gostaria de ficar sozinha.

-- Mas, Natália... Eu disse que te amo...

-- Não insista, por favor. É um lisonjeiro para qualquer mulher ter um homem como você apaixonado, mas, não posso retribuir esse sentimento, porque eu estou...

Quando Natalia se preparava para revelar seu namoro a Pedro, foi interrompida por Lucas que entrou no quarto igualmente ansioso.

-- Natalia minha linda! Que bom ver você bem!

-- Oi Lucas.

-- Trago boas notícias...

-- Prenderam o Sandro? – Pedro perguntou.

-- Ele está oficialmente foragido. Pelo que conheço desses filhinhos de papai, deve estar montando uma defesa, certamente se apresentará com advogado e tudo mais, mas, ele não vai se livrar, te garanto Natalia!

O tema da conversa atormentou Natalia. Agitada, as lágrimas deram lugar a uma crise de ansiedade e pânico que só se acalmou quando foi administrada uma medicação calmante. Orientados pela psicóloga, Lucas e Pedro foram embora, uma vez que Natalia dormiria o resto da noite.
***********

Na capela do hospital, Diana se recolheu buscando uma decisão sábia sobre como proceder com seus amigos e sua namorada. Não rezava, não era adepta a rituais, nem ao menos sabia se acreditava em uma figura sobrenatural, divina. Sentou-se ali com o único intuito de se refugiar e chorar sem que precisasse dar explicações.

Notou alguém se sentar ao seu lado, e reconheceu a psicóloga que lhe avisara sobre a liberação para visitar Natalia. Enxugou as lágrimas, tímida deu um sorriso discreto para Rosana que cochichou:

-- Não precisa ficar com vergonha, eu também venho aqui para chorar.

Diana sorriu.

-- Não quis entrar para visitar sua amiga?

-- Entrei, mas não demorei como a senhora recomendou.

-- Natalia vai precisar muito dos amigos para enfrentar esse trauma...

-- Eu sei...

-- Vai precisar de carinho, segurança, paciência, precisa se sentir à vontade para chorar, para desabafar.

-- Ela terá isso dos amigos, mas a senhora também vai ajudar não é?

-- Claro, a ajuda profissional é muito importante. Mas, não estarei sempre ao lado dela, até agora ela não falou uma palavra sobre o que aconteceu, vai levar um tempo ainda...

-- Entendo. Ajudarei como puder doutora...?

-- Rosana e você seria...? – a psicóloga completou se apresentando.

-- Diana, mas sem o doutora.

Diana estendeu a mão sorrindo.

-- Muito prazer Diana. É bom saber que Natalia pode contar com você.

Rosana se levantou depois de se despedir formalmente, mas, antes de deixar a capela disse:

-- Ah! Diana! Seus amigos já foram, se você quiser passar a noite com sua amiga acompanhando-a... Ela está sozinha na enfermaria por recomendação médica, mas, ela precisa de acompanhante.

Rosana sorriu cúmplice para Diana, como se adivinhasse o que se passava.

Se a psicóloga foi um sinal dos céus para mostrar um caminho para Diana, isso a loirinha não tinha certeza, mas, lhe deu o sinal verde que precisava para ficar ao lado de sua namorada, como ela desejava.

Entrou no quarto e encontrou Natalia dormindo, com sua fragilidade exposta nas marcas, curativos espalhados. Em um relance, Diana viu o beijo entre ela e Pedro, e a declaração dele ecoava por sua mente. Entretanto, o que foi mais forte diante de Natalia, foi o sentimento sufocante de perda que Diana experimentara. Não queria, não podia perder Natalia, diante da namorada, enxergou tudo tão claramente: estava apaixonada, mais que isso, sentia por ela o que sempre duvidou que existisse com a intensidade, dramaticidade e magia que escritores, poetas e músicos descreviam. Apavorou-se por ter a idéia da dimensão do que sentia por Natalia e mais ainda, imaginando sua reação se acontecesse algo pior a ela.

Puxou uma cadeira para perto do leito, segurou a mão machucada de Natália, e chorou copiosamente, permitiu-se desabar finalmente, por um emaranhado de sentimentos confusos: medo, alívio, paixão, temor, revolta, carinho, angústia. Seu pranto persistiu até suas energias se esgotarem, dormiu ali mesmo, sentada, com seu rosto colado com a mão de Natalia.
**********

Natalia acordou se certificando que continuava no hospital olhou para seu braço direito, com um acesso venoso instalado, estranhou sua mão esquerda presa e ao olhar se deparou com Diana com metade do corpo repousando sobre o leito, sobre sua mão.

