quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

LEIS DO DESTINO: 1ª FASE - capítulos 42 e 43 (Final da primeira fase)

CAPÍTULO 42: Improbus litigator
No Direito: Litigante desonesto. O que entra em demanda sem direito, por ambição, malícia ou emulação. 


                O semestre apertado chegou ao fim. Era julho de 2004, período de férias escolares. Com muito custo, Natalia deixou a capital para visitar os pais no interior, já que tinha vinte dias de recesso antes no novo semestre. Prometeu retornar em dez dias para cumprir seus planos com Diana e viajarem para o litoral nordestino, onde a loirinha faria um trabalho para um catálogo de moda verão.

                Ano de eleições há muito tempo eram tempos de tortura para Diana. O poder político de seu pai em Mato Grosso do Sul era sua principal lembrança da infância, quando ela nasceu seu pai assumiu seu primeiro mandato nacional. O imperador do gado não se contentou em ser apenas o homem mais rico do estado, usou do seu suposto amor pelo Pantanal para conquistar destaque na bancada ruralista, os seus feitos e métodos escusos para provar e estender seu poder no seu curral eleitoral e pelos diversos setores do governo se propagavam pelos corredores do congresso e do senado, além de ser eventualmente abafados quando um jornalista mais sério tentava divulgar.

                Naquele ano, o senador Acrísio Toledo Campos tinha outro plano. Lançara-se candidato a prefeito de Campo Grande, ambicionando em dois anos concorrer ao governo do Estado. O filho mais velho tentava seu terceiro mandato para vereador, assim, a família Toledo Campos se concentrava mais uma vez na maratona das urnas. Diana nunca se envolvia, mesmo com os protestos veementes do pai e as constantes ameaças de cortar benefícios caso a filha caçula não ajudasse nas campanhas. O máximo que o pai conseguia da loirinha era sua promessa de não protagonizar escândalos, não dar margem para macular a honra da família exigindo comportamento exemplar longe dos holofotes da imprensa.

                No entanto, aquele ano prometia ser diferente. Diana não era mais uma estudante anônima, seu nome no meio fashion já a tirara dessa condição, especialmente pela presença frequente da fotógrafa em festas badaladas de lançamentos de revistas e desfiles. Por esse motivo, as agências de publicidade especializadas em marketing político encontraram na vida da filha caçula do senador Acrisio um prato cheio para incitar fofocas, especulações, minando a imagem de família tradicional do maior nome do Partido Social Cristão da Família.

                A postura ultraconservadora do partido do senador Acrisio, o fazia um dos maiores defensores dos “valores morais cristãos”, tais valores eram vendidos como aqueles que protegem a família de males como: as drogas, a violência, a prostituição e o homossexualismo. Assim, expor a filha do senador como uma lésbica assumida era um ponto importante para atacar sua campanha.

                Durante os dias que Natalia estava com os pais, Diana fora assediada por diversos meios por repórteres, fotógrafos, indagando especialmente fatos sobre sua sexualidade e envolvimento com top models e atrizes. Não precisou grande esforço por parte desses profissionais para encontrar alguma testemunha, ou ainda, alguma modelo atriz querendo mídia gratuita para surgir como uma ex-namorada de Diana.

                Com isso, Diana viu sua vida ser transformada em um inferno. De um lado estava a conhecida impressa marrom distorcendo, reinventando, mentindo fatos e eventos, manipulando frases e imagens, pintando Diana como uma lésbica predadora. Do outro lado, estava a pressão massacrante de seu pai e seus irmãos, especialmente Douglas, o mais velho, também político, cobrando satisfações e seu prometido comportamento exemplar.

-- Você vai vir para Campo Grande hoje mesmo Diana! – Douglas berrava ao telefone.

-- Ah jura? O que te faz acreditar que você tem algum poder sobre mim? Maninho eu não sou um dos seus assessores corruptos, não te devo nada, não tenho nada a fazer em Campo Grande, estou com uma agenda lotada de compromissos profissionais.

-- Compromissos profissionais? Você chama de profissão viver em festas beijando mulher, soltando flashes no seu brinquedinho caro?

-- Bela descrição você absorveu sobre o que tem sido minha carreira como fotógrafa heim?

-- Diana pouco me interessa com quem você transa! Se você quer viver nessa sujeira, nessa safadeza, por mim não ligo, desde que você não leve a minha carreira e do papai pra lama junto com você!

-- Não que isso te interesse ou faça diferença para você, mas o que estão divulgando é mentira! Não sou essa promíscua que estão pintando! Sim, eu gosto de mulher, mas, atualmente só de uma, com a qual estou namorando há meses.

-- Você tem razão, isso não me interessa nem faz a menor diferença para mim. Se você não quiser que o papai dê o jeito dele nessa situação, trate de vir para Campo Grande hoje mesmo!

                Diana não levou a sério as ameaças do irmão. O que realmente a incomodava era Natalia se machucar com as fofocas ardilosas e falsas que se espalhavam pela mídia a respeito dela.


                A preocupação da loirinha tinha fundamento, tão logo Natalia tomou conhecimento das notícias vinculadas, tratou de cobrar explicações da namorada.

-- Você me dizer o que está acontecendo Diana?

-- Oi meu amor, saudades também...

-- Diana não me enrola!

-- Nat isso se chama política. Estão querendo atacar meu pai através de mim. Tudo isso é fruto da sujeira que se faz na vida das pessoas pra respingar nos outros...

-- Quer dizer que você nunca ficou com aquela modelo esquelética, a Alexia?

-- Com ela eu fiquei... Mas, estávamos separadas amor...

-- E com aquela adolescente enjoada da novela, a Monique não sei de que?

-- É... Fiquei, mas ela é maior de idade!

-- Porra Diana! Precisava passar o rodo? Ficar se esfregando, passando a mão em todas que chegassem perto?

                Natalia desabafou esmurrando sua cama.

-- Meu amor, não foi nada sério com nenhuma. Estão exagerando, as fotos foram manipuladas, eu não estive em metade dos lugares que alegam que estive, posso provar isso.

-- Sabe o que pior nisso tudo? Eu vim para cá com o intuito de dizer a verdade para meus pais, que estamos morando juntas, que nos amamos, mas agora levo meu tempo defendendo você, tentando fazê-los acreditar que você não é má influência para mim.

-- Meu amor desculpe-me... Eu não poderia supor que isso fosse acontecer. Meu irmão está quase usando meu fígado como patê no café da manhã, tenho repórteres na minha cola o dia todo, não sabe o inferno que está sendo, e ainda mais com saudades de você.

-- Não tente me sensibilizar... – Natalia disse se desarmando.

-- Ao menos você estando aí está protegida desses abutres. Mas me sinto tão sozinha aqui enfrentando tudo isso...

-- Você não está sozinha, logo estarei ao seu lado para enfrentarmos isso.

                A volta de Natalia para São Paulo não representou calmaria para o conturbado momento de Diana. A tal viagem para o nordeste foi cancelada, a agência não viu com bons olhos o escândalo que a fotógrafa estava envolvida. Os últimos dias de férias do casal foram praticamente em prisão domiciliar.

                Em uma das raras vezes que Diana saiu preferiu fazê-lo sozinha para resolver assuntos profissionais, para evitar expor Natalia, e exatamente nessa ocasião, recebeu a desagradável visita do seu sogro: o senador Acrisio Toledo Campos.

-- Não vai me convidar para entrar?

                O homem alto, com traços fortes, perguntou altivo. Natalia nervosa e pálida engoliu seco e apenas abriu passagem para o sogro adentrar.

-- A Diana não está.

                Natalia falou com a voz trêmula enquanto o senador observava o apartamento.

-- Eu sei. Por isso estou aqui, desejava falar a sós com você.

-- Co-co-comigo?

-- Não vejo outra pessoa nessa sala.

                A característica grosseira da personalidade de Acrisio se apresentava a Natalia.

-- Você é mais bonita do que eu esperava.  Imagino que você é uma moça inteligente, afinal é uma das melhores alunas do seu curso atualmente, e veja só, está investindo em um partidão que é a minha filha!

                Natalia permaneceu muda, ainda atordoada com aquela visita, e apavorada com os objetivos desta.

-- O que o senhor quer comigo?

-- Muito simples: quero que suma da vida de minha filha.

-- O quê? – Natalia exclamou arregalando os olhos.

-- Isso mesmo que ouviu. Suma da vida da minha filha, por sua própria vontade, antes que eu providencie um estímulo para que isso aconteça.

-- O senhor está me ameaçando?

-- Não sou homem de ameaças, sou homem de ação. Estou apenas te concedendo uma chance de não se comprometer.

