quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

LEIS DO DESTINO: 2ª FASE - Capítulo 11

2.11 Conventio est lex
Ajuste é lei, o que foi tratado deve ser cumprido

            Natalia chegou à loja que Fernando trabalhava em um shopping no centro da cidade e foi recebida pelo rapaz com a ironia de sempre:
- Vida de funcionário público é mesmo vida de marajá! Há essa hora passeando pelo shopping enquanto o proletariado está na labuta!
- Ai você está ficando velha hein bicha? Não ouvia esse palavra marajá desde o Collor de Melo!
- Se veio me ofender é melhor dar meia volta sua sapa chata!
            Fernando cochichou trincando os dentes.
- É melhor você me tratar direitinho, se não eu vou procurar aquela vendedora bonitinha para fazer minhas compras hoje.
- Ai não faz isso comigo Natinha! Eu preciso extrapolar minhas cotas de vendas! O cargo de subgerente está aberto, e eu preciso dessa promoção!
- Então trate de me atender como uma princesa! Preciso de um vestido maravilhoso, absolutamente irresistível, e preciso também de sua ajuda para meus planos de hoje à noite.
- Tá no período fértil né sapa? E está querendo minha sementinha pra eu te engravidar né? Olha não topo não! E nem se esforce, por que nenhum vestido escândalo dessa loja vai me fazer transar com você.
- Para de falar bobagem Fernando! Nem se eu estivesse desesperada eu teria um filho com você! Preciso de você para me ajudar em um plano pra eu fazer as pazes com a Duda.
- O que você fez com a poderosa? Você não chifrou a gata da Eduarda não né?
- Claro que não! Ela está chateada comigo, terminou tudo, mas não interessa o motivo. Vai ou não me ajudar?
- Tá... Só vou fazer isso por que quero assegurar que você não volte a namorar a Silvana!
- Vou precisar do auxilio do Emerson também...
            Natalia falou mais baixo, quase tímida.
- Olha lá Natalia, a Eduarda é chefe do meu thuthuco, não vai metê-lo em confusão!
- Pode deixar thuthuquinho!
            Natalia satirizou Fernando.
- Então vamos primeiro ao milagre: deixar você irresistível!
- Você é um péssimo vendedor sabia?
- Ah para de ser dramática sapa! Não sabe reconhecer uma biba com inveja dos seus peitos?
            Natalia não resistiu e gargalhou. Seus planos para reconquistar Eduarda corriam dentro do esperado. Emerson se prontificou a ajudar nos detalhes que Natalia pediu, e quando a noite chegou a promotora, vestida para “matar” com a devida produção e assessoria de Nando chegou a Lances para executar sua reconquista.
            Na cabine separada para os DJs amadores, Natalia esperou Eduarda aparecer para lhe enviar com o auxilio do DJ da noite o remix da música que continha exatamente o que ela sentia naquele momento, mas dessa vez não foi discreta como Eduarda fora nessa situação, nos telões da boate estava estampado em letras gigantes:
- “Escute porque essa música é para você”.
            Emerson se aproximou da chefe e apontou para quem comandava a pick-up naquele instante deixando Eduarda estupefata.



I Miss You - Eu Sinto Sua Falta

 

I thought that things like this
Get better with time
But I still need you
Why is that?
You're the only image in my mind
So I still see you, around

Pensei que coisas assim
Melhorassem com o tempo
Mas eu ainda preciso de você
Por que isso?

Você é a única imagem na minha mente
Então eu ainda vejo você, por todos os lados

I miss you
Like everyday
Wanna be with you
But you're away
I said I miss you
Missing you insane
But if I got with you,
Could it feel the same?

Eu sinto a sua falta
Todos os dias
Quero estar com você
Mas você está longe
Eu disse! Eu sinto a sua falta
Sinto sua falta insanamente
Mas se eu estivesse com você
Poderia sentir o mesmo?

Words don't ever seem to come up right
But I still mean them
Why is that?
It hurts my pride
to tell you how I feel
But I still need to
Why is that?
Palavras nunca parecem vir direito
Mas eu ainda as digo
Por que isso?
Fere meu orgulho
te dizer como me sinto
Mas eu ainda preciso
Por que isso?

I miss you
Like everyday
Wanna be with you
But you're away
I said I miss you
Missing you insane
But if I got with you
Could it feel the same?

Eu sinto a sua falta
Todos os dias
Quero estar com você
Mas você está longe
Eu disse! Eu sinto a sua falta
Sinto sua falta insanamente
Mas se eu estivesse com você
Poderia sentir o mesmo?

It don't matter who you are
It's so simple
I feel it
But it's everything
No matter who you love
It’s so simple
I feel it
But it's everything

Não me importa quem você é
É tão simples
Eu sinto isso
Mas é tudo
Não importa quem você ama
É tão simples
Eu sinto isso
Mas é tudo
( Beyoncé)


            Eduarda ainda atônita com a atitude da promotora, sempre tão comedida em manifestações de afeto em público, não conseguiu se mover ao final da música, mesmo vendo Natalia descer da cabine e andando na direção da área VIP.

- Duda a Natalia pediu que a encontrasse no seu escritório.

            Emerson avisou. Ainda tomada pelo susto da declaração que recebera da ex, Eduarda seguiu para seu escritório onde foi surpreendida mais uma vez. O espaço sóbrio de trabalho se transformara em um cenário romântico.

- Oi.

            Natalia surgiu diante de Eduarda trajando um vestido sensual, decotado, de tecido leve que apesar de não estar justo ao seu corpo, delineava suas formas incrivelmente delicadas e bem definidas. A empresária chegou a perder o fôlego com tal visão.

- Desculpe-me a invasão, mas, eu sabia que se te chamasse pra jantar você não toparia, então, trouxe para cá o jantar.

            Tentando disfarçar seu nervosismo, Natalia entregou um cálice de vinho para Eduarda que aceitou e respondeu em seguida balançando negativamente a cabeça.

- Natalia... Isso não está certo...

- Ei, aposto que você não jantou até agora e eu pedi comida do seu restaurante favorito! Janta comigo vai...

            Inebriada pelas surpresas da noite e pela presença estonteante de Natalia, Eduarda assentiu, acomodando-se à mesa cuidadosamente preparada pela ex-namorada.

            Durante o jantar, Natalia não economizou nos olhares de desejo para Eduarda que se esquivava comendo apressada, como se não pudesse resistir por muito tempo tal assédio sutil.

- Duda eu preparei essa noite para nós. Queria te mostrar o quanto te quero, e o quanto sinto sua falta.

            Natalia declarou ao final da refeição.

- Eu fico muito lisonjeada por você fazer isso por mim. Essa noite foi uma boa surpresa, mas não existe mais nós Natalia. Isso não muda o motivo pelo qual terminamos nosso namoro.

            Eduarda disse levantando-se da mesa.

- Duda eu sinto muito sua falta. Eu não tinha noção do quanto gostava de você até você terminar comigo. Eu sei que você tem todos os motivos pra desistir de mim, eu poderia também desistir de você, de nós, eu poderia me acostumar com meus dias sem seu sorriso, sem sua voz rouca ao telefone cheia de sono me fazendo dormir quando estou com insônia, poderia me acostumar a não ter mais seus pés roçando nas minhas pernas pra se aquecer, sem seus olhos me encarando com uma paixão que me deixa tonta... Mas, eu não quero me acostumar com isso. Eu quero você na minha vida, eu quero outra chance com você. E eu estou sendo o mais clara e objetiva que posso, já que sempre foi assim que agiu comigo, eu estou agindo da mesma forma, e vou direto ao que quero: quero você!

            Natalia não deu tempo para Eduarda se refazer da emoção de ouvir as palavras carregadas de sentimento da morena. Encaixou seu corpo no corpo de Duda, deixando que seu perfume entorpecesse os sentidos da loira, aquele aroma de óleo de pitanga que exalava da pele reluzente e morena de Natalia, com a maciez e sensualidade que só um corpo feminino poderia transcender.

            Eduarda não teve forças para lutar. O corpo quente de Natalia envolvendo o seu, e os movimentos seguros da promotora, arrancando-lhe as peças de roupa, suas e dela explicitando seu desejo:

- Ainda preciso ser mais clara?

            Natalia disse exibindo seu corpo nu, puxando para si o corpo de Duda e foi a vez desta chamar para si o domínio da situação, jogando o corpo de Natalia contra a parede e percorrendo faminta com sua boca, cada pedaço daquela pele morena deliciosamente eriçada.

*****

            Diana fechou sua maleta imediatamente para esconder o envelope que surrupiara do escritório, enquanto Acrisio a encarava.

- Então, vai me dizer o que faz aqui? – Acrisio inquiriu.

- Vim ver com meus próprios olhos o que o Ministério Público denunciou.

- Ah, e por falar em Ministério Público, você sabe quem é promotora filha da mãe que está por trás dessas denúncias?

            Diana empalideceu e não respondeu.

- Sua amiguinha, aquela que eu salvei daquele cabra safado, Natalia o nome dela não é?

- Eu fiquei sabendo.

- Quem sabe você pudesse ajudar o papai nisso. Fazer essa menina me deixar em paz...

- Agora o senhor é piadista?

- O que ia lhe custar? Vocês eram tão unidas...

- Nós nos amávamos, mas você tratou de nos separar, e agora quer que eu a procure pra convencê-la a fazer vista grossa no seu processo?

- Você entendeu exatamente o que quero filhinha, use das suas habilidades...

- Você me enoja sabia?