Mesmo ressentida por Diana supostamente tê-la deixado com Pedro na noite anterior, Natalia abriu um sorriso sincero, tenro. Mexeu sua mão despertando o leve sono da namorada.

-- Nat? Faz tempo que você acordou?

-- Não, acabei de acordar...

Diana fez uma careta de dor ao se levantar.

-- Como você está se sentindo? – Perguntou a Natalia.

-- Acho que com menos dor do que você...

Diana ajeitava os cabelos disfarçando sua desconfiança, temendo a mágoa de Natalia.

-- Vou procurar a enfermeira, seu soro acabou...

-- Diana! Você está fugindo de mim?

-- Por quê? Deveria?

-- Claro que não... Já fugiu ontem não é? Agora de novo...

-- Não fugi Nat...

-- Então vem cá, senta perto de mim...

Natália expôs sua vulnerabilidade, com lágrimas nos olhos chamou Diana como se procurasse proteção do carinho de sua namorada. Diana não pestanejou, lançou-se sobre a cama, acolhendo a namorada em um abraço apertado, consolando-a, transmitindo todo carinho e segurança que seu sentimento por ela era capaz de proporcionar.

-- Eu vou cuidar de você, não vou sair do seu lado, te prometo... Não serei covarde.

Diana repetia enquanto beijava a cabeça de Natalia recostada no seu peito. A promessa não era só para Natalia, era principalmente a verbalização da decisão que Diana tomara, no momento em que encarou os olhos marejados da namorada a chamando para sentar perto dela.

-- Foi um pesadelo Di...

-- Eu imagino minha linda... Mas, você não está sozinha, estou com você, ele não te fará mal!

O momento de carinho e conforto entre o casal foi interrompido por Rosana que delicadamente disse:

-- Acho que o Dr. Miranda não vai gostar muito de ver duas pessoas no mesmo leito, diria que é um absurdo a Comissão de Controle de Infecção Hospitalar não fiscalizar os quartos logo cedo...

Diana se levantou tímida.

-- Desculpe-me doutora Rosana.

-- Vocês se conhecem? – Natalia perguntou intrigada.

-- Somos colegas de fé por assim dizer não é Diana?

Diana acenou em acordo, enquanto Natalia arqueava uma das sombracelhas insatisfeita com a resposta misteriosa.

-- Resolvi passar cedo aqui, por que sabia que o Dr. Miranda lhe daria alta ao sair do plantão, então, vim te entregar meu cartão, atendo aqui no ambulatório, se você quiser conversar, liga pra marcar horário, você pode precisar uma hora dessas.

Enquanto Rosana orientava Natalia, o médico que a atendeu entrou no quarto comunicando sua alta. Ouviram as recomendações do médico atentamente, Diana se comprometeu a cuidar de Natalia e convencê-la a ingressar na terapia com Rosana. Antes de se despedir, a psicóloga chamou Diana em particular e alertou:

-- Os primeiros dias serão complicados Diana, possivelmente Natalia terá pesadelos, pode ter dificuldades em contar o que aconteceu, vai evitar contato com outras pessoas... O médico prescreveu um ansiolítico, mas, o mais importante é que Natalia se sinta segura, não se sinta pressionada, se puder evitar encontros com esse agressor, na delegacia, por exemplo, é fundamental.

-- Pode deixar doutora, vou me assegurar disso. Obrigada por tudo.

-- Fique você também com meu cartão, caso você precise de outras orientações.

-- Obrigada.

Natalia observava atenta a intimidade das duas, visivelmente incomodada.

-- Vamos pra casa? – Diana ajudou Natalia a se levantar.

-- Vamos! Antes que você paquere as enfermeiras desse turno.

-- Não acredito que você está com esse bico por puro ciúme Nat!

-- De onde veio essa amizade de infância com essa psicóloga?

-- Ela me encontrou na capela do hospital e me trouxe pra você sua boba!

Natalia sorriu sem graça.

-- Agora vamos, antes que seus admiradores e heróis cheguem.