                O tom ditatorial de Acrisio e suas ameaças implícitas irritaram Natalia, movida por sua personalidade forte e seu sentimento por Diana a menina cresceu esquecendo a intimidação que aquela visita representava e respondeu:

-- Não me comprometer? Senador, eu quero lhe informar que é tarde para o senhor me falar isso. Já estou comprometida. Comprometida com sua filha, com o que sinto por ela, com nossos planos de vida juntas, e nem mesmo o senhor com todo poder que esbanja vai me dissuadir a sumir da vida dela.

-- Você não sabe brincar com fogo mocinha, acha que pode mesmo me enfrentar?

-- Não estou brincando senador. Nem muito menos é meu desejo enfrentar o senhor. A única coisa que quero é viver em paz com sua filha.

-- Você tem noção do que mais essa moda da Diana está me custando? Está me arrancando uma prefeitura, meu prestígio nacional, minha posição no partido!

-- Moda?

-- É, é mais uma moda dela pra me atacar, pra chamar minha atenção, mais uma rebeldia dela. Desde criança ela faz isso, vivia entrando em seitas estranhas, se vestia como uma maluca só pra manter a pose de menina revoltada, inventou de ser fotógrafa, depois DJ, depois inventou essa moda de ser... De gostar de mulher!

-- O senhor se julga mesmo o centro do universo heim? E conhece muito mal sua filha.

-- Não admito esse tom comigo!

-- Com todo o respeito senhor, eu é que não admito que o senhor venha aqui me dizer o que eu tenho ou não que fazer. Sendo assim, se era isso que o senhor tinha a me dizer, faça o favor de se retirar.

-- Como ousa? Esse apartamento é meu! – O homem berrou.

                Natalia disfarçou o constrangimento por ter ousado expulsar o senador de uma propriedade sua, e respondeu firme:

-- Sendo assim, saio eu. Boa tarde, senador Acrisio.

-- Não me deixe falando sozinho! Você se arrependerá desse desplante!

                Segurando a porta Natalia retrucou:

-- Mais uma coisa senador: sua filha é mesmo um partidão, concordo com o senhor. É uma mulher linda, generosa, determinada, divertida, talentosa, sensível, apaixonante. A melhor companhia para uma vida toda. Tudo que ela não herdou do senhor, e essa a única herança dela que me interessa.

                Natalia bateu a porta do apartamento, e só no elevador a resposta orgânica da descarga de adrenalina no seu corpo se manifestou em todas as suas faces. A tensão era tamanha a ponto de sentir todos os seus músculos doerem, e depois rememorando aquele diálogo calculou o peso que a ira do senador poderia ter na sua vida e na vida de Diana. Meia hora depois de caminhar pelo bairro, Natalia recebeu com alivio a chamada da namorada no celular.

-- Amor onde você está?

-- Aqui perto do prédio.

-- E essa vozinha? O que houve?

-- Uma visita inesperada que recebi hoje à tarde?

-- Sua menstruação veio antes do dia?

                Natalia deixou escapar uma risada.

-- Quem me dera meu amor que nossos problemas fossem meu ciclo menstrual...

-- Está me preocupando Nat... O que foi?

-- Seu pai esteve lá em casa há pouco tempo, aliás, ainda deve estar lá.

-- Meu pai?! Será que ele está escondido? Estou em casa e não tem vestígios dele aqui...

--Não duvido.

                Natalia brincou.

-- Venha para casa amor. Quero saber o que aconteceu.

                Natalia narrou o desagradável diálogo que teve com seu sogro. Finalizando com uma declaração tímida:

-- E por fim, expulsei seu pai do apartamento que é dele.

-- Dele?

-- Foi o que ele falou, aliás, gritou enfurecido.

-- Amor esse apartamento é meu. Minha mãe passou para meu nome há dois anos, mas, acho que ela se esqueceu de comunicar isso a ele. – Diana brincou.

-- O que você acha que ele pode fazer contra mim? Contra nós?

-- Tenho até medo de imaginar o que meu pai é capaz de fazer em nome do poder dele...

-- Ai meu Deus!

                Natalia levou as mãos à cabeça, despertando a instinto protetor de Diana, que puxou a cabeça da namorada para seu colo e tentou tranquilizá-la:

-- Sou a filha dele Nat. Por mais cruel e inescrupuloso que ele seja não vai fazer nada tão drástico assim. Nem mesmo contra você, ao contrário, quando eu pedi, ele interviu para lhe proteger não se lembra?

-- Hurrum.

-- O máximo que ele pode fazer é cortar minha mesada, e se isso acontecer podemos nos manter. Tudo que estou ganhando com os trabalhos estou guardando, temos uma boa reserva.

-- Mas amor, esse dinheiro é para seus cursos de fotografia no exterior...

-- Meu amor acha mesmo que torro tudo que meus pais me mandam? Além do mais, tenho o carro, vale uma fortuna, posso vendê-lo para pagar nossos custos em Nova York.

-- Nossos?

-- Claro! Acha que vou te deixar meses aqui sozinha? Acha que vou sobreviver? Pior, acha que sou burra de deixar você solta pra esse monte de marmanjo e sapa tentarem te roubar de mim? Trate de tirar logo seu passaporte!

-- Meu amor...

                Natalia segurou as lágrimas emocionadas.

-- Além do mais, você tem a ajuda dos seus pais, tem a bolsa de iniciação científica, não vai nos faltar nada, confie em mim.


                A declaração segura de Diana acalmou Natalia, no entanto, a loirinha escondeu a aflição que lhe tomava, formulando mil hipóteses sobre como seu pai poderia punir Natalia por enfrentá-lo e principalmente pelo que sua relação com ela se configurava na campanha eleitoral do pai. Ligou para a mãe quando a namorada adormeceu, e as duas compartilharam a preocupação pela reação do senador nos próximos dias.

                A primeira atitude de Acrisio foi solicitar de seus assessores uma investigação minuciosa acerca de Natalia e sua família. Ordenou uma devassa até mesmo na vida financeira do senhor Álvaro, conseguiu quebra de sigilo telefônico e bancário, não havia limite para seu objetivo de ter armas suficientes para separar definitivamente a menina do interior da sua filha caçula.

                A proximidade das eleições acentuou a briga acirrada entre o principal concorrente de Acrisio à prefeitura de Campo Grande. Para o desconforto de Diana, os fatos divulgados especialmente sobre sua sexualidade foram cruciais para a perda de muitos pontos do pai nas pesquisas de intenção de voto. A continuidade da relação com Natalia acabou por envolvê-la também nos escândalos, chegando aos ouvidos da sua família no interior.

                Natalia não negou os fatos quando o senhor Álvaro a interpelou no telefone. A decepção dos seus pais feriu profundamente a moça, que ouviu deles palavras ressentidas em meio a lágrimas. Diana lhe consolou, garantindo que um dia seus pais aceitariam que aquela reação era natural, eles precisavam de tempo para absorver a novidade.

                A aparente passividade de Acrisio diante do fato que lhe custava aquela eleição acalmou Natalia que inocente acreditava que o sogro nada faria contra a filha e sua namorada, mas Diana conhecendo o pai estava apreensiva, aguardando que a qualquer momento o pai ressurgisse com sua sordidez, lançando mão de algum de seus métodos escusos para promover uma reviravolta no quadro daquela campanha.

                Como a loirinha previa, a 15 dias das eleições, o senador surpreende a filha chegando ao escritório de prática jurídica da universidade, como sempre, cercado de assessores e seguranças.

-- Olá minha querida.

                Ao reconhecer a voz, Diana nem se deu ao trabalho de volver seu corpo para confirmar de quem se tratava apenas se preparou para mais um embate com o pai. Sabia o que aquela visita representava.

-- Olá papai.

-- Não mereço nem um abraço?


                Diana caminhou sem empolgação e abraçou o pai.

-- Tem algum lugar aqui para conversamos a sós?

                O preceptor de Diana embasbacado com a visita ilustre se precipitou:

-- Claro senhor senador, pode usar meu escritório.

                Acostumado a exercer a “simpatia política”, Acrisio agradeceu a gentileza do professor e seguiu com Diana para o lugar indicado.

-- Então papai, apesar de esperar por algum tempo essa visita, estou curiosa pela demora dela, o que houve?

-- Primeiro de tudo: senti saudades. Nem mesmo foi nos visitar nas férias...

-- Estava trabalhando, além do mais, a mamãe veio ficar comigo uns dias, ir para Campo Grande em plena campanha política do senhor não faz de lá o melhor programa para as férias.