            Diana pegou sua mala e fez menção de sair do quarto quando Acrisio a interpelou:

- É melhor você usar seus métodos com ela do que eu usar os meus não acha?

- Escuta aqui senhor Acrisio Toledo: não ouse tocar em um fio de cabelo dela, não ouse tirar a paz da 
Natalia prejudicando o trabalho dela ou a família dela. Respeite o acordo que fez comigo sobre não fazer nada contra ela e a família dela se eu fizesse o que você me pediu, cumpri minha parte, não é justo que você venha de novo com essa chantagem!

- Tire o dedo da minha cara mocinha! Sou seu pai! Acha que pode gritar comigo ou me ditar ordens?

- Só estou cobrando senhor Acrisio a sua palavra. O que foi tratado entre nós deve ser cumprido. O senhor não vai me querer como inimiga, isso eu garanto.

- Inimiga? Mas o que é isso Diana? Uma coisa é você me dizer despautérios no calor da emoção, outra é você insinuar uma guerra entre nós. Somos pai e filha!

- Aja ao menos uma vez como meu pai então e atenda ao meu pedido, deixe a Natalia e a família dela em paz.

- Você está me pedindo pra que eu fique de braços cruzados esperando ser processado e preso?

- Se o senhor for culpado das acusações esse é o certo.

- Agora quem está fazendo piada aqui?

- Pai, se o senhor é culpado, conserte as coisas, legalize o trabalho desses homens, dê-lhes seus direitos, o senhor não percebe que assim ganha muito mais? Ganha a admiração desses homens e das famílias deles por que o senhor os deu um trabalho digno.

- Diana minha filha você não sabe quem são esses homens! São ex- detentos, são retirantes, ninguém lhes daria oportunidade, estou-lhes dando um teto e comida, em troca eles trabalham para mim.

- Pai! São seres humanos! Trabalhadores que vieram para cá acreditando que teriam uma oportunidade e viraram escravos!

- Não exagere Diana, não são escravos, só estou garantindo que eles paguem o que me devem, acha que é barato trazer esse monte de morto de fome do fim do mundos que eles vem e mantê-los? Quando quitarem a dívida poderão escolher se ficam ou não.

- Meu Deus! Parece o Barão de Ararúna falando!

- Você está há muito tempo fora do Brasil, não sabe como as coisas funcionam. A maioria desses homens estão aqui porque querem, ou demais estão porque não tem pra onde ir. São uns pobres coitados que eu os acolhi.

- Pai pelo amor de Deus! Esses pobres coitados tem direitos, tem famílias esperando pelo dinheiro do trabalho deles, ou que vivem aflitos por notícias que nunca chegam. Vamos regularizar a situação deles, eu fico aqui para ajudar o senhor nisso, quem sabe isso diminua a pena e a multa quando o processo for julgado...

- Ah! Muito generoso de sua parte ficar aqui para me dar um prejuízo e assistir minha prisão e minha ruína, dispenso sua presteza Diana, volte pro estrangeiro pra bater suas fotos e me deixe resolver as coisas do meu jeito já que você não quer colaborar comigo!

- É sua última palavra?

- Já que você não quer fazer nada por essa família, é melhor que fique longe para não atrapalhar mesmo.

- Eu tentei pai, mas o senhor não me deixou alternativa.

            Com o ultimato anulado pela petulância e pela conduta inescrupulosa de Acrisio, Diana concluiu que só lhe restava alertar pessoalmente Natalia, e lhe entregar o material que poderia ajudar no processo contra seu pai, partiu da Verdes Canaviais diretamente para capital para o encontro com seu passado mais bonito e mais dolorido também.

LEIS DO DESTINO: 1ª FASE - capítulos 38 e 39

CAPÍTULO 38: Jus agendi
Direito de agir, de proceder em juízo. 


                Carla fez festa quando Natalia comunicou que sua mudança para a república das meninas estava confirmada.

-- Ai amiga fofinha, que máximo! Quando você vem?

-- Preciso de um tempinho para fazer minhas malas, encaixotar tudo, os meninos vão me ajudar no final de semana. – Natalia respondeu.

-- Os meninos hein... Não sei qual dos dois está mais caído por você.

                Natalia ficou sem graça, o constrangimento acerca desse tema era evidente, e o pior: a situação estava longe de ser resolvida, e mesmo a contragosto, se deixava enlaçar naquela trama de desencontros, equívocos, mentiras, omissões e o pior: mágoas e decepções.

-- Eles são ótimos.

                Quando Natalia se encaminhava para o refeitório da faculdade para almoçar acompanhada de Carla, sua futura roommate foi abordada por Lucas.

-- Nossa você não liga mais seu celular?

-- Está descarregado e acho que perdi o carregador. O que houve? Algum problema com o Pedro?

-- Acalme-se, seu namorado está bem. A urgência é alimentar. – Lucas brincou.

-- Não entendi.

-- Minha mãe fez um rango de primeira, e pediu que te chamasse para almoçar lá na república conosco.

-- Ah já me sinto convidada também! – Carla comentou animada.

-- Vamos Natalia por que dona Laura se recusa a servir o almoço separadamente e a galera já está faminta!

                Natalia apenas sorriu e acenou em acordo.

*********

-- Mãe, eu não encontrei a Natalia aqui na faculdade, ela sempre almoça aqui, mas não está no refeitório, e o celular dela continua desligado desde ontem, vamos almoçar, depois passamos na casa dela, que é muito longe daqui. – Diana disse frustrada á Alice.

-- Já que estamos aqui, o Pedro mora perto não? Você me disse que ele já estava em casa, quero visitá-lo.

-- Tudo bem mãe, mas, a senhora sabe que ele não vai se lembrar da senhora né?

-- Vai lembrar se daqui a algum tempo que eu fui desejar a recuperação da saúde dele pessoalmente. Sou grata a ele pelo que fizeram por você.

-- Tá bom dona argumentos incontestáveis, vamos lá!

                Diana e Alice seguiram para a Álibi, como íntima dos moradores da república, a loirinha entrou sem fazer cerimônia, direto para a cozinha, testemunhando a cena: Natalia ajudando Laura a servir o almoço, enquanto todos riam das histórias do Lucas sobre suas peraltices quando criança na cidade natal. Diana permaneceu em silêncio ao lado de sua mãe, ficando imperceptível a todos distraídos com o clima familiar, por isso, ainda foi obrigada a ver, Natalia sentar-se ao lado de Pedro sendo receptiva aos carinhos e sorrisos dele.

                O olhar fixo da filha naquela cena tocou Alice, que discretamente pigarreou chamando a atenção:

-- A porta estava aberta, entramos sem bater, desculpem-nos.

                A reação de Laura foi instantânea:

-- Diana minha querida! Chegou na hora certa, almoce conosco!

-- Obrigada Laura, eu... Na verdade, a minha mãe... – Diana completamente atordoada gaguejou.

-- Perdoe minha filha, ela não costumava ser tão tímida quando morava comigo. Muito prazer, Alice, mãe da Diana. Tenho certeza que a comida está deliciosa, o cheiro estava na sala já, mas, infelizmente temos que recusar. Passamos aqui só por insistência minha de visitar o Pedro.

-- Nossa! Diana sua mãe é linda!

                Laura ajeitou os cabelos e limpou as mãos no avental, em seguida pediu uma cadeira para acomodar a visita.

-- Muito gentil de parte, obrigada, dona...

-- Ai que mal educada eu sou! Desculpe-me, Laura, mãe de Pedro.

-- O prazer é meu dona Laura.

-- Ai, esquece esse dona, me chame de Laura! E faço questão que almocem conosco. A comida é bem simples, mas é o prato preferido dos meus filhos.

-- Laura muito obrigada. Mas, estamos mesmo de passagem, retorno logo mais a Brasília e ainda tenho alguns assuntos para resolver com minha filha.

-- Vou ficar ofendida! Vocês vão ter que parar para almoçar não é? Não me façam essa desfeita.

-- Diana senta aí vai, dona Alice, perdoe-me não me lembrar da senhora, mas já me sinto íntimo, por que sua filha é a única que minha memória reconhece... Por favor, fique, almoce conosco. – Pedro interviu.

                A argumentação de Alice não teria efeito sobre Laura. Mãe e filha sentaram-se à mesa e Laura as serviu imediatamente. O desconforto de Diana naquela cadeira que a maldade do acaso a fez ficar de frente para o novo casal: Natalia e Pedro, só era explicável se a loirinha estivesse sentada sobre dezenas de pregos. Alice tentava distrair a filha com seu cuidado materno, como se chamasse a atenção de Diana para a necessidade dela disfarçar sua tristeza ao encarar o amigo e a ex-namorada agora juntos.

                Natalia ao contrário do que aparentava experimentava um sentimento que sufocava seu peito. Controlava o impulso de afastar as mãos e os lábios de Pedro do seu rosto, da sua mão e do seu ombro. Lutava contra a vontade de raptar Diana dali e abraçá-la pondo um fim naquele pesadelo.

                O almoço parecia interminável para ambas, mas, Diana foi a primeira a cruzar os talheres sobre o prato indicando que acabara a refeição. Olhou para Alice praticamente suplicando que fizesse o mesmo para fugir dali. Entendendo a situação da filha, Alice abriu mão das regras de etiqueta e anunciou:

-- Como imaginei, seu almoço estava divino Laura, quem dera eu soubesse cozinhar como você! Mas, infelizmente sou obrigada a ser indelicada e sair antes da sobremesa.

