domingo, 10 de dezembro de 2017

CAPÍTULO 18: LIÇÃO 14 – CADA CACO SEU, É VALIOSO

Quantas vezes um tecido é capaz de se regenerar? Quantas vezes uma célula pode se replicar? Em quantos pedaços uma peça pode se quebrar? Em quantas frações pode se dimensionar sucessos ou fracassos? Algumas respostas a essas perguntas eu tenho, na verdade, algumas eu até enxergo pela lente do microscópio agora, e até projeto na tela para meus alunos o passo a passo, agora, com um novo software, fazemos o vídeo em 3D a replicação da bactéria para nossos primeiros experimentos com a nova droga.

Dois meses se passaram desde o congresso, e eu praticamente não fiz nada da minha vida, que não fosse fugir de Marcela, vestindo uma capa de professora metódica extremista, viciada em prazos e resultados. Graças a isso, e ao fomento das agências financiadoras de pesquisa que consegui no congresso, tínhamos quatro publicações de alto impacto, o que já me garantia no programa de pós-graduação por mais um ano sem fazer mais nada, o que logicamente eu não desejava. Meus dois orientandos do mestrado estavam com suas bolsas garantidas, assim como Marcela, Jessica e Artur, por agências diferentes.

A fuga de Marcela foi algo que me sugou físico e psicologicamente. Voltei aos meus colegas “faixa preta” como diria a Cris, bebia compulsivamente solitária nos finais de semana, dormia pouco, ministrava aulas medíocres, e se não fosse meus colegas docentes do grupo, o rendimento do GRUFARMA seria um fracasso. Manter minha performance em uma crise emocional na qual eu precisava esconder de todos, inclusive de Beatriz, exigiu de mim, mais do que profissionalismo, requereu sacrifício, sacrifiquei minha saúde mental.

Como eu sobrevivi a esses dois meses sem meus fiéis escudeiros? Ou melhor, como eu escapei dos meus cães-guia Cris, Ed e Clarisse? Primeiro, contei com o azar ou com a sorte do Ed finalmente ter conseguido fazer seu curso maquiagem na Make Up For Ever Academy em Nova Iorque, e emendou com um estágio em Los Angeles, a Cris estava muito envolvida com projetos de condomínios Alphaville na zona metropolitana, nos vimos poucas vezes para almoçarmos, e na maioria das vezes, falamos de trabalho e planejamos férias, concordando que estávamos cansadas, talvez o cansaço tenha sido suficiente para não permitir que minha amiga visse o quão obscura minha alma estava. Quanto a Clarisse, esta, estava namorando (a mesma garota do final de semana da praia), e ela era do tipo que quando namorava, o mundo se transportava para a vida da outra pessoa, por isso, quando nos víamos ela só falava da felicidade dela, e dos feitos da namorada dela, e eu me contentava em ouvi-la e falar do meu trabalho.

Quanto a mim, estava ali, não estava inteira, estava quebrada, contudo, sobrevivendo. Parece que a natureza queria me ensinar algo. De toda ciência da qual eu tinha propriedade e defendia, eu precisava me empoderar de alguma fundamentação darwiniana ou evolucionista para não submergir à vontade de voltar ao primeiro capítulo dos lenços e ansiolíticos a cabeceira da cama, ao menos dos lenços, eu tinha me livrado. Não que eu não sentisse vontade de chorar mais, pelo contrário, eu queria fazer isso todo tempo, mas, não tinha mais energia, chorar exige disposição e desprendimento, que eu não me permiti.

Mas, fugas tem prazo para findar-se. Uma hora, o sangue falta às pernas, e não conseguimos mais fugir, ou o “predador” desconhecido nos pega desprevenidos e sem armas. Foi o que Marcela fez naquela noite no laboratório. Nesse tempo, minha rotina era ser a última a deixar o laboratório, e ela percebeu isso, e se aproveitou para me abordar, depois que os colegas do grupo deixaram o lugar, entrou no meu gabinete sem bater, sendo direta:

-- Por quanto tempo mais, vai me tratar assim?

O efeito da presença dela, pela primeira vez, depois desses meses, após nosso momento mais íntimo, foi imediato. Tudo que estava dormente e talvez mergulhado em uma amarga latência veio à tona, os olhos marejados dela, me desarmaram. Ela estava de cabelo preso, e nervosa, mexia os dedos impacientemente e continuou a falar, antes que eu conseguisse responder à primeira pergunta:

-- Agora você me odeia? Ou é alguma exigência da sua namorada? Ficar longe das alunas?

-- Marcela, eu não estou entendendo. – Tentei ganhar tempo para disfarçar meu pânico.