-- Melhor programa é acabar com essa campanha quebrando o nosso trato de você ficar longe de escândalos e dos holofotes da imprensa não é?

                Acrisio mudou o tom de voz deixando evidente sua irritação.

-- Pai isso não foi intencional. Metade do foi divulgado é exagero, a outra metade não passa de mentira, boatos plantados, testemunhas de má índole...

-- Diana você sabe muito bem que deu munição para esses ataques, pouco importa nesse ramo o teor de verdade, e sim o estrago que essas noticias fazem e o estardalhaço que você provocou pode me custar muito caro!

-- Ok pai então o que o senhor espera que eu faça para digamos, consertar isso? Acha que pode mudar o que sou? Acha que pode simplesmente esconder “a sujeira em baixo do tapete” me empurrando para o armário? Acha mesmo que isso vai mudar seu resultado nas eleições?

-- Quero que você aja como membro dessa família ao menos uma vez na vida!

-- Agir como uma Toledo Campos para o senhor é exatamente o quê? Chantagear? Extorquir? Corromper? Mentir? Ameaçar? Usurpar dinheiro público? Ou quem sabe entrar em algum grupo de extermínio de grileiros ou de sem-terra?

-- Ora cale-se Diana!

                A mão pesada de Acrisio se levantou contra a filha. Diana não se intimidou. Os dois travaram um duelo de olhares que minavam uma vida de ressentimentos e decepções mútuas, até o senador baixar a mão e lutar para se recompor.

-- Você não cumpriu nosso acordo, vim aqui exigir que o faça agora.

-- O senhor não conseguiu nada com a Natalia, pensando que seria mais fácil manipulá-la, ameaçá-la e agora me procura com esse papo de nosso acordo? Ora senador, vamos poupar a hipocrisia, sejamos práticos e objetivos, vá direto ao ponto.

-- Essa caipira insolente não me deu ouvidos. Um tanto ingrata a meu ver, acaso não sabe o que fiz por ela?

-- Ela não se curvou ao seu poder, Natalia é forte, pode ter estado por um tempo vulnerável no seu primeiro ano aqui, mas já superou isso, não se submeteria ao senhor por essa dívida. Veio cobrar de mim essa dívida?

-- Você é minha filha Diana! Não negocio com você, estou aqui como seu pai, vim exigir respeito a nossa família! O meu partido tem uma moral a defender, você como minha filha deve ser exemplo disso!

-- Pai o que é respeito para o senhor? Esse partido que o senhor é membro, não respeitam homossexuais, mas tolera sua prática política? E todas as acusações de crimes que cercam o senhor? Belo respeito ao eleitor.

-- Diana chega! Você já me tirou a paciência!

-- Então me diga de uma vez por todas o que quer aqui!

-- Quero que venha comigo para Campo Grande estar ao meu lado, ao lado da sua família nessa reta final de campanha. Encerre essa sua brincadeirinha com a caipira insolente e aja discretamente fazendo todos acreditarem que tudo que foi divulgado foi uma armação do meu adversário para sujar minha imagem.

-- O senhor só pode estar louco! Nunca faria isso! Nunca!

-- Está preparada para as consequências?

-- Ah... Estava demorando... Começaram as ameaças. O senhor não negocia comigo, mas me chantageia... O que vai ser dessa vez? Vai cortar minha mesada? Uma novidade para o senhor: isso não me amedronta. Já fez isso e sobrevivi. Nada vai me separar da Natalia. Eu a amo. Já enfrentamos muitas barreiras para ficarmos juntas, o senhor será só mais uma. Vai me deixar sem dinheiro? Não me importa, estou trabalhando e posso me manter no final do ano me formo, e vou fazer da minha vida o que quiser, longe das suas rédeas.

-- Eu imaginei que reagiria dessa forma. Por isso, me precavi.

                Como um mágico que esconde um truque, Acrisio lançou sobre a mesa uma pasta cheia de papéis e continuou a falar:

-- Você ama essa garota? Suponho que tanto amor envolva sua nobreza em proteger também a família dessa moça.

-- Do que o senhor está falando?

-- Essa pasta tem um dossiê sobre a vida da família dessa caipira. Extratos bancários, empréstimos, dívidas, bens, declaração de impostos, até mesmo histórico médico do senhor Álvaro Martins.

-- O senhor mandou investigar a família da Natalia? Aposto que não encontrou nada!

-- Nada criminoso é verdade. Mas, em minhas mãos, essas informações podem ser muito úteis. Você sabia que recentemente o pai da sua amiguinha fez um empréstimo altíssimo para ampliar sua loja e comprar propriedades na região e colocou como garantia, todos os bens? Até mesmo a casa que mora?

                Diana permaneceu estática. Sabia que era verdade, há dias Natalia comentou com ela a imprudência do pai.

-- Pelo que vi, o homem é um empreendedor, conseguirá quitar essa dívida.

-- Mas?

-- Mas, se eu intervier, ele pode perder o credenciamento para fornecer material para financiamento de bancos do governo para construção, isso seria péssimo para os negócios dele, afinal seus principais clientes são aqueles que conseguem financiamento público para habitação... Suas propriedades podem ser desvalorizadas se eu mexer meus pauzinhos e os arredores abrigarem um lixão, ou uma fábrica poluidora... Ele teria dificuldade em honrar suas dívidas e em poucos meses sua derrocada será vertiginosa. Sua amiguinha seria abalada por isso?

-- O senhor é um monstro... – Diana se sentou com os olhos marejados.

-- Ainda tenho informações que acabaria com a credibilidade do senhor Álvaro Martins, colocando-o como alvo de investigação de sonegação de impostos com as devidas manobras o faria receptador de mercadoria roubada. Veja que drama: falido e na cadeia!

                Diana balançava a cabeça negativamente, incrédula com a crueldade do pai.

-- Quem sabe Natalia conseguiria ganhar a vida fazendo fotos sensuais, vídeos pornôs, já que ela já tem alguma experiência nisso...

                O comentário do pai encheu Diana de ódio. A loirinha levantou-se subitamente, e cuspiu na face do senador recebendo de imediato uma violenta tapa que a fez perder o equilíbrio.

-- Fui muito condescendente com você Diana! Deixei que sua mãe te protegesse, olha o que você se tornou! Vou te colocar nos eixos, custe o que custar!

                Erguendo-se com alguma dificuldade, Diana enxugou o rosto banhado em lágrimas silenciosas enquanto o pai limpava o rosto com um lenço de seda.

-- Não sei que tipo de monstro é você que chantageia a própria filha envolvendo inocentes gratuitamente... Tenho nojo de você, vergonha de ter seu sangue, hoje o senhor perdeu sua única filha.

-- Isso é o que veremos Diana. Deixe essa dramaticidade de lado e vamos ser práticos como você mesma sugeriu. Você tem três dias para chegar a Campo Grande com essa situação completamente resolvida, caso contrário não hesitarei em cumprir minhas ameaças.

****

                Ainda atordoada com o ultimato do pai, Diana não voltou para casa na hora de sempre, deixando Natalia preocupada especialmente porque a loirinha desligara o celular propositalmente. Solitária refletiu nas consequências de não levar a sério as ameaças do pai, por mais que lhe doesse, todos os seus instintos apontavam que o senador não hesitaria em cumpri-las. Natalia e sua família sofreriam de maneira catastrófica os efeitos de involuntariamente estar no caminho de Acrisio Toledo Campos, e seu relacionamento não resistiria a tamanha provação, seria uma carga de infelicidade muito alta para arrastar numa vida a duas já tão marcada por acontecimentos desgastantes.

                Refletia ainda sobre como e o que dizer a Natalia. A valentia e personalidade fortes da moça a impulsionaria a não ceder às chantagens do senador. Tal atitude intempestiva nesse contexto seria ingênua, Diana sabia que Natalia não calculava do que seu pai era capaz, facilmente as consequências evoluiriam para desfechos mais sórdidos, arquitetados pelo senador se fosse desafiado. Assim, a loirinha concluiu: Natalia não pode saber a verdade, era necessário proteger ela e a família da sua inocente coragem.

                Se Natalia não podia saber a verdade, o que justificaria a separação delas? Diana sentia seu peito romper antevendo sua alma dilacerar com tal evento iminente. Ainda lhe restava a dura pena de ser responsável por isso, era preciso colocar sua própria inteligência a serviço do seu sofrimento, uma vez que não seria fácil enganar a namorada, a relação delas estava sólida, a cumplicidade lhes permitia traçar um futuro juntas de uma maneira absolutamente natural, como se fossem predestinadas uma a outra. A alternativa era tocar o ponto fraco de Natalia: seu ciúme e insegurança.