-- Mas Alice, a torta de abacaxi da minha mãe é a mais conhecida da nossa cidade, é perfeita! – Lucas acrescentou.

-- Não duvido meu querido. Mas, não estou a passeio em São Paulo, adiei meus compromissos por mais um dia porque minha filha precisava de mim, por isso precisamos ir agora.

                Alice fez sinal para Diana e as duas se levantaram. Sob o olhar atento de Natalia, Diana se afastou da cozinha enquanto Laura insistia para que Alice levasse um pedaço da sobremesa para comer no caminho, numa atitude típica de uma dona-de-casa gentil do interior.

-- Pedro meu querido, desejo que você se recupere o quanto antes, se precisar de algo, fale com Diana, teremos prazer em ajudar. – Alice foi delicada.

-- Obrigada Alice, foi muito gentil de sua parte essa visita. - Pedro respondeu abraçando Alice.


-- E quanto a você minha linda, eu espero rever você em outra circunstância menos conturbada.

                Alice se dirigiu à Natalia com uma declaração cheia de mensagens nas entrelinhas. Natalia não conseguiu responder, deu um sorriso amarelo.

-- As coisas vão se acalmar Alice, Natalia vai morar praticamente aqui vizinho, vai poder ajudar meu Pedro a se lembrar das coisas aos poucos, e os meninos estarão sempre perto para protegê-la também desse desmiolado criminoso que a atacou.

                Com muita insistência, a mãe de Diana foi praticamente obrigada a se sentar novamente e provar a tal sobremesa na sala da república. A animação dos meninos da república para raspar as panelas causou uma algazarra na cozinha, distração suficiente para Natalia se afastar de Pedro, sentia-se sufocada por ele.

                Andou pelo corredor da república engolindo o choro pronto para eclodir quando foi puxada para um pequeno quarto usado pelos meninos como sala de estudo.

-- Diana!

-- Fala baixo...

                Diana colocou a mão sobre os lábios de Natalia.

-- Diana eu preciso te explicar...

-- Explicar o que? Que bastou um dia que terminamos e você já assumiu o namoro com o Pedro e já vai morar aqui vizinho a ele?

-- Eu ia te contar...

-- Se eu não tivesse vindo aqui e ouvido e visto com meus próprios olhos não acreditaria nisso.

-- Por que você está falando assim? Foi você que terminou tudo! Você que disse que nosso namoro não valia tanto risco. Você me empurrou pros braços do Pedro.

-- Não foi preciso usar muita força não é? Você foi fácil...

                Natalia levantou a mão para Diana que foi ágil segurando-a antes que atingisse seu rosto.

-- Eu pensei que ainda tivéssemos uma chance, repensei o que te falei, mas hoje foi a prova que eu estava certa.


-- Não esqueça que foi você não quis assumir nossa relação, isso não estaria acontecendo se você não nos transformasse em um segredo sujo Diana.

                Diana apertou os olhos e disse:

-- Muito bom ficar aí nessa pose só me acusando não é? Na hora que foi preciso agir, você recuou.

-- Você não tem esse direito Diana... Não tem...

                A voz embargada de Natalia desarmou Diana. Soltou o braço de Natalia que continuava no ar, e encarou a ex-namorada.

-- Quem não tinha esse direito era você Natalia. Não tinha o direito de invadir minha vida assim, me tirar todas as defesas, roubar todos os meus pensamentos pra você, ocupar todos os espaços do meu corpo, virar minha cabeça pelo avesso, transformar meu desejo e depois me fazer a mais insegura das mulheres quando aceita sem luta eu sair da sua vida.

                Natalia com o rosto banhado no seu pranto colheu a lágrima solitária que escorria pela face de Diana, e avançou na sua boca com paixão, arrancando um beijo sôfrego, emocionado, necessário, imperativo.

************

                O beijo se prolongou até Diana afastar Natalia.

-- Nossos problemas não se resolvem com um beijo Natalia.

-- Fica tudo tão claro, tão fácil quando estamos assim...

                Natalia colou a testa nos lábios de Diana desejando estender aquele momento.

-- Não será fácil, mas se você quer mesmo meter a cara e ficar comigo, então vem comigo. Acaba com essa farsa agora, assume o que sente por mim pra todos que estão aqui, esquece isso de morar com as meninas e volta pra minha casa pra ser nossa casa de novo.

                Natalia experimentou uma dubiedade cruel de sentimentos, por um lado a proposta de Diana deixava claro que a loirinha a queria, que o discurso do término do namoro era falso, no entanto, as palavras carregadas de preconceito das suas colegas, ecoavam em sua cabeça e isso foi decisivo na sua reação.

-- Diana nós não podemos ser irresponsáveis assim. O Pedro ele precisa...

-- Nat, o Pedro precisa de nosso apoio, não precisa ser feito de idiota. Você acha que foi fácil pra mim te ver aqui, como a nora perfeita da Laura, vendo o Pedro te beijar, e você corresponder aos carinhos dele... Natalia ele pode demorar meses para recuperar a memória, como será até isso acontecer? Você vai pra cama também com ele?

-- Claro que não!

-- Pode me dizer como você vai se esquivar todo tempo? Especialmente morando vizinho a casa dele?

-- Eu não pensei nisso... Eu...

-- Natalia eu também não quero ser seu segredinho sujo, minha intenção foi sempre proteger você, nosso namoro e claro me poupar de mais exposições. Mas, você não está tendo o mesmo cuidado.

-- Di me dá um tempo pra resolver isso com o Pedro, mas não me deixa...

-- Vou te dar o tempo pra você descobrir o que quer, vou me afastar, não sou obrigada a testemunhar essa farsa e principalmente me machucar vendo você namorar meu amigo. Até você resolver essa confusão, vou seguir minha vida, me procure quando tiver alguma decisão em relação a nós, sabe como me encontrar.

                Diana disse num tom frustrado, com os olhos marejados. Natalia a seguiu quando a ex-namorada abriu a porta e a segurou pela mão no corredor quando foram flagradas por Lucas.

-- O que está acontecendo aqui?

-- Seu guarda-costas te encontrou Natalia. – Diana satirizou.

-- Perdeu todo escrúpulo não é Diana? Resolveu atacar a namorada do meu irmão aqui nas fuças dele?

-- Ah! A namorada do seu irmão... Ouviu isso Natalia? Você que tanto aspira independência agora tem namorado, cunhado e sogra pra mandarem na sua vida. – Diana escachou a ironia.

-- Diana eu não pensei que você fosse uma perdedora tão recalcada. – Lucas falou irritado.

-- Vocês dois parem já com isso! – Natalia berrou.

                Diana e Lucas se encararam furiosos.

-- Lucas, nem eu, nem Diana devemos satisfações a você.

-- Mas, Natalia...

-- Diana, por favor, pra que essas provocações? Eu sei que a amizade do Lucas é tão importante para você quanto a do Pedro!

                Como meninos levados, de relações cortadas, os dois permaneceram hostis.

-- Natalia, você vai voltar para faculdade? Eu vou com você, pra te proteger no caso do Sandro tentar mais alguma coisa – Lucas disse.

-- Como se isso fosse impedi-lo. – Diana murmurou.

                Natalia franziu a testa para Diana censurando a provocação.

-- Ah Natalia, se você quiser dispensar os serviços de segurança, pode fazer isso sem medo, o Sandro já foi neutralizado.

-- Como assim? – Natalia perguntou curiosa.

-- Tive uma ideia e meu pai deu um jeito de viabilizar.

-- Ah claro, nada que o senador Acrisio não consiga não é? Arrancou os olhos do Sandro, ou o enterrou em uma vala no Mato Grosso? – Lucas insistiu nas provocações.

-- Ele bem que merecia, mas, fui mais sutil, não resolvo coisas na força bruta. O Sandro está fora do Brasil, o pai o mandou para morar lá.

                Natalia sorriu aliviada.

-- Obrigada Di, e agradeça ao seu pai por mim.

                Diana apenas acenou em acordo, pouco receptiva.

-- Preciso ir. Natalia, você sabe como me achar se precisar.

                Diana deixou a Álibi sem olhar para trás. Alice observou com atenção todos os gestos e olhares da filha durante o resto do dia, lendo o que se passava em sua alma. Diana evitou conversas com a mãe, a presença constante de Alda facilitou a esquiva da loirinha. No saguão de Congonhas, Diana finalmente desabafou:

-- Mãe... Para de me olhar assim, a senhora está me assustando! Fala logo o que a senhora está mastigando desde que saímos da república.

-- Eu vou falar Dianinha, estava apenas escolhendo as melhores palavras pra dizer isso, por que você sempre me diz que nesse mundo homossexual é tudo diferente...

-- Tá mãezinha, então diz, está na primeira chamada do seu vôo.

-- Não faça nada sem ter certeza que Natália fará exatamente o mesmo, ou pelo menos que ela queira o mesmo que você.

-- Você acha que ela não gosta de mim?

-- Eu tenho certeza que sim minha querida! Que vocês se gostam é óbvio. Mas não gostei do que vi nesse almoço. Vi uma menina confusa, perdida, não tenho certeza que essa menina teria coragem o suficiente de lutar por você como você está disposta a fazer por ela. Pra ela a situação está cômoda, me parece que ela é a mocinha inocente, salva por seu herói, protegida pela família do suposto namorado e você é aquela que assedia e ameaça esse conto de fadas. E principalmente não gostei do que vi em você minha filha: acuada, apagada. Você abriu mão da Natalia e mesmo assim o Lucas te hostiliza, acha que não percebi que ele sequer te cumprimentou?