-- Não está entendendo? Sério? É isso? Vai simplesmente fingir que nada aconteceu? - Marcela soltou um riso irônico. – Tá bom, então.

-- O que eu não estou entendendo é você vir me pedir explicações agora, dois meses depois do que aconteceu naquele quarto de hotel. Não estou entendendo por que você vem me falar de exigências de minha namorada, quando você só tem certeza de que quem tem namorada é você e ela sim deve fazer exigências, não é mesmo?

-- E você já tem todas as respostas, por que é a Doutora Luiza, e meu lado da história não importa? – Marcela já não tinha a segurança na fala que demonstrava nas primeiras perguntas.

-- Deveria importar, Marcela? Você entrou aqui me fazendo uma sequência de perguntas, fez suas suposições, não me deu uma explicação para seu silêncio naquela noite, no dia seguinte, e em todo esse tempo, e eu estava aqui, todos os dias, era eu que tinha que te procurar?

-- Acha que não tentei? Quantas vezes bati nessa porta e você me disse “agora não posso, Marcela”. E todas as vezes que me chamava para conversar era sempre em público, sempre para assuntos da pesquisa, tem estado obcecada com prazos, com produção de artigos, nem parece aquela professora que me encantei, aliás, que todos se encantaram nas primeiras semanas. Você ergueu um muro, e eu sou um nada, um nada perto desse muro, perto de você, perto daquela Celina, e de sei lá quantas mulheres estão na sua vida...

Marcela desabafou e desabou também, chorou, e eu me desfiz da armadura. Levantei-me e pedi:

-- Acalme-se. Senta um pouco, Marcela. Deixa eu te pegar um pouco de água.

Marcela se sentou, baixou a cabeça, e tirou os óculos, para limpar as lágrimas. Trouxe-lhe água, e ela só balançou a cabeça, recusando a água.

-- Eu precisei me afastar de você, Marcela. Precisava manter o relacionamento só no campo profissional, no mais tradicional possível. Sabe que ultrapassamos um limite perigoso.

-- Eu não merecia ser comunicada dessa decisão?

-- Marcela... Sobre o que estamos discutindo, afinal?

-- Sobre você ter se transformado em outra pessoa, desde que chegamos daquele congresso! Estou enlouquecendo, e você me ignorando, depois de...

-- Depois de? Você não consegue nem falar em voz alta o que aconteceu naquele quarto. Acha que eu precisava te comunicar alguma decisão? Você tem sua vida, e eu sou o que nela? Sua professora, orientadora na pesquisa, só, não é? Sou mais alguma coisa?

Era a deixa que eu precisava para cavar alguma esperança, pela primeira vez, eu abria espaço para Marcela me dizer o que sentia por mim.

-- Não é justo me perguntar isso...

Marcela se levantou com os olhos inchados do seu choro, caminhando em direção à porta. Fui mais rápida e impedi sua saída, ficando diante da porta, insistindo:

-- Sou mais do que sua professora?

-- Você sabe que sim! Eu penso em você todo tempo, eu quero ser a melhor aluna pra que você olhe pra mim! Estou completamente confusa desde o congresso, por que...

-- Por que? Fala, Marcela!

Eu já estava ofegante, coração galopando, pernas bambas, o muro estava à beira de se romper por completo.

-- Eu te desejo! Eu te quero!

Marcela não teve tempo de pensar no que acabara de confessar. Avancei em seu corpo, puxei-a pela cintura com uma mão e com a outra mão segurei sua nuca para conduzir um beijo volupioso, intenso, apaixonado. Ela correspondeu, no começo, assustada, mas aos poucos se rendeu e me envolveu com seus braços também, na minha cintura, passando a mão pelos meus cabelos, e sem descolarmos nossos corpos, já estávamos deitadas no sofá de dois lugares do meu gabinete. Meu corpo sobre o dela, com minha boca passeando pelo seu pescoço, mordiscando orelha, e eu, completamente excitada com os gemidos que Marcela deixava escapar.

Ela puxava meus cabelos, voltando minha boca para a sua, e meus quadris se remexiam sobre os seus, sentia meu sexo se encher do prazer de finalmente ter nos meus braços a mulher que sonhava desde que vi pela primeira vez. Os beijos ficaram mais intenso, as línguas quentes se misturaram, ela chupava com sede meus lábios, sua pele eriçava quando minha boca lambia seu pescoço atrás da orelha, não faltava muito para gozarmos sem precisar tirar um peça de roupa, mas, minhas mãos já tentavam levantar a camiseta de Marcela, e ela não ofereceu resistência.

Estava acontecendo... Mesmos aos cacos, os valiosos cacos, se refaziam para amar de novo.