                Apesar de Diana manifestar de todas as formas sua fidelidade e seu amor por Natalia, a moça era tomada por várias vezes pelo sentimento irracional que lhe deixava insegura ao imaginar sua namorada cercada por belíssimas mulheres no trabalho, sem contar seu vasto histórico de lésbica solteira nas noites paulistanas. Era nessa fraqueza que Diana se concentrava para magoar Natalia a ponto dela mesma terminar tudo.

                Cogitava ainda a possibilidade de que o rompimento fosse temporário, até que as eleições passassem e seu pai a deixasse em paz depois de alcançar seu objetivo. No entanto, não estava certa que Natalia aceitaria essa situação, especialmente pela invasão à vida de sua família que o senador executou, cobraria de Diana outra postura, a qual a loirinha sabia que só as colocaria ainda mais na linha de fogo suicida com seu pai. Para que ela pudesse manter Natalia e seus pais à salvo era necessário fazê-la acreditar nessa separação, depois lutaria para reconquistá-la, longe dos desmandos de Acrisio Toledo Campos, esse era seu plano mais sensato.

                A noite já estava avançada quando Diana decidiu voltar para casa e enfrentar os últimos dias na companhia de sua amada ou pelo menos antes de mais um período, afastada dela. Quando caminhava para o carro estacionado, avistou um rosto conhecido que lhe sorria. Era Rosana, sua boa amiga.

-- O que é a vida de uma mulher casada agora! Nem tem mais tempo pras amigas!

                Rosana abraçou Diana amigavelmente, e notou o abraço se prolongar de maneira atípica, não se afastou ao sentir que a amiga soluçava em seu ombro.
               
-- Ow minha querida... O que houve?

                A sempre descolada e forte garota revelava abruptamente sua face vulnerável, despertando na psicóloga seu instinto de cuidado com a amiga.

-- Quer conversar um pouco?

                Diana recusou com um gesto enquanto Rosana enxugava o rosto da amiga com suas mãos.

-- Di sabe que pode contar comigo não é?

                Dessa vez a loirinha acenou em acordo e resumiu:

-- Preciso fazer a coisa mais difícil de toda minha vida, quando me falavam sobre lutar por amor nunca imaginei que essa luta podia implicar também em perdas e separação. Que raios de sentimento é esse?

-- Nem sempre as lutas são justas não é?

-- Não, não mesmo.

-- Encare da seguinte forma: há um momento oportuno para tudo, isso é bíblico. Essa luta também tem sua hora de acabar, espero que o amor vença no final.

                Diana seguiu como se carregasse o fardo de uma dor insuportável, sua feição angustiada preocupou ainda mais Natalia quando viu sua namorada chegar.

-- Meu amor o que aconteceu? Essa demora toda? Seu celular desligado, e agora essa carinha?

                Diana não respondeu se jogou no sofá com o olhar úmido, perdido na imagem da televisão ligada.

-- Diana? -Natalia inquiriu franzindo o cenho. – Não vai me dizer nada?

-- Estou cansada só isso. – Respondeu com frieza evitando encarar a namorada.

-- Só isso? São quase dez da noite, você está só umas cinco horas atrasada, não me deu notícias, não ligou, chega assim e é só isso?

-- Natalia me poupa de interrogatório de mulher possessiva vai... – Diana falou impaciente.

-- Como é que é? – Natalia retrucou com as mãos na cintura.

-- Ai pronto, vai virar DR. – Diana bufou simulando enfado. – Não liguei por que meu celular descarregou, quer conferir? Fiquei até tarde na rua por que meu carro quebrou e minha preocupação foi sair do prego, pronto, não foi nada demais.

-- Custava me avisar de um telefone público, por exemplo?

-- Natalia eu tive que ligar para mecânicos, para o seguro chamar reboque em pleno rush de sexta-feira, custava muito mesmo ainda te ligar, desculpe-me. Apressei-me para chegar logo em casa e você me recebe com um interrogatório!

-- Não entendo essa irritação toda comigo, só perguntei por que me preocupei.

-- Desculpe-me, estou cansada e acho que to de TPM.

                Natalia se desarmou e se aproximou da namorada procurando seus lábios para um beijo. Diana correspondeu sem ânimo. O contato mais próximo possibilitou Natalia identificar um perfume diferente, familiar, mas que não era de sua namorada.

-- Que cheiro é esse? Esse perfume não é o seu...

                Sem querer Diana plantou indícios do que arquitetava fazer para romper com Natalia. Viu ali a oportunidade perfeita de começar a instigar o ciúme da namorada.

-- Só me faltava essa... Vai procurar marca de batom na minha gola também?

                Diana brincou para provocar Natalia.

-- Diana não faz gracinha...

-- Nat eu não estou fazendo gracinha, você está fantasiando coisas. Pra que todo esse drama?

                Natalia parou alguns segundos para trazer à tona sua memória olfativa e exclamou:

-- Eu conheço esse perfume! É da Rosana!

                Diana arregalou os olhos, não podia supor que a namorada tivesse tal talento.

-- Caraca... Quando você disse que tinha bom faro para investigação, acreditei que era uma metáfora! Vejo que me enganei você é um perigo!

-- Por que me escondeu que estava com a Rosana?

-- Encontrei-a por acaso.

-- Diana você está me escondendo algo, nem me olha enquanto fala... Chega de mentiras!

-- Estou falando a verdade, encontrei-a por acaso. Vou tomar banho, estou cansada.

                Natalia estava intrigada, o comportamento de Diana deixou a namorada completamente insegura, pelo resto da noite, a loirinha permaneceu distante, pensativa, mesmo com todas as tentativas dela emendar um assunto, ou arrancar uma carícia. Notou o vazio na cama de madrugada e encontrou a loirinha no chão da sala, abraçando seus próprios joelhos em um pranto silencioso.

-- Diana? Meu amor o que aconteceu?

                Natalia acendeu o abajur e viu o rosto da namorada que denunciava as muitas lágrimas derramadas com seus olhos inchados e seu nariz e lábios vermelhos.

-- Ei! Você andou chorando? Amor o que houve? Está me deixando preocupada...

                Natalia puxou Diana contra seu peito em um abraço tenro. A loirinha tentava fazer sua insônia produtiva na busca de uma solução melhor que não envolvesse a necessidade de magoar Natalia, nem tampouco de se separar dela. Mas, toda reflexão a trazia para a mesma conclusão: era sua responsabilidade proteger sua amada e família do inescrupuloso jogo de interesses políticos de seu pai, não podia arriscar um caminho alternativo às exigências de seu pai. Movida por tal sentimento mentiu:

-- Eu traí você.

                Natalia cessou a respiração por segundos, como se a revelação lhe provocasse uma dor física. Emudeceu, mas seus olhos marejados deram lugar a uma lágrima solitária, falando a Diana o que aquela revelação lhe causara interiormente.

-- Eu não resisti me deixei levar... Foi tudo tão rápido, quando dei por mim já...

                Natalia a interrompeu com um gesto. Apertou os olhos e com a voz embargada anunciou:

-- Não quero saber. Ou melhor, só quero que você me diga sim ou não. Foi com a Rosana?

-- Sim.

                A mentira estava lançada, agora não dava pra voltar atrás. Natalia se levantou aturdida pela dor da decepção, nunca sentira tamanha angústia, não imaginava a quão dolorida era uma traição. De repente, tudo ficou claro, tudo fazia sentido: o comportamento de Diana, sua insegurança e afinal seu ciúme da psicóloga não era infundado.

-- Nat isso não muda o que sinto por você, foi só meu corpo, não traí com o sentimento, mas, não posso te garantir que não acontecerá de novo... Eu nunca te prometi fidelidade, estou acostumada com liberdade...

-- Chega Diana! Isso nem parece com você falando! Essa capa que você usa de mulher descompromissada, que não se apega pode funcionar com as vadias que você brinca, comigo não! Sei que você é leal ao que acredita e ao que sente, por isso, essa traição está me machucando ainda mais, por que se isso aconteceu, está evidente que seus sentimentos por mim mudaram sim. Você não é tão submissa ao seu corpo como tenta mostrar...

-- Natalia você me romantizou demais... Sou bem menos nobre do que seu coração me vê.

-- Disso eu não tenho dúvidas. Você nunca me prometeu fidelidade, mas também nunca disse que estar comigo te fazia menos livre. Talvez a jeca aqui seja mesmo uma idiota que acredita em qualquer conto de fadas.
               
                A mágoa exposta no olhar de Natalia era tão profunda que fez Diana hesitar em manter aquela farsa, arrependeu-se, procurou as melhores palavras para explicar o que acontecia de fato quando Natalia voltou do quarto com sua mochila em um dos ombros e anunciou:

-- Eu venho pegar o resto das minhas coisas durante a semana.