-- Mãe o Lucas está magoado, ele é muito passional...

-- Você também é, e, além disso, é cheia de luz, você é a menina mais popular dessa faculdade e não precisou nem do nome do seu pai e nem da sua sexualidade pra isso. Tenho certeza que foi por essa mulher cheia de garra, paixão, alegria que a Natalia se apaixonou, mostre isso de novo pra ela, pra que ela não tenha dúvidas de quem ela precisa estar ao lado.
               
                A sacudida que a mãe deu acordou Diana para uma nova perspectiva: tornar-se irresistível para Natalia. Como se despertada de um enfadonho sonho, a loirinha se deu conta dos dias difíceis que atravessaram a transformando em uma garota dramática que esconderam seu caráter forte e sua energia cativante. Era hora agir, por mais que existisse nobreza no fato de Natalia estar com Pedro para ajudá-lo em retribuição ao seu ato de bravura e ela mesma ter considerado abrir mão da namorada pelo mesmo motivo, se recusava a perder assim a namorada, reconheceu o seu direito de lutar.

                Imbuída desse sentimento, Diana tratou de esquematizar sua agenda de trabalho na boate na qual trabalhava como DJ, e aceitou o desafio de fazer seu primeiro ensaio fotográfico profissional, o cenário: a própria faculdade. A revista tinha a proposta de um editorial alternativo, mostrando a moda que os universitários adotavam as tendências, estilos, e para tanto a USP era a melhor alternativa, considerando que era a maior do estado.

**************

                Morando na república das meninas, Natalia teve que dividir o quarto com Carla, já que não havia quartos disponíveis até o final do semestre, quando duas meninas se formavam e deixariam a república.

                Sua rotina mudara, mas, estava bem menos cansativa do que no começo do semestre, morando tão perto do campus, se dava ao luxo de estudar em casa depois das aulas, os estudos agora além de prioritários, era seu principal refúgio para não se desesperar com a ausência de Diana em sua vida além de se transformar na desculpa perfeita para justificar a pouca atenção dada a Pedro.

                As provas do bimestre absorveram Natalia completamente. Para aumentar a proporção da falta que sentia de Diana, só a via nas aulas de IED, palco das frequentes discussões entre a veterana e a professora Dorothea, não pode deixar de se orgulhar do quão segura a ex-namorada estava do conteúdo da disciplina e o quão afiada estavam suas respostas que por pouco não causavam a explosão das bochechas coradas da magistrada.

                Nos outros momentos que encontrava Diana pela faculdade, sentia seu corpo clamar fisicamente pela loirinha, que de uma forma inexplicável, parecia radiante e sempre envolvida em telefonemas, conversas pelos corredores, caminhando apressadamente, sendo frequentes seus atrasos às aulas. Quando era flagrada com os olhos fixos nela, Diana não fugia, pelo contrário se deixava ser lida por Natalia, flertava descaradamente o que assustava Natalia tão atormentada pelos comentários homofóbicos das colegas.

                Por diversas vezes Natalia pensou em procurar Diana, que manteve a decisão de se manter afastada, mas, ainda confusa, não tinha a resposta que a loirinha cobrara, o que a deixava exatamente no mesmo ponto de discussão.

                Pedro por sua vez, não poupava carinho e atenção com Natalia. Quando liberado pelos médicos e terapeuta, voltou a frequentar as aulas na classe do irmão, como ouvinte já que estava um semestre adiantado de Lucas, na tentativa de recobrar sua memória gradualmente. O esforço de Pedro para agradar Natalia em cada detalhe, estava mexendo com a moça, justo em um momento vulnerável como ela estava.

-- Oi gatinha. Você me falou que estava sem o carregador do seu celular há dias... Trouxe um para você, a procedência é meio duvidosa, comprei na 25 de março, mas, acho que dá pra quebrar o galho.

-- Ai Pedro você é um anjo! Nem sei como te agradecer, depois que fiquei sem celular me pergunto como vivi tanto tempo sem um! E com essas provas, fiquei completamente sem tempo de procurar um novo para comprar.

-- Um beijo já está bom pra começar.

                Natalia sorriu e deu um beijo na bochecha de Pedro que rapidamente desviou a boca para os lábios na menina.

-- Assim é bem melhor... – Pedro disse sorrindo acariciando os cabelos de Natalia. – E então, já tem os resultados das provas?

-- Aff, finalmente acabou a agonia, nesse primeiro bimestre me dei bem, graças a Deus!

-- Eu tinha certeza que você se sairia bem. Olha, o Lucas comentou que a galera vai se reunir no Botecão pra festejar o final das provas, vamos?

-- Mas a festa de comemoração não ia ser na Álibi no final de semana?

-- Essa é outra festa, a oficial, tradicional segundo os meninos.

-- Vocês fazem festa por tudo! – Natalia sorriu.

-- Tem gente que vai comemorar o sucesso das boas notas, outros vão pra esquecer o fiasco dos zeros no histórico escolar.

-- Pedro eu não sei se quero ir... Estou muito cansada.

-- Fica só um tempinho vai... Seu namorado de cabeça quebrada está carente...

                Pedro fez bico, Natalia não conteve o riso com a expressão do rapaz e se rendeu. Enquanto caminhavam pelo campus a caminho da saída, percebeu uma movimentação incomum de pessoas no pátio, não eram estudantes, nem muito menos aquela parafernália de equipamentos era acadêmica: tripés, flashes, lâmpadas de todos os tipos, rebatedores, sombrinhas difusoras de luz, além de camarins improvisados com maquiadores e cabeleireiros cercando modelos glamorosos.

-- Ué, o que está acontecendo ali? – Pedro indagou.

                Natalia gesticulou a mesma curiosidade, perto deles uma multidão de alunos bisbilhotavam e especulavam a razão daquela produção fashion em pleno universo acadêmico. A curiosidade só aumentou quando Diana surgiu devidamente paramentada, distribuindo simpatia para a equipe de assistentes, e delicadeza com os modelos, apressando a todos ao mesmo tempo em que os animava a iniciar a sessão de fotos.

-- Vamo lá galera! Nossa melhor luz é nesse horário. Meninas vocês já estão lindas! Chega de produção! Rapazes, por favor, eu vou começar com vocês.

                Diana nem parecia ser novata no cenário. Estava completamente à vontade entre luzes e modelos. Começou a clicar freneticamente intercalando com orientações aos modelos cheias de humor, denotando o clima descontraído fundamental para aquela sessão.

-- Aquela é a Diana?! – Pedro perguntou apertando os olhos.

                Natalia não respondeu, manteve-se vigiando cada passo, cada sorriso, cada clique de sua ex-namorada. Pedro não se conteve e perguntou a um dos assistentes que passava carregando uma pilha de garrafas de água.

-- Essas fotos são pra alguma revista?

-- Sim, são.

-- Você pode me dizer qual?

-- Revista Vogue, edição brasileira.

                O queixo de Pedro quase caiu.

-- Caraca mano! Ela conseguiu! A Diana é foda velho!

                Natália estava igualmente espantada, feliz pela conquista de Diana, mas estranhamente triste por não participar desse momento tão importante da vida dela.

-- A Di manda muito bem fotografando. Gatinha não estou viajando na minha memória não né? Essa revista é famosa não é?

-- É sim.

                Natalia confirmou tentando esconder sua frustração por estar excluída desse marco na carreira da mulher que amava. Pedro não segurou a empolgação e acenou feito louco para Diana, que estava concentrada arrumando detalhes nas roupas de uma modelo.

-- Diana! – Pedro gritou.

                Com a presença de espírito típica, Diana não se constrangeu, acenou de volta para o amigo com um enorme sorriso e ouviu da modelo:

-- Já tem fã clube Diana?

-- Sabe como é ninguém resiste ao meu charme.

-- Sei difícil mesmo resistir a um charme como o seu...

                Manuela, a modelo de traços marcantes, lábios carnudos e olhar predador, ajeitou as mechas dos seus cabelos Chanel enquanto encarava a fotógrafa com apetite o suficiente para fazer Diana ruborizar. O flerte não passou despercebido por Natalia, possessa de ciúme apertou a mão de Pedro involuntariamente.

-- Au! Natalia?!

                Chamada à razão pela interjeição de Pedro, Natalia se desculpou.

-- Tudo bem, nossa você tem força heim? – Pedro sacudiu a mão. – Estava pensando em chamar a Diana pra ir ao Botecão, mas acho que ela vai demorar por aqui, e já deve ter outros planos...

                Pedro supôs maliciosamente ao observar a modelo mexendo nos brincos de Diana acintosamente forçando uma aproximação. Natalia demonstrou sua mudança de humor drasticamente, saiu pelo campus puxando Pedro pela mão.

-- Já cansei, vamos sair daqui! Quero tequila!

***********

                A equipe festejou o final da sessão quando a noite já avançava ao final do turno da faculdade. Aplaudindo a estreia de Diana como fotógrafa. O editor da revista, responsável pela chance da loirinha nesse trabalho, foi um dos que a cumprimentou, satisfeito com o que assistiu nos bastidores.

-- Bom saber que meu faro não me engana. Parabéns garota! Quem diria que as fotos de Bar-Mitzvah iria te abrir as portas não é?
- Nossa... Nunca imaginava isso mesmo. Muito obrigada pela oportunidade Fred.
                Diana abraçou o editor com uma gratidão sincera.