-- O que? Mas... Como assim? Aonde você vai com essa mochila?

-- Estou saindo do seu apartamento Diana.

-- Natalia que besteira é essa? Você vai pra onde?

-- Pra onde vou, com quem e como vou não é mais da sua conta Diana.

                Natalia fez menção de abrir a porta quando Diana a impediu.

-- Nat... Você pode ficar aqui o tempo que quiser, estou indo para Campo Grande amanhã, por tempo indefinido...

                Natalia franziu a testa estranhando aquela novidade e rapidamente adiantou suas suspeitas:

-- O que você está me escondendo Diana? Que novidade é essa de ir para Campo Grande por tempo indefinido? E a faculdade? E seus compromissos profissionais?

-- Vou fazer isso por minha mãe. Ela me pediu para estar perto da família nesses dias finais da campanha do pai, e não vou recusar um pedido dela. Quanto aos meus compromissos aqui, vou dar um jeito.

-- Eu não sei se você me magoa mais pela deslealdade ou pelas mentiras...

                Natalia balançou a cabeça negativamente convicta que Diana estava lhe enganando.

-- Você pode não acreditar em mim Nat, mas, eu te amo.

-- Diana, eu acho que temos ideias diferentes sobre o amor. Esse tipo de amor que você me revelou hoje, não serve para mim. Amor sem garantias de lealdade, de cumplicidade, de confiança? Isso para mim está implícito no conceito de amar, se você não é capaz de me amar com esses requisitos, não acredito no seu amor.

-- Mas é a pura verdade...

-- Essa verdade não me basta.

                Natalia abriu a porta e de costas para Diana concluiu depois de enxugar seu rosto.

-- Uma vez antes de terminar comigo, você me disse que um relacionamento cheio de empecilhos, desgastes como o nosso não valia à pena. Agora vejo que você tinha razão, não vale mesmo à pena tanta luta pra você estragar tudo por um capricho do seu corpo.

                Essas foram as últimas palavras de Natalia antes de deixar o apartamento e pedir abrigo ás suas amigas na sua antiga república. Diana tragou sua própria dor se punindo pelo que causara a Natalia e ao amor delas, talvez tivesse lançado mão do caminho mais difícil, entretanto, anteviu que a chantagem do pai não admitiria meia atitude dela, a tentativa de enganá-lo e voltar seu namoro depois das eleições poderia precipitar o cumprimento daquela ameaça sórdida.

CAPÍTULO 43: Nihil diu occultum
Nada oculto por muito tempo. 


                Diana partiu para Campo Grande com o seu coração aos frangalhos. Como se estivesse anestesiada pela própria dor, enfrentou os dias, a distância e o remorso por ferir tão violentamente Natália, além da indescritível sensação de perda que assolava sua alma. Nem mesmo o cuidado e proteção de sua mãe amenizaram aquele vazio que invadira sua vida quando deixou São Paulo. Alice estava de mãos atadas, não podia enfrentar o marido, principalmente por saber que de nada adiantaria. Durante os dias que antecederam a eleição municipal, Diana vestiu a personagem de boa filha moderna e discreta, evitando as especulações sobre sua sexualidade, ligou o “automático” absorvida na sua perda.

                Acrisio Toledo Campos conseguiu o que não era previsto pelas pesquisas: arrastou a eleição pela primeira vez naquela cidade para o segundo turno, protelando o sacrifício de Diana, que aquela altura gozava da influência do pai para cumprir horas de estágio na universidade federal daquele estado impedindo mais atrasos na sua graduação. Por diversas vezes a loirinha se refugiou nas lembranças e na esperança de refutar aquele estado de prisão que seu pai a submetera, lutaria por Natalia com todas as suas armas, tão logo pudesse mantê-la a salvo do seu pai.

                Como as pesquisas anunciaram: Acrisio reverteu o quadro do primeiro turno, e venceu as eleições. O resultado ecoou para Diana como o anúncio de liberdade condicional. Em meio à comemoração na mansão de sua família, uma festa com dezenas de autoridades políticas, cabos eleitorais, e sua família, a loirinha correu para seu quarto e em minutos arrumou suas malas e anunciou para a mãe:

-- Estou voltando para São Paulo mãe, preciso vê-la, preciso que ela volte pra mim.

                Alice olhou para filha com um olhar compassivo, entristecida pela ingenuidade da filha, sabia que seu marido não se contentaria com a reconciliação dela com Natalia.

-- Minha querida... As coisas não são tão simples...

-- Mas mãe! Ele conseguiu o que queria! Fiz o que ele pediu, cumpri minha parte.

-- E vai continuar cumprindo!

                A voz grave do senador adentrou no cômodo, surpreendendo mãe e filha.

-- Não é justo! Fiz o que o senhor queria, já tem sua prefeitura, agora tem uma dúzia de corruptos nojentos da liderança nacional do seu partido hipócrita lambendo o chão que o senhor pisa, está tudo de volta ao normal, volto à minha vida.

-- Não dei prazos para você, não estipulei que seu comportamento, sua brincadeirinha de casinha com aquela caipira voltaria com o fim dessas eleições. Preciso manter minha reputação a salvo dos respingos de boatos imorais que você proporcionou, porque minha ambição vai muito além dessa prefeitura.

-- Mas que diabos o senhor está me dizendo? – Diana franziu a testa indignada.

-- Em dois anos concorrerei a cadeira de governador, até lá tenho que assegurar minha credibilidade e integridade política, assim, nosso acordo permanece.

-- O senhor quis dizer: chantagem! – Diana berrou com as lágrimas vertendo pelo rosto.

-- Chame como quiser.

                Acrisio virou as costas quando Alice interviu.

-- Meu querido, espere. Não há uma alternativa? Quem sabe se a Diana fosse para fora do Brasil? Tiraria ela do foco da imprensa, seria mais fácil evitar essa perseguição...

-- Acha que vou financiar os devaneios de sua filha no exterior? Já fiz isso, e não deu certo.

-- Acrisio, paciência... Diana está se formando em Direito como você sempre quis, atendeu suas exigências, ela tem conquistado fama e prestígio com a profissão dela, ela merece se qualificar nisso, é uma prova de sua boa vontade e do respeito por ela.

                O jeito meigo daquela bela mulher falar com o marido ditador era a arma secreta de Diana para tocar o coração do pai.

-- Você me garante que vai se comportar? Não vai criar um incidente internacional?

                Diana bufou.

-- Não sou mais criança pai. Mas, o senhor me garante que não fará nada contra Natália e a família dela?

-- Tem minha palavra, até o momento que você cumprir com a sua, e sua vida seja a mais completa discrição, sobre absolutamente tudo!

                As condições estavam muito bem explícitas naquela simples declaração “completa discrição sobre absolutamente tudo”. Se esse era o preço, Diana assentiu pagá-lo, era muito menor do que a taxa exorbitante de viver longe de Natalia.

                Com o compromisso firmado, Diana aguardou alguns dias a pedido da mãe para concluir as horas de prática jurídica naquela universidade, e acertar os detalhes da sua partida para Nova Iorque, retornou à São Paulo o mais rápido que pode para fazer as provas de disciplinas que cursava paralelamente à custa de processos movidos conseguindo quebras de pré-requisito. Entretanto, a urgência maior era mais íntima, mais visceral, incontrolável: rever Natália e reconquistá-la, avançando um passo que ela mesma não estava segura em dar, mas precisava arriscar alto pelo seu amor.

*******

                As provas finais consumiam o tempo e energia dos estudantes no final do semestre. As meninas da república se organizavam em grupos de estudo, inclusive Natália que lutava para manter o foco no estudo a fim de se esquecer de sua decepção com o amor.
               
                Diana chegou ao Campus ansiosa, esfregando as mãos suadas, com os olhos nervosos a procura de um só rosto, o mesmo que acompanhou seus sonhos, desejos e a lembrança mais presente nas últimas semanas, o de Natália.

                Os corredores pareciam infinitos, as pernas trêmulas da loirinha não contribuíam para que aquela distância diminuísse até o quarto semestre do curso de Direito, sala de Natália. A expectativa foi vã, a sala estava vazia.

-- Oi, não está tendo aula para o quarto semestre?

                Diana perguntou a uma das colegas da ex-namorada.

-- Ah não, acabamos a última prova agora, foi aplicada no auditório da biblioteca. O pessoal está no Botecão.

-- Ah, obrigada.

                Diana disse com ar frustrado.

-- Diana! A Natália está lá.