-- Não precisa agradecer você não me pediu nada, e é bom trabalhar com quem gosta do que faz e dá o seu melhor. Você terá um futuro brilhante na fotografia minha querida, tem olho clínico, tem time, sensibilidade, energia equilibrada pra deixar qualquer equipe a vontade e principalmente, tem liderança, isso é fundamental.

-- Ouvir isso de você é o melhor pagamento do mundo.

-- Então posso guardar esse cheque? – Fred brincou.

-- Já vai me pagar? Mas ainda não terminei... Nem selecionei as fotos que fiz no estúdio ainda.

-- O material está excelente, dei uma olhada pelo computador. Confio na sua responsabilidade de me entregar no prazo.

-- Pode confiar.

-- Diana, mais uma coisa: você tem talento nato, mas precisa ser lapidado, você precisa investir nisso, não perca mais tempo. O Brasil tem ótimos profissionais, a moda está crescendo, e esse é o ramo que impulsiona a fotografia, mas, você tem talento e condições suficientes para aprender com os melhores, e os melhores estão fora do Brasil por enquanto.

-- Eu sei Fred, está nos meus planos voltar a morar fora do Brasil para investir em fotografia, mas pra isso tenho questões a encerrar, por exemplo, entregar meu diploma nas mãos do meu pai, gritar minha independência, devo isso a minha mãe.

-- Pois apresse esse grito, esses planos, no que depender de mim, conte comigo.

-- Muito obrigada Fred. Apesar de meus planos em fotografia não estarem ligados à moda, eu descobri um prazer maravilhoso nesse trabalho.

-- Não seja preconceituosa com a moda, não é porque a fotografia da moda tem um pano de fundo comercial que ela deixa de ser arte, o bom artista compõe obras-primas com o que a vida lhe dá, depende de você a diferença entre um álbum e uma galeria.

                Diana sorriu, e guardou consigo as palavras experientes de incentivo do editor. Depois de guardar seu equipamento, alguns membros da equipe e modelos se reuniram em volta de Diana comentando:

-- E aí estreante? Onde vamos comemorar o sucesso da sessão?

-- Nossa, nem sei, alguém tem sugestão? – Diana respondeu.

-- Em plena segunda-feira? O máximo que encontraremos é uma cantina ou churrascaria!

-- Segunda-feira... Tenho o lugar perfeito! – Diana disse misteriosa.

-- Podemos saber que lugar perfeito é esse?

-- Confiem em mim e me sigam.

-- Eu confio completamente em você, e não só vou te seguir, vou do seu lado.

                Manuela se precipitou em convidar-se para ser a companhia de Diana. A loirinha apenas consentiu, incomodada pelo assédio franco da modelo, não só pelo fato de não se sentir livre para estar com outras mulheres com Natalia no seu pensamento, mas, principalmente por se sentir perigosamente atraída pela sensualidade desconcertante de Manuela. Convidou outros da equipe para ir no mesmo carro, a fim de evitar ficar a sós com a modelo. Meia hora depois, estacionou a frente do Mess, para mais uma noite da ressaca com As anfíbias.

****************************

                Natália chegou ao Botecão acompanhada de Pedro, e não tardou a entrar no ritual das cervejas antes da primeira dose de tequila. Apesar de estranhar a sede por álcool da suposta namorada, Pedro não a impediu, e mesmo que tentasse, as suas novas roommates estavam empolgadas demais com os jogos de vira-copos para permitir que alguém interferisse.

                A primeira dose chegou, depois a segunda, e apenas poucos ficaram para a terceira. As meninas e meninos das repúblicas irmãs não davam sinais que cederiam à embriaguez, até mesmo Pedro, contrariando as ordens médicas, deixava evidente o quão afetado já estava pela bebida.

                O excesso de álcool acendeu a libido do rapaz que deixara a timidez de lado para ousar beijos mais salientes e carícias menos comportadas com Natalia, que se rendia como se seu corpo estivesse dormente às investidas de Pedro.

                Se os estudantes não cessavam a bebedeira, o dono do bar fez isso. Sob protestos os universitários caminharam para casa, alguns trocando as pernas, outros riam, outros cantavam, promovendo o desfile dos diversos tipos de bêbado: os chorões, os ricos, os valentes, os saudosistas, os sentimentais...

                Na entrada da república das meninas, Pedro insistia para Natalia não entrar em casa.

-- Fica só mais um pouquinho gatinha...

                O rapaz parecia ter se transformado bruscamente em um polvo, apalpando e cercando Natalia de todas as formas, pressionando-a contra a porta, até esta se abrir. Obstinado Pedro continuou suas investidas, caindo sobre a moça no sofá da sala, beijando seu pescoço, seus lábios, e ofegante demonstrava sua excitação avançando sobre os seios de Natalia que em vão tentava se esquivar. Sem forças suficientes para fugir da volúpia crescente do rapaz, Natalia só repetia:

-- Pedro para... Chega, não quero...

                Pedro ignorava os apelos de Natalia, a ponto de despir com vivacidade a colo da moça.

-- Pedro chega, já disse: não quero!

                Sentindo o genital de o rapaz erigir-se, Natalia foi tomada de pânico ao notar que o rapaz lhe segurava com vigor.

-- Deixa disso gatinha, sei que você me quer... Estou louco de tesão por você, esse seu corpo, esses peitos...

                Pedro alcançou os seios de Natalia com a boca, lambendo-os avidamente. Natalia que antes tentava se defender, agora deixava o choro de pânico vir à tona.

-- Calma gatinha vou te dar muito carinho, te dar muito prazer...

                Natalia virava o rosto rejeitando aquele contato, as lágrimas escorreram por sua face e com mais força na voz disse:

-- Pedro me larga! Não quero!

                Para sua sorte, Carla assustada saiu do quarto, acendeu a luz da sala e berrou:

-- Que merda é essa Pedro?

                A moça apesar de embriagada empurrou o rapaz com violência, o que o fez se desequilibrar e cair no chão.

-- Surtou cara? Dando uma de babaca agora?!

                Carla berrava, enquanto ajudava Natalia a se sentar, ajudando a amiga se cobrir.

-- Desculpa... Eu me deixei levar...

-- Rapa pé daqui Pedro! Vai, se manda! – Carla continuou berrando.

-- Natalia desculpa...

-- Pedro não é hora pra se desculpar, vai embora agora!

                Como que despertado de um transe, Pedro saiu envergonhado da república, enquanto Carla abraçava Natalia, que chorava compulsivamente, se sentindo suja, no seu pensamento um só desejo: estar nos braços, no colo de Diana.

**********************

                Ao entrarem no Mess, a equipe que trabalhou com Diana se empolgou.

-- Mano que lugar é esse?!

-- Adooorei! Diana você é show!

-- Parece que entrei em um portal, e saí de São Paulo direto pra Europa!

-- Vocês estão parecendo caipiras na cidade grande! Vamos deixar de enrolar e vamos ao que interessa: beber!

                Diana brincou, partindo em direção ao bar.

-- John!

-- Ow! Olha quem voltou!

-- Voltei e com uma tropa! – Diana apontou para os demais.

-- Todos de ressaca?

-- Ressaca de trabalho! Um fim de semana inteiro e o dia todo de hoje, nós merecemos a melhor bebida!

-- Poder deixar!

                O barman e dono do lugar serviu Diana e seus convidados que rapidamente se dispersaram pela pista de dança, salão de bilhar e fliperama, enquanto Manuela sentou-se ao seu lado no bar.


-- Não vai me pagar uma bebida Diana? Eu te dei nesses dias os melhores sorrisos, os melhores ângulos, o seu melhor material de imagem...

                Diana sorriu sem graça fazendo sinal para John trazer mais uma cerveja.

-- Você é muito talentosa mesmo Manuela, apesar de ser novata no ramo, arrisco dizer que brilhará no cenário internacional.

-- Acho que esse talento todo que você se refere só funciona quando tenho conexão com quem me fotografa.

-- Faz sentido.

-- Acho que é quase que uma conexão sexual, eu tenho que sentir prazer ao estar diante de uma lente, e se quem está por trás dela, não me excitar com seus toques, cliques, não rola química. E senti toda energia entre nós, quase um orgasmo.

                Diana se engasgou com a bebida que ingeria tamanho o nervosismo despertado com o discurso e olhar voluptuoso da modelo. Manuela sorriu maliciosa, sorvendo um longo gole da cerveja, ato comum que para ela se transformou em um movimento sensual, acompanhado com toda atenção da fotógrafa. No intuito de mudar seu foco, Diana puxou assunto com John:

-- E aí John, que horas as meninas vão tocar?

-- Daqui a pouco, hoje elas farão apresentação especial, o Brian convenceu um produtor de uma gravadora pequena viesse assistir show delas.

-- Sério?

-- Torce por elas, querem agradar para gravar disco, elas merecer não?

-- Com certeza!

                Manuela continuou a assediar Diana, que apesar de envolvida com a sensualidade e beleza da modelo, não se sentia confortável na situação a princípio, mas aos poucos a bebida a desinibiu, sugerindo receptividade às investidas da beldade.

                Antes do show das anfíbias, Manuela foi segura o suficiente para ir sozinha à pista para dançar depois de Diana recusar seu convite. Se existiu uma conexão sexual durante o ensaio, aquele momento foi praticamente a consumação daquela atração, pelo menos mentalmente, uma vez que o requebrado da cintura de Manuela em movimentos absurdamente sexuais sendo assistidos com devoção por Diana. Foi preciso muito autocontrole da loirinha para impedi-la de arrastar Manuela da pista e dar vazão a todo desejo eclodido ali.