                A garota deduziu a procura de Diana que sorriu agradecida, partindo para o bar. O cenário conhecido parecia apavorar a assídua visitante do lugar, ansiosa, Diana caminhou pelo Botecão, sendo pouco receptiva com os conhecidos que a saudavam depois do seu sumiço temporário. Sua ansiedade deu lugar a uma angústia sufocante, ao ver saindo do banheiro feminino Natália acompanhada de uma amiga da república em clima de flerte.

                O impulso de correr na direção de Natalia e roubar-lhe um beijo, ou ao menos aproximar-se de seu corpo, foi contido bruscamente diante da cena. Diana ficou paralisada encarando as duas garotas com a estranha sensação de estar sendo usurpada. Os segundos solitários de angústia de Diana precederam a troca de olhares com Natália que ao se deparar com a ex-namorada encostada no balcão perdeu a respiração abruptamente.

                O eco das vozes no bar sumiu em um passe de mágica.

                As pessoas em volta pareciam fora de foco ao olhar das duas.

                O som das batidas aceleradas dos corações parecia crescer gradativamente na medida em que Diana ousava caminhar em direção a Natália.

                Diante de uma Natália visivelmente mais magra, e com um olhar nublado, Diana com as mãos recolhidas no bolso do casaco para esconder o tremor delas, encarou a ex-namorada com os olhos marejados e disse:

-- Oi Nat.

                O cumprimento de Diana despertou Natalia do transe, entretanto, ela permaneceu calada e Diana prosseguiu:

-- Podemos conversar?

-- Não temos mais nada para conversar Diana, com licença.

                Natalia saiu da frente de Diana, puxando a amiga pela mão. Diana sem reação encostou-se no balcão, e lá permaneceu pelo resto da tarde, bebendo sem parar observando Natalia claramente lhe provocando ciúmes com sua nova amiga.

                A noite chegou e com ela os ânimos exaltados e a euforia do álcool. O sentimento de perda junto com a embriaguez impulsionou Diana a se render, se esquecer do bom senso e agir incisivamente. Quando Natália saiu do bar acompanhado do seu suposto affaire, Diana não hesitou, seguiu as duas e as alcançou no fim do quarteirão.

-- Natalia você vai pra casa comigo!

                A voz da loirinha denunciava seu estado de embriaguez, sua expressão atordoada só confirmava tal fato.

-- Diana você não tem condições de levar nem a si mesma em casa, pegue um táxi e me deixe em paz.

-- Nat, por favor... Vem comigo.

                Diana disse deixando as lágrimas escorrerem pelo rosto, rendida ao sentimento que lhe consumia que deixou frágil, indefesa pela iminência de perder definitivamente seu amor.

-- Qual é a sua Diana? Por que você se acha no direito de brincar assim com o sentimento dos outros?

                Natália parecia ter perdido a paciência, seu tom denotava uma carga de indagações presas em seu peito que clamavam o direito de serem feitas a Diana.

-- Nat, vamos conversar, tenho tanto a te falar...

-- Mas não quero escutar Diana. Volte para a sua personagem de filha perfeita do poderoso senador, volte para sua vida de pegação, procure a Rosana, talvez ela queira te escutar.

                Sem equilíbrio para andar rápido, Diana caiu por cima das mesas da calçada na tentativa de alcançar Natália. O barulho dos copos e garrafas se espatifando pelo chão chamou a atenção de Natália que fez menção de voltar para ajudar a loirinha, mas, foi contida por Silvana, ao invés da ex-namorada, Diana recebeu o apoio de alguém familiar que se apresentou solícita:

-- Venha Diana. É hora de pagar o favor que você me fez anos atrás, te levo para casa.

                Sheila segurou Diana pela cintura e a levou até seu carro depois de tomar as chaves da loirinha, de longe, Natalia observou tomada de ciúme e irritação a intimidade com a qual Sheila conduziu Diana, renovando sua decepção com a ex-namorada.

****

                Amargando a ressaca e gosto travado da tentativa fracassada de se aproximar de Natália, Diana despertou com a desagradável falta de memória acerca do que poderia ter acontecido entre ela e a mulher que estava ao seu lado na cama. Sheila se adiantou a responder às indagações da loirinha ao notar que esta despertara.

-- Antes que você deduza o pior, quer dizer, o melhor, nós só dormimos juntas e nada mais.

                Diana deixou escapar um sorriso com dificuldade enquanto Sheila se levantava.

-- Vou te trazer um café forte, tome um banho, você está precisando.

-- Está me dizendo que estou fedendo?

-- Com certeza você já cheirou melhor minha querida.

                Sheila deixou o quarto depois de se desviar de um travesseiro que Diana arremessou. Minutos depois retornou ao quarto com uma caneca de café amargo o qual Diana fez careta para ingerir.

-- Agora estamos quites, cuidei do seu porre como você cuidou do meu.

-- Não vai espalhar por aí que tivemos um “remember” do que nunca houve?

-- Não, eu aprendi a lição, até mesmo porque, estou namorando e acho que eu perderia mais com isso do que você, já que pelo que notei sua caipira não está mais nem aí para você.

                Diana baixou os olhos e respondeu:

-- Obrigada pela força Sheila, valeu mesmo, posso te deixar em algum lugar?

-- Não precisa, pego um táxi. Acho que você deveria cuidar dessa ressaca antes de apresentar sua monografia.

-- Como você sabe que é hoje minha apresentação?

-- Por que a sua é depois da apresentação da minha namorada, vi no quadro os horários.

-- Ah... Minha monografia está pronta desde o semestre passado, a Natalia fez a maior parte...

                Diana calou amargando outra vez sua angústia de perda.

--Então apresente bem o trabalho, você deve isso a ela.

                Apesar de, a princípio, Sheila ter se comportado de maneira pouco honesta com Diana, a atitude da garota a redimiu, conquistando a simpatia da loirinha. Com muito esforço para se concentrar, Diana releu sua monografia e ensaiou sua apresentação com o pensamento em Natalia, de alguma forma, aquele trabalho era dela também.

                No final da tarde, no horário programado, Diana chegou a um dos auditórios da biblioteca, local marcado para apresentação. Qual não foi sua surpresa, ao ver na sua banca, sua antiga arqui-inimiga: Doutora Dorothea.

                A partir daí, o nervosismo dominou Diana. Apesar de não dizer uma palavra, ou deixar escapar uma provocação, a presença de ex-professora de Diana lhe intimidou a ponto de causar pavor, tal reação teve como consequência o conhecido “branco” na mente, evidenciado pelas imensas pausas durante a transição de slides e sua gagueira inédita. O sorriso quase maléfico de Dorothea diante do fiasco de Diana assustou ainda mais a loirinha, entretanto, a chegada discreta de Natalia, que se sentou no fundo do auditório, mas perfeitamente visível para Diana, representou um providencial antídoto dos céus contra o veneno que a presença de Dorothea ali se configurava.

                A calma foi se apossando da loirinha, e aquela apresentação foi enfim dela. Os olhos atentos de Natalia lhe transmitiram a segurança que ela precisava para mostrar a qualidade do seu trabalho. A mudança na postura de Diana intimidou até mesmo Dorothea, que fez observações e correções pouco pertinentes, ao final a banca não pode negar nota máxima ao trabalho para a satisfação de Diana e orgulho de Natalia que saiu apressada do auditório.

-- Natalia, espera!

                Diana gritou no corredor.

-- Fala Diana, estou apressada.

-- Obrigada por vir, foi fundamental pra mim, esse trabalho também é seu afinal.

-- Por isso eu vim.

-- Já que está aqui... Você pode me dar dez minutos a mais?

-- Pra quê Diana?

-- Por favor. Só preciso de dez minutos para dizer o que preciso a você.

-- Ok Diana.

                Em um dos corredores abandonados pela reforma do piso superior, Diana abriu seu coração para Natalia que de braços cruzados demonstrava sua indisposição para qualquer argumento da ex-namorada.

-- Estou escutando Diana.

-- Primeiro: eu menti para você, não te traí.

-- Por que você faria tal asneira?

-- Porque precisei mentir para você, precisava terminar nosso namoro, de outra forma eu não conseguiria me afastar de você.

-- Você precisava terminar nosso namoro? Que besteira é essa agora? Outra mentira?

-- Nat, meu pai me obrigou, fiz isso para proteger você.

-- Ora faça-me o favor Diana! Essa não cola ta? Seu pai me procurou para me intimidar, deixei claro que não me afastaria de você! Se fosse pra fazer algo contra mim ele teria feito naquela época.

-- Você acha que ele desistiria só por que você mostrou toda sua nobreza e valentia? Ora Natalia, você não conhece meu pai.