                E antes que o desejo exacerbado de ambas, junto com as bebidas em altas quantidades precipitassem o encontro dos corpos das duas, Brian, o companheiro de John anunciou a apresentação das Anfíbias, novo alvo da atenção de Diana.

                Apesar do nervosismo evidente das meninas da banda, de Rosana em especial, elas brilharam no show. Dominaram e encantaram a plateia, ousaram tocar duas composições próprias que o público aprendeu rapidamente, se transformando em ponto alto da apresentação.

                Diana ficou bem próxima ao palco, como a fã número 1 da banda, sensível ao nervosismo da vocalista que captou o esforço da loirinha e a partir disso, ficou mais à vontade à frente do espetáculo. Manuela não desistiu das investidas, roçou seu corpo em Diana enquanto dançava, jogando seus cabelos agora desalinhados, de uma maneira extremante sexy. Apesar de não ficar imune aos movimentos da modelo, Diana deteve sua maior atenção ao palco, vibrando com cada arranjo do instrumental e berrando os refrãos que Rosana entoava.

                Ao final do show, Diana voltou ao bar, para compartilhar com John sua impressão positiva da apresentação da banda. A empolgação de ambos irritou Manuela que perdera o posto de centro das atenções da loirinha.

-- Não entendo porque tanta energia por uma banda amadora como essa Diana. Qual é a sua com a cantora?

-- Essa banda amadora está pleiteando hoje a oportunidade de deixar o amadorismo, a energia é justamente para passar boas vibrações. A minha com a cantora é exatamente isso: troca de boas energias.

-- Eu sugiro então que você volte a trocar aquela energia que falávamos mais cedo, de preferência na cama.

                Diana empalideceu, arregalou os olhos e Manuela prosseguiu:

-- Na minha ou na sua?

-- Eu...

                Completamente atordoada, Diana buscava em sua mente a melhor saída para aquela situação, driblando seu desejo de simplesmente se render à atração e ao assédio da modelo.
Como se precisasse tentar ainda mais a fotógrafa, Manuela colou seu corpo no de Diana, roçou seus lábios pelo seu rosto e falou sensualmente ao seu ouvido:

-- Você nem pode imaginar como estou excitada só de sentir sua pele quente e seu perfume assim tão perto...

                Foi o empurrão que Diana precisava para cair nos braços de Manuela, sentiu suas pernas tremerem ao ouvir a voz sexy da modelo, além se de se arrepiar com o contato suave de seus corpos. Sorriu para Manuela retribuindo a malícia abundante dela e disse:

-- Melhor irmos antes que tanta energia provoque um curto circuito aqui...

-- Espere mais alguns minutos, vou ao banheiro, já volto.

                Antes de se afastar, Manuela depositou um beijo lento, carregado de desejo, mordiscando os lábios doces de Diana. A cena foi assistida por Rosana que se aproximava do bar.

-- Parece que tem gente experimentando novos rumos...

                Diana virou-se na direção da voz, vestindo a carapuça.

--Ora se não é estrela da noite! Parabéns doutora, show incrível o de hoje.

-- Obrigada. John, uma cerveja, por favor.

                Rosana se acomodou ao lado de Diana no balcão.

-- E então, como foi a conversa com o produtor?

-- Desanimadora. Não é exatamente uma banda de mulheres que ele está interessado, na verdade acho que ele não simpatizou com o nosso pano de fundo “anfíbio”.

-- Não brinca! O cara é homofóbico? Mas ele não é amigo do Brian?!

-- O cara é um metido, uma bicha enrustida, acho que ele entendeu o convite do Brian com outra conotação, estava claramente irritado, por certo o Brian deu um fora nele. As palavras dele foram: não é o nosso interesse esse público específico que é o de vocês, nosso alvo é um público mais convencional, que domina o mercado.

-- Que filho da mãe! Como assim público específico? Acha que só homossexuais tem bom gosto musical ou pensa que gays e lésbicas não compram CD?

                Rosana deu um sorriso amarelo, deixando evidente sua frustração.

-- Ei... Que carinha é essa? Não gosto de ver você assim. Não pode desanimar, essa foi só a primeira oportunidade de muitas que virão.

                Diana segurou os ombros da psicóloga com carinho.

-- E você, vai fechar a noite da ressaca com a irmã má da Barbie?

                Diana não conteve a gargalhada.

-- Senti um tom de censura na sua pergunta, ou é só impressão minha?

-- Depende. Você vai fazer isso por que já resolveu sua situação com a bonitinha que você estava apaixonada?

-- Acho que não há mais nada a resolver doutora, eu disse que ela me procurasse quando tivesse alguma decisão a nosso respeito, já se passou mais de um mês e só a vejo passeando com seu novo namorado, acho que para um bom entendedor, a decisão dela já está clara.

-- Essa decisão cabe de fato só a ela?

-- Como assim Rosana? Deixei claro o quanto quero ficar com ela, de correr os riscos, não estou pressionando, só deixei-a livre, ficando à distância.

-- Existe uma diferença entre manter a distância e esperar à distância. Até que ponto seu distanciamento é liberdade e quando ele começa a ser uma punição?

                Diana não teve como argumentar a indagação da psicóloga.

-- Eu pensei que você deixava o ofício de psicóloga no hospital, mas parece que esse balcão também é seu consultório não é?

                A loirinha brincou arrancando um sorriso de Rosana.

-- Talvez eu não consiga me separar de alguns casos... Ou isso seja um sinal para eu me manter só na psicologia, e deixar pra lá esse sonho com a música.

                Os olhos de Rosana voltaram a evidenciar a decepção da noite, tal fato tocou Diana.

-- Doutora essa noite eu vou tratar essa tristeza, confia em mim?

-- Mas... E a garota que está com você?

-- Ela não terá dificuldades em encontrar outro Ken para encerrar sua noite.

                Como fugitiva, a fotógrafa segurou Rosana pela mão e as duas correram, deixaram o Mess para um rumo desconhecido.

                Chegaram ao Bairro da Liberdade, famoso por seu “ar oriental”, reduto da colônia japonesa da cidade.

-- Você me arrastou do Mess pra comer um miojo?

                Rosana perguntou franzindo a testa. Diana gargalhou.

-- Calma doutora, eu disse que ia tratar sua tristeza, vou fazer isso, venha comigo.

                Diana pegou no porta-luvas um molho de chaves e usando uma delas, abriu o portão de um prédio antigo, chegaram a um elevador igualmente antigo, que lembrava um elevador para transporte de cargas. Parou no último andar, onde apresentou à psicóloga um enorme estúdio, no qual equipamentos de fotografia estavam espalhados, ao fundo, um enorme painel  feito de tecido branco acomodava ao seu redor um estiloso puf colorido.

                Rosana olhou em volta com cara de interrogação. Diana se aproximou das janelas laterais de vidro, abriu as cortinas, deixando que a luz dos prédios vizinhos entrasse naquele espaço, promovendo um jogo de sombras espetacular, realçando o estilo austero das paredes com tijolos à mostra misturados a andaimes sugerindo que o local passava por uma reforma.

-- Que lugar é esse Diana?

-- A próxima locação de um ensaio que farei. Não é para revista Vogue, mas, vai ser gostoso de fazer, diferente do que fiz, farei as fotos de esculturas, obras de artes plásticas, para o site de uma artista, na verdade, da minha ex-namorada.

-- Hum... Interessante.

                Rosana colocou as mãos nos bolsos da frente da calça, e caminhou pelo local contemplando o efeito das luzes externas, nesse momento, Diana apagou a luz do estúdio deixando apenas a penumbra iluminar o local, o que transformou a atmosfera em um ambiente misterioso e sensual.

-- Uau... Agora faz sentido o porquê de fotografar aqui. Essa luz vermelha, a sombra da decoração dos outros prédios, até o neon das placas do prédio da frente... Diana se você fotografar assim, o resultado vai ficar incrível! Você é uma artista menina!

                Diana sorriu tímida.

-- Quando a Julia, a artista, falou que a inspiração da nova exposição dela veio da viagem que fez ao Japão, achei que seria legal fazer nesse bairro, passeando aqui, eu achei esse prédio, que foi vendido, em breve será totalmente reformado, então, aluguei o espaço pelos meses que restam antes da reforma. Imaginei que seria legal aproveitar essa luz, fazer um paralelo entre noite e dia dos hemisférios, farei fotos à luz do dia, contrastando com fundos escuros representando a noite no oriente.

-- Fantástico! Eu não imaginava que sua história com fotografia, fosse tão profunda, tão artística!

                Rosana se acomodou no puf, envolvida pelo clima escuso, numa postura que beirava a contemplação. Diana aproveitou a distração da expressão embevecida da psicóloga, iluminada por uma penumbra corada, e usando a câmera montada no tripé, silenciosamente iniciou uma sequência de cliques, explorando a modernidade de seu equipamento que dispensava o flash para captar a imagem real à sua frente.

                Minutos depois Diana foi flagrada, surpreendentemente Rosana ficou tímida, algo raro nos momentos em que a loirinha esteve com ela.

-- Isso é invasão de privacidade dona Diana!

-- Prometo solicitar os direitos de imagem se eu usar isso em algum comercial de remédio antidepressivo ok?

                Rosana sorriu. Diana se acomodou perto do puf, aos pés da psicóloga.

-- Você parecia estar com o pensamento tão distante viajando nessas luzes... Está cultuando sua tristeza? Ou pensando em alguém? – Diana indagou.

-- Nem uma coisa nem outra. Não estou triste, estou decepcionada, frustrada, desanimada.

-- Nossa! Se isso não for tristeza, eu não sei mais o que é! – Diana brincou.

-- São etapas de uma crise, e toda crise gera mudança. Então, não acho que seja algo triste, mudar sempre sugere esperança, o contrário de tristeza.

-- Ok doutora! Esqueci que o botão “on” da terapia vive em stand by! Sem usar desse palavreado bonito e profundo, você pode me dizer no que estava pensando?


-- Estava pensando nos meus planos, pensando se ainda vale a pena dar murro em ponta de faca com esse sonho de viver da música, ou se simplesmente transformo isso em um passatempo, mudo minha perspectiva a respeito da banda, assim eu faria com prazer minha música sem a pressão de precisar do sucesso entende?

-- Entendo. Mas você acha que o resto da banda vai concordar com essa mudança de postura? Não deveriam evoluir no profissionalismo ao invés de transformar em brincadeira?

-- Diana conheci as meninas na faculdade, e começamos meio que por brincadeira e éramos mais felizes nessa época, depois que elevamos para a categoria de amadoras com agenda de ensaios e apresentação foram despertados sonhos de adolescentes de fama, de sucesso, e como líder da banda, acabei estimulando esse “profissionalismo”, com isso nos expectativas cresceram e as decepções, frustrações... Não foi a primeira oportunidade com uma gravadora que perdemos como você pensa... O mais chato é que não consideram nosso talento, nossa empatia, o que vem em primeiro plano é o estereótipo do homossexualismo.

-- Isso é tão hipócrita, tão superficial, chega a ser revoltante não é?

-- Hurrum. – Rosana concordou baixando a cabeça.

-- Você já sofreu muito com preconceito?

-- Por incrível que pareça, não. Só nesses lances com a banda. Talvez por que eu tenha me protegido nesse universo alternativo, e não saio levantando bandeiras coloridas nem muito menos aumentando o número das “bofinhos”, não acho que eu tenha que fazer da minha sexualidade um assunto de domínio público.

-- Você está certa. Se eu pudesse voltar atrás nesse passo que dei de “sair do armário” faria isso com certeza, ou ao menos faria diferente, quem sabe assim fosse mais fácil eu aceitar as condições da Natalia para continuarmos juntas.

-- Não nego o que sou Diana, não estou no armário, só não faço propaganda. Já viu alguma hetero divulgar que gosta de homem? Elas não precisam de armário, são o que são, tento me encaixar na categoria pessoa comum.

-- Definitivamente, você não é uma pessoa comum.

                Diana encarou Rosana demonstrando sua admiração.

-- Está me dizendo que minha tentativa foi em vão? Não consegui enganar ninguém?

-- Não mesmo... Você é completamente incomum, singular.

-- Esse é seu jeito de me animar? Enchendo minha bola?

-- Quem disse que to enchendo sua bola? Estou dizendo que você é singular por que ninguém consegue ser tão intrometida e petulante como você! Isso não é comum.

                Rosana gargalhou.

-- E olha que ainda me pagam pra isso!

-- Falando sério Rosana, o que você optar por fazer, seja na música, seja na psicologia, você vai se destacar vai brilhar! Você tem uma energia única, tem empatia com as pessoas no palco, no hospital... Não desanima, as coisas acontecem na hora certa.

                Rosana sorriu com os olhos marejados.

-- É assim que você seduz as meninas?

                Diana ruborizou.

-- Como assim doutora?! Não estou tentando te seduzir, se eu estivesse fazendo isso, você já estaria nos meus braços arrancando minha roupa.

                Rosana gargalhou mais uma vez.

-- Adoro gente modesta sabia?

-- Não sei o que é modéstia. – Diana brincou.

-- Disso não duvido!

-- Quando você descobriu que era mais especial, ou seja, que gostava de meninas?

-- Eu nunca soube identificar o tempo dessa descoberta. Desde que me entendo por gente, achei que o mais natural era meninas andar com meninas, estar com meninas, e por que não amar meninas?

-- Nunca ficou com meninos?

-- Sim, claro. Era bom, especialmente por que isso era motivo para conversas em segredo com a minha melhor amiga... – Rosana conteve o riso.

-- Bandida!

-- Isso me fazia sentir diferente ao longo do tempo. Mas, só tive certeza que eu era lésbica na faculdade.

-- Faculdade, sempre a faculdade! As festinhas, a bebedeira, as colegas de quarto...

-- Na verdade não teve nada com isso! É que foi na época da faculdade que assisti um show da Shakira.

-- Shakira?! O que tem a Shakira com isso?

-- Você já viu aquela mulher requebrando? Eu fiquei catatônica observando aquilo, e pasme: excitando-me. Depois disso, não tive dúvidas que eu gostava de mulher!

                Diana gargalhou, sendo acompanhada por Rosana. Naquele clima amistoso e íntimo, as duas conversaram até a madrugada, até dormirem ali mesmo exaustas, acomodadas em almofadas que Diana guardava, dividiram um cobertor deixado ali pela fotógrafa, estreitando aquela amizade especial e inusitada.

                Mal o sol nasceu, e as duas amigas despertaram apressadas pelos compromissos do dia, levantaram e seguiram para casa. Diana fez questão de deixar Rosana em casa. Ao se despedirem, a psicóloga não escondeu sua gratidão pelo cuidado da loirinha.

-- Diana você é surpreendente. Pensei que você fosse me levar pra encher a cara, ou para alguma boate gay ontem, ao invés disso, me deixou em paz, leve, completamente à vontade para ser frágil, me deu espaço pra pensar, liberdade pra falar bobagem. Muito obrigada, valeu a pena confiar em você pra cuidar da minha tristeza ontem.

-- Foi um prazer Rosana, sua companhia me faz muito bem. Mas, da próxima vez, a gente vai encher a cara e catar umas meninas numa pista de dança ta?

                Rosana gargalhou.

-- De acordo.

-- Agora preciso ir, hoje tenho aula de IED, e Madimbu está furiosa por que foi obrigada a me dar nota 10 na média parcial do semestre.

*******************

                Amargando uma ressaca duplamente dolorosa, Natalia encarou o desafio de chegar atrasada à aula de IED pela primeira vez, aliás, o primeiro atraso na sua curta vida acadêmica. A cara amassada, o olhar quebrado denunciava o motivo de seu atraso, o que despertou a atenção de Diana.

-- Ora, ora, ora... Alguém perdeu a hora hoje... Algum problema Natalia?

-- Desculpe-me professora. Nenhum problema, apenas dormi demais.


                Natalia sentou-se sem graça, desviando os olhos da observação atenta da ex. Diana mal conseguiu responder a altura às provocações de Dorothea de tão concentrada que estava no estado de Natalia.

                Ao contrário do que era costume, Natalia se apressou em sair da sala, evitando a obrigação de dar explicações às colegas mais próximas sobre seu estado apático e aparência de ressaca.

                Impulsionada pelo sentimento de cuidado, Diana seguiu sorrateiramente Natalia, na esperança de conversar a sós com a ex-namorada. Seguiu-a até o banheiro, onde a moça entrou na companhia de Carla e se esgueirou até uma das cabines a fim de escutar a conversa das duas.

-- E aí? Como você está amiga? – Carla perguntou.

-- Não sei Cacá... Depois do que aconteceu com o Sandro, fiquei com nojo de homens, pensei que o Pedro fosse diferente, mas na primeira oportunidade ele se comportou como um cafajeste asqueroso...

-- Ai Nat não exagera vai... Comparar o Pedro ao Sandro é demais! O Pedro é completamente apaixonado por você, se deixou levar pelo momento, pela paixão... Vai ver que nem se lembrava de que vocês nunca avançaram na intimidade, por isso estava tão afoito...

-- Ah! Eu exagero e você coloca panos quentes! Carla, eu nunca tive maiores intimidades com o Pedro, ficamos duas ou três vezes, beijinhos inocentes, e mesmo que fosse diferente, isso não lhe dava o direito de agir daquela forma.

-- Você está se esquecendo de um pequeno detalhe: ele está com amnésia, não podia se lembrar como era a relação de vocês antes. Vocês beberam demais, homem fica assim, ainda mais assanhado quando bebe, ele não queria te ofender, ou abusar de você Nat, eu conheço o Pedro.

-- Carla, não foi um assanhamento qualquer! Eu tentei empurrá-lo, eu gritei que não queria aquilo, se você não tivesse interrompido... O Pedro forçaria a barra até eu não oferecer resistência.

-- Do jeito que você fala, até parece que o Pedro te estupraria...

-- Não deixa de ser um estupro. Eu não consigo nem imaginar olhar pra cara do Pedro...

-- O que você está dizendo? Vai terminar com ele?

-- Não vejo outra coisa a fazer que não seja isso. Não consigo nem olhar pra ele, que dirá posar de namorada dele.

-- Posar? Como assim Natalia?

-- Esse namoro com o Pedro... Foi resultado de um mal entendido que mantive por gratidão pelo que ele fez por mim. Nós nunca namoramos, mas de alguma forma a atitude dele deu a entender isso para a mãe dele e eu não tive coragem de contradizê-la, especialmente depois que ele acordou sem memória.

-- Pow Natalia você é doida!

-- O que você esperava que eu fizesse? O cara está assim por minha causa!

-- Não! Ele está assim por causa do Sandro! Poxa, se você gostar do Pedro, estiver a fim de namorá-lo até dá pra entender você embarcar nesse namoro de conveniência, mas se não é o caso, minha amiga você está fazendo uma grande besteira! Mentiras sejam qual for o pano de fundo é uma bola de neve, daqui a pouco até você estará acreditando que é namorada do Pedro.