-- Ok, se isso for verdade, o que seu pai faria contra mim?

-- Contra sua família... Levaria seu pai a falência em primeiro lugar.

-- Isso é loucura! Seu pai não tem meios pra isso.

-- Acredite, ele tem.

-- Se isso fosse verdade, porque não me falou? Por que você mentiu para terminar comigo?

-- Você se conformaria em terminar comigo por causa do meu pai?

-- Não! Mas poderíamos fingir para convencer seu pai, tentaríamos uma alternativa.

-- Era exatamente esse meu medo, era muito arriscado.

-- Então você preferiu mentir, me magoar, destruir nossa relação por não acreditar que poderíamos enfrentar isso juntas? Era muito arriscado?

                Diana não teve como argumentar. Era esperar demais de Natalia que ela compreendesse o tamanho do sacrifício que ela as forçou a viver.

-- Você vivia me falando do quanto é difícil enfrentar o preconceito das pessoas, mas acabei descobrindo que muito mais difícil é lutar contra a covardia de quem a gente ama. Posso enfrentar a homofobia do mundo Diana, mas não consigo lidar com sua covardia em não se arriscar por nós.

                Natalia se afastou com a expressão decepcionada, desviando-se do olhar marejado de Diana, travada pela verdade que agora não era mais suficiente para justificar sua atitude. Antes que Natalia sumisse do seu campo de visão em meio aqueles escombros, Diana ousou uma última tentativa:

-- Estou indo embora do Brasil, talvez não volte nunca mais.

                Natalia engoliu seco. O abalo da notícia foi muito maior do que ela podia racionalizar. Sua reação não condizia com sua firmeza em atestar o fim do relacionamento com Diana, não estava pronta para arrancar Diana para sempre da sua vida assim como desejava.


                A pausa no caminhar de Natália e seu silêncio dando as costas para Diana motivaram um, dois, três passos da loirinha até ficar próxima o suficiente da ex-namorada, o suficiente para ouvir sua respiração entrecortada e sentir a hesitação em partir dali.

-- Vem comigo?

                Diana praticamente sussurrou ao ouvido de Natalia.

-- Você não pode brincar comigo assim Diana.

                Natalia refutou com tom ressentido. Temendo tocar a pele de Natalia, como se estivesse se achegando em um animal arredio, Diana contornou os ombros e os braços de Natalia sentindo crescer em seu corpo uma onda de desejo arrebatadora, e Natalia por sua vez, provava a sensação de ser sugada por aquelas mãos, qual metal se entrega a um ímã com a naturalidade das leis da física: inevitável.

-- Vem comigo, só eu e você, longe de tudo isso que nos separa. Uma vida nova...

                Em meio a erupção de sensações e o sentimento avassalador, Natalia não conseguia encontrar a sensatez nos movimentos do seu corpo, que simplesmente se jogou para trás encontrando os braços de Diana envolvendo sua cintura, e sua boca repousar em seu pescoço iniciando um reencontro ansiado de cheiros e gostos, os sentidos se entregando no compasso acelerado dos corações e respirações. O roçar do nariz de Diana percorrendo a nuca de Natalia enquanto erguia suas madeixas com força, incluía um excitante elemento na delicadeza do momento, tornando imperativo o encontro dos lábios, línguas e o passeio das mãos pelas peles quentes e eriçadas.

                A insaciável busca da satisfação dos desejos de ambas promoveu uma série acidentes espalhando latas, ferramentas de pintura que estavam no caminho até os degraus no canto da sala. Diana jogou o peso do seu corpo contra o de Natalia impondo mais intensidade nas investidas de sua boca e mãos pelo colo e cintura de Natalia que não continha o gemido de prazer o sorriso nos lábios.

                A satisfação percorria cada poro das peles de ambas, Diana parecia pressentir o que o corpo de Natalia queria assim se antecipava aos seus desejos levando a outra a um inédito gozo sem que fosse preciso a típica configuração do ato sexual, não foi preciso o toque mais íntimo, uma vez que a alma estava ali exposta, a intimidade estava escancarada ao prazer dos beijos e carícias apaixonadas.

                Diana recostou seu rosto no colo de Natalia tentando recobrar suas forças e controle da respiração, enquanto Natalia ainda sentia seus músculos tremerem e os espasmos denunciarem seu ápice se propagando para a satisfação de Diana que sorria.

-- Uau!

                Foi o máximo que Natalia pode explicitar. Diana deixou escapar um riso alto e disse:

-- Você é maravilhosa Nat.

-- E mesmo assim você me deixou Diana.

                A mágoa estava lá, também exposta, viva.

-- Eu precisei Nat. Mas agora temos a chance de reconstruir nossa história, em Nova Iorque, uma das capitais do mundo!

-- Nossa história não precisa de outro cenário Diana, precisa de capítulos mais reais, e eles não existirão se fugirmos.

-- Não é fuga Nat, é só uma chance pra sobrevivência da nossa história!

-- Não Diana isso é fuga! Os problemas continuarão aqui! O que nos separa continuará a existir!

-- Nat! Um canto só nosso, longe de tudo! Livres! Nova Iorque! Imagine tudo que nos espera lá!

-- Nada me espera em Nova Iorque Diana! Minha vida está aqui, o que lutei a minha vida toda está aqui, minha faculdade, meu futuro, minha família...

-- E eu? Não significo nada para você?

                Diana se levantou indignada, com as mãos na cintura. Natalia balançou a cabeça com uma expressão insatisfeita.

-- Você tem noção do quão egoísta você é? Reaparece aqui depois de semanas, quase dois meses, depois de me abandonar e revelar ter me traído com uma historia fantástica de chantagem do seu pai contra minha família, com uma proposta ainda mais fantasiosa sugerindo que eu largue tudo por você? Até quando duraria essa sua empolgação por mim? Aí você me deixaria de novo em um país estranho?

-- Eu não te deixei, e não subestime o que sinto por você, não estou empolgada, estou apaixonada por você!

                Por segundos, Natalia ficou sem reação diante do brado carregado de paixão de Diana, mas, em seguida se obrigou a encarar sua realidade de dúvida e descrédito e decretou:

-- Não vou embora com você, não quero viver uma fantasia, quero minha vida real, e ao que me parece na minha vida real você ainda é uma grande incógnita para mim. Não sei até que ponto posso confiar em você ou nos seus sentimentos, estar com você é tatear um lugar desconhecido no escuro, por isso meus passos devem ser firmes e claros.

-- E agora, quem está com medo de arriscar?

                Diana foi irônica, magoada pela descrença de Natalia a seu respeito.

-- Talvez meu instinto de defesa esteja falando por mim, coisas de menina do interior...

-- Uma vez caipira sempre caipira...

-- É o que eu sou Diana.

-- Amo o que você é, deixa eu te mostrar que você pode confiar em mim e no que sinto por você!

                Diana retrucou segurando o rosto de Natalia.

-- E se eu te pedir para você ficar? E me mostrar isso aqui? Seguir nossos planos me prove que o que vivemos foi real, é real!

-- Você não entende que aqui meu pai não vai nos deixar em paz? Você e sua família estão na mira dele, isso é real também!

-- Então vamos enfrentar a realidade, assim ela nunca nos afastará, por que estaremos juntas, fortes. Seu pai vai recuar se mostrarmos que não temos medo das ameaças dele.

-- Nat como você pode ser tão cabeça dura!

                Diana bufou erguendo os olhos.

-- Nat, parto logo depois da minha colação de grau especial,  eu pedi antecipação por que as aulas dos cursos que pretendo fazer começam em três semanas. Aqui está sua passagem, para nossa sorte, você seguiu meu conselho e tirou o passaporte quando compartilhei os planos de te levar quando fosse fazer meu curso em Londres ou Nova Iorque, matriculei você em um dos cursos para facilitar o visto, aqui está o comprovante, vou te esperar, se você não aparecer, vou entender que nossa história acabou.

                Natalia olhou para os papéis nas mãos de Diana, ainda absorvendo o peso daquela proposta. Concluir que Diana planejara sua partida junto com ela provocou um sentimento dúbio de raiva e satisfação, por um lado pensou que a loirinha a incluiu nos seus planos afirmando sua confiança no relacionamento delas e por outro se sentiu desrespeitada por ela ter tomado uma decisão tão importante pelas duas antecipando o seu sim para tal proposta.

                Como Natalia não recebeu o que Diana lhe estendia, a loirinha colocou o envelope sobre a escada, passou a mão pelos cabelos desalinhados, depositou um beijo delicado na face de Natalia e disse:

-- Eu te amo, e vou te esperar até o último minuto naquele aeroporto.