                Natalia tentou argumentar, mas ela engoliu as palavras ao se dar conta que Carla tinha toda razão, o episódio da noite anterior deixou isso muito claro. A verdade que sua ex-namorada tanto tentou lhe mostrar agora era gritada por sua consciência. A nova amiga apesar de não saber da dimensão da dor que aquela mentira causara, foi uma luz de sensatez em um fato tão nublado por motivações egoístas disfarçadas pelo sentimento de gratidão, proteção e ciúme das diversas pessoas envolvidas.

-- Você ainda vai ficar na faculdade hoje? – Carla quebrou o silêncio reflexivo de Natalia.

-- Eu deveria estudar na biblioteca depois de almoçar, mas não estou disposta.

-- Eu preciso ir, vou almoçar na casa do Ricardo, aniversário do pai dele... Vejo você à noite, mas se precisar de qualquer coisa me liga ta?

                As amigas se despediram saindo do banheiro. Na cabine, ainda escondida, Diana digeria a história que acabara de ouvir experimentando sentimentos desconexos: revolta, culpa compaixão, raiva, remorso. No intervalo de uma sinapse, a loirinha fez milhares de suposições acerca das consequências de seus próximos passos diante de Natalia e diante do amigo Pedro. Impulsivamente saiu do banheiro disposta a conversar com sua ex-namorada, oferecendo seu colo, seu cuidado e proteção, trazendo-a de novo para perto como seu sentimento lhe dava o direito.

                A caminho da saída do campus Natalia foi abordada por Pedro, visivelmente tenso.

-- Natalia estava feito louco te procurando! Precisamos conversar.

-- Pedro eu não quero falar com você, não quero ver você, por favor, outro dia conversamos, esse não é o momento.

-- Mas... Eu nem consegui dormir, preciso me explicar, me desculpar, preciso que você me entenda me perdoe... Eu estava fora de mim, bêbado...

                Pedro insistia falando enquanto tentava deter os passos rápidos de Natalia.

-- Você precisa de muita coisa de mim, eu preciso só de uma coisa: fique longe, me dá um tempo! Não suporto nem olhar pra você sem me lembrar de sua atitude de ontem.

                De longe Diana observou a movimentação e se apressou para intervir ao notar que Pedro segurou Natalia pelo braço com agressividade.

-- Solte-me agora!

                Natalia bradou se desvencilhando com agressividade compatível, mostrando que não era a mesma menina indefesa da noite anterior.

-- Você nunca mais vai me tocar sem que eu conceda isso! Já disse, outro dia conversamos!

                Sem olhar para trás Natalia deixou o campus, não percebeu a aproximação de Diana que impediu a insistência de Pedro seguir a sua suposta namorada.

-- Você não ouviu a garota Pedro? – Diana disse ríspida.

-- Não posso deixar a Natalia se afastar de mim assim, ela tem que me ouvir!

                Pedro seguiu na direção de Natalia, e mais uma vez foi impedido por Diana, dessa vez com violência. A loirinha aparentemente frágil empurrou o amigo contra o corredor e encarando-o altiva disse:

-- Você vai deixar a Natalia em paz. Não vai importuná-la, por que o que você fez te desmerece completamente! Agiu como um cafajeste, você não a merece.

-- Qualé Diana?! Quem te contou?

-- Não interessa! Mas vou te avisar uma coisa Pedro: se você ousar repetir o que fez, ou infernizar a vida da Natalia de alguma forma, não só perde uma amiga, ganha uma inimiga também.

                A animosidade aflorando entre os amigos não passou despercebida pelos olhos e ouvidos mais atentos, entre eles, os de Carla que assistiu de perto a cena com Ricardo.

-- Nossa o que será que aconteceu pra Diana falar assim justo com o Pedro?

-- Nem imagino...

                Carla ficou intrigada com o tom da conversa que ouviu, mas não compartilhou isso com o namorado.

********

                Convicta que precisava de ajuda naquela confusão solitária de acontecimentos e sentimentos, Natalia engoliu seu orgulho mesclado com seu ciúme e bateu à porta do consultório da psicóloga solícita: Dra. Rosana.

-- Natalia? Que surpresa!

-- Eu não sei como funciona... Preciso marcar hora ou pegar autorização em algum setor... – Natalia disse disfarçando a timidez.

-- Entre, por favor. Vamos deixar a parte burocrática para outro dia, sente-se.

                Notoriamente constrangida, Natalia se acomodou em uma cadeira mais afastada. Respeitando os limites da jovem, Rosana tomou seu assento mantendo a distância.

-- Posso te ajudar em alguma coisa Natalia?

-- Espero que sim doutora.

-- Estou aqui para isso. Diga-me, por que resolveu me procurar hoje?

                A pergunta coloquial da psicóloga funcionou como um start na emoção contida, fazendo Natalia se derramar em um pranto incontrolável. Rosana esperou solidária até que as lágrimas trouxessem o alivio necessário a sua nova paciente.

-- Eu não sei por onde começar a falar. – Entre soluços Natalia se esforçou para dizer.

-- Eu te ajudo nisso então. O que mudou desde a última vez que conversamos e você me disse que não precisava de terapia?

-- O fato de me dar conta que os homens são animais e que eu me sentir presa a uma obrigação que representa minha infelicidade.

-- Uau! Você precisa mesmo de mim...

                Rosana deixou escapar o comentário, provocando um riso tímido de Natalia.

-- Sua teoria sobre os homens tem a ver com o fato que trouxe você e seu amigo para esse hospital?

-- Sim...

                Pouco a pouco contando com a paciência e profissionalismo de Rosana, Natalia revelava a tribulação que atravessava sem, contudo deixar claro o que mais lhe afligia: a constatação de estar perdendo Diana.

-- Por mais que sua personalidade, sua formação indiquem que você deve algo ao Pedro, isso não te faz refém dessa gratidão Natalia. Seja lá qual equívoco te fez aceitar essa condição, não pode persistir, você está adoecendo, carregando uma culpa, uma sentença que não te pertence. Você sabe o que fazer.

-- Acho que sim.

                Notando a garota encarar o chão, Rosana insistiu:

-- Tem mais alguma coisa que te atormenta? Algo que o piso da minha sala te faça lembrar?

                Natalia não ergueu os olhos, apenas acenou em acordo.

-- Desde que cheguei a São Paulo, muitas coisas mudaram em minha vida, mas alguém mudou a minha vida e me mudou também. - Natalia pausou com a voz embargada – Eu me sinto perdida desde que essa pessoa resolveu me dar a liberdade como alternativa pra definir nossa história, e tudo que eu queria nesse momento era estar livre pra me prender a ela...

-- O que mais te prende além dessa relação com o Pedro?

-- Meu medo de enfrentar as pessoas, a crueldade das convenções da qual ela tanto quis me proteger e eu não considerei a importância disso. O medo maior é de perdê-la pra meu medo...

-- Natalia, você é uma menina que sempre viveu cercada da proteção dos seus pais, pelo que me contou, sempre batalhou muito pra conseguir o que queria, está enfrentando o desafio de construir sua independência em uma das metrópoles do mundo, e está deixando que o medo domine sua vida? Você é mais forte que isso.

-- Eu criei um fosso entre nós. Em semanas me transformei na namorada perfeita do Pedro, e quando a vejo tão vivaz, tão envolvida em projetos que eu nem sei o que são me apavoro por que sei que estou perdendo-a...

                Natalia se calou bruscamente ao perceber que entregara o sexo da pessoa em questão.

-- Não se censure. Não quero que me considere um padre, mas acredite, posso guardar um segredo de confissão.

                Natalia pareceu relaxar e prosseguiu.

-- Ela parece ter me esquecido. Não passo de uma estranha conhecida.

-- Tem certeza disso?

                Natalia suspirou alto.

-- Se não tem certeza, é melhor você conquistar algumas certezas e pra isso precisa voltar a cuidar da sua vida, ao invés de deixar seus medos fazerem isso.

                A postura reflexiva da moça deixou claro que a psicóloga não tinha só conquistado a confiança da sua nova paciente, mas também sua simpatia. Com o semblante mais aliviado Natalia se despediu de Rosana.

-- Leve essa solicitação. É meu encaminhamento para você agendar pelo menos dois encontros semanais comigo, se você quiser claro.

-- Eu quero sim doutora, vou agendar. Muito obrigada.

                Antes de deixar o consultório, Natalia ainda ouviu:

-- Ah! Natalia, fora da sessão, não é um conselho da doutora, é só uma dica: a Diana não te esqueceu.


                Natalia pareceu surpresa. Rosana sorriu e fechou a porta com o sentimento de dever cumprido, com a certeza de ter ajudado sua nova amiga a se entender com sua amada.


CAPÍTULO 39: Hoc volo, sic jubeo; sit pro ratione voluntas
Quero isto, ordeno isto, que a vontade sirva de razão


                Natalia manteve seu estado de exílio até o final da semana, refugiando-se nos estudos para disfarçar a angústia do peso de suas decisões iminentes. O conselho de Rosana ecoava na proporção que seus pensamentos e seu corpo clamavam por Diana.

                Com muito custo, a loirinha optou por manter distância de Natalia como prometera na última conversa. Intensificou os preparativos para o próximo trabalho para o site de Julia, deixando a sua agenda livre para a festa das repúblicas no final de semana, em comemoração