                Com seu peito ferido antevendo o desfecho daquele impasse Natalia respondeu:

-- Eu também te amo, mas, se você me deixar de novo, vou te tirar da minha vida pra sempre.

                Diana não respondeu, salivou o gosto amargo das lágrimas que pareciam explodir em sua alma com uma ferocidade proporcional à sua angústia e saiu da universidade para dias de expectativa e apreensão que duraram até o dia do seu embarque para Nova Iorque.

************

                Meados de dezembro, no Aeroporto Internacional de Guarulhos: o movimento triplicado, típico da alta estação, a pouco mais de uma semana das festas natalinas, o clima festivo, a decoração reluzente não contribuiu em nada para minimizar a angústia de Diana.

                A loirinha buscava freneticamente com o olhar, identificar o rosto de Natalia naquela pequena multidão. A vigília nervosa diante do relógio do saguão do aeroporto anunciava que o prazo dado a seu amor se esgotava.

                As semanas que se seguiram desde o último encontro com Natalia foram tensas e lotadas de preparativos e afazeres, para sua colação de grau e sua mudança para os Estados Unidos. Ocupou-se também com as despedidas dos amigos e da sua família, em especial sua mãe, que parecia aliviada pela filha sair das vistas do pai para viver sua liberdade.

                Para Natalia, esses dias não foram diferentes. O envelope lacrado sobre a sua escrivaninha lhe atormentou a ponto de tirar sua concentração das provas finais e dos seus relatórios da bolsa de pesquisa. Precisava se decidir, inclinada a se jogar nos braços de Diana enfrentou a fila quilométrica do consulado americano conseguindo seu visto para entrar no país. Mas, ao pensar, pesar sua atitude, voltava atrás mentalmente e sofria a ausência de Diana que vez por outra lhe enviava mensagens ratificando sua expectativa, e reiterando declarações de amor.

                A manhã do dia marcado na passagem se iniciou com a visita de Carla em seu quarto:

-- Posso entrar?

-- Claro Cacá.

-- Ontem foi a festa de despedida da Diana lá no Botecão.

-- Eu ouvi comentários...

                Natalia baixou os olhos segurando a passagem.

-- Você se despediu dela?

-- De certa forma sim, há três semanas.

-- Nat... Você tem certeza da sua decisão?

-- O que você acha? Pareço ter certeza de algo?

-- Não... Mas, acho que você tem uma certeza.

-- Qual?

-- Você a ama.

                Natalia deixou as lágrimas verterem pelo seu rosto.

-- Eu entendo que a Diana está te pedindo muito, que os planos eram diferentes, mas se você pensar, ela só está antecipando-os, e tem motivos para isso.

-- Antes não eram planos definitivos. Passaríamos uma temporada no exterior, só. O que seria da minha vida? Longe de tudo, sei que a influência do pai de Diana ajudaria a conseguir um green card e até me encaixar em alguma bolsa para concluir a faculdade lá, mas eu estaria completamente dependente dela, não é isso que quero. Sem contar no principal: eu não sei se posso confiar na Diana, não estou convencida que ela não me traiu com a Rosana, nem tampouco nessa história da chantagem do pai dela.

-- É muito arriscado mesmo. Mas, se ela não te amasse Natalia, ela não precisaria arquitetar tudo isso para vocês ficarem juntas. Ela também está perdendo ao partir assim, já tem uma carreira de fotografia aqui no Brasil, se ela estiver sendo sincera, ela deu esse passo por vocês, e será em vão se você deixa-la partir sozinha.

-- Então, por que ela não fica? Seguimos nossos planos e pronto! Isso é muito confuso para mim Cacá, muitas mentiras ou meias-verdades, como confiar nela?

-- É aí onde está o maior risco.


                A breve conversa com sua amiga só incitou ainda mais as dúvidas que povoavam a mente da estudante. Diante do espelho, indagava a si mesma sobre seus sentimentos e sobre sua vida e quanto mais refletia, mais chegava à conclusão que seguir Diana era a atitude mais insana que poderia conceber. Entretanto, fixou seu olhar naquela pequena argola de brilhante no segundo furo de sua orelha que Diana transformara em aliança de compromisso entre as duas, e impetuosamente recolheu sua mala sob a cama e jogou todo o conteúdo de roupas que conseguiu amontoar e partiu sem dar explicações para as amigas, Carla solidária desejou apenas boa sorte recebendo um sorriso sincero em troca.

                O trânsito de São Paulo não contribuiu em nada com o tempo escasso da moça para chegar ao aeroporto e embarcar e aumentando seu desespero percebera que na pressa esqueceu-se do seu celular impedindo-a de se comunicar com Diana.

                Conferindo a hora Diana concluiu que o último minuto chegara, a passos lentos caminhou até a área de embarque internacional, num doloroso trajeto, guardando a última esperança de que Natalia surgisse qual mocinha de filmes românticos parando o avião na pista com alguma loucura.

                Última chamada para o voo com destino à Nova Iorque, não restando alternativa Diana seguiu para o portão sentindo sua alma sangrar, segurando o pranto constatou que sua angústia chegara ao fim da pior forma: a recusa de Natalia.

                Afobada, tropeçando nas próprias pernas, Natalia chegou ao aeroporto e encarou suas origens de interiorana, sentindo-se perdida nas dezenas de guichês das companhias aéreas. Espiou os painéis e pediu informação a uma funcionária simpática da American Air Lines mostrando sua passagem.

-- Sinto muito senhorita, o check-in já foi encerrado.

-- Ajude-me, por favor! Preciso embarcar, tem alguém me esperando.

-- Sinto muito mesmo senhorita, é impossível pelas regras da companhia e do aeroporto, e mesmo que a ajudasse seria inútil, a aeronave já deve ter levantado voo.

                Natalia foi tomada por um sentimento de impotência descomunal, que lhe empurrava para a certeza de que Diana desistira do amor delas no momento que embarcara sozinha. Tal certeza massacrou sua alma, nublando seu raciocínio para as possibilidades mais práticas como remarcar aquela passagem e seguir seu amor, como se seu atraso fechasse um portal para outra dimensão na qual ela e Diana estavam destinadas a viver separadas para sempre.
Acomodou-se desolada em um dos bancos do saguão do aeroporto como se lhe faltassem as forças para se manter de pé, observou a alegria dos que chegavam e a ansiedade dos que partiam alheia ao cenário, permitindo-se invadir pela dor da perda configurada no pranto silencioso e solitário, até sentir uma mão tocando seu ombro.

-- Parece que adivinhei que te encontraria assim.

                Sua mais nova amiga de república, Silvana lhe olhava ternamente, sentando-se ao seu lado.

-- Silvana?! O que faz aqui?

-- A Carla me disse onde você estava indo e corri para tentar te impedir de fazer essa bobagem.
Parece que o destino se encarregou disso não foi?

                Natalia suspirou, acenando em acordo.

-- Fiz a bobagem de não ter decidido antes por aquilo meu coração gritava, cheguei tarde demais.

-- O coração nem sempre é bom conselheiro Natalia. Imagina o que sua família sentiria? Saber de uma vez só que a filha é lésbica e que partiu do Brasil praticamente fugida com uma mulher? A Diana vale isso tudo mesmo? Que você anule seus sonhos e os sonhos de seus pais para você enquanto ela torra o dinheiro do pai no exterior?

                Natalia se viu sem argumentos. Pensando friamente, o impacto de sua decisão não atingiria só a ela, o que certamente lhe causaria muita infelicidade em curto e longo prazo.

-- A Diana deve estar certa que não a amo, que não acredito em nós, vai me esquecer para sempre.

-- Exatamente o que você deve fazer: esquecê-la e seguir sua vida, se realmente o que vocês sentem é amor, o destino vai se encarregar de aproximá-las de novo. Quem sabe em outro tempo vocês estejam prontas uma para outra.

                Silvana abraçou Natalia contra seu peito consolando a jovem que explicitava o quão vulnerável estava, tentando se apegar ao que lhe restava, banindo para um recanto da sua alma a capacidade de amar e se entregar, rendida às leis de um destino cruel que lhe mostrou a força do amor e a proporção da perda dele, condenando-a injustamente a aceitação dos fatos e a necessidade de se recriar para renascer, arrancar sua carapaça frágil de menina do interior a duras penas, para dar lugar uma armadura inquebrável à prova de decepções e paixões que a fincava numa realidade cinza, bem diferente das cores que as lembranças do seu amor com Diana lhe reportava.


Tempus est optimus judex rerum omnium
O tempo é o melhor juiz de todas as coisas
        
Fim da primeira fase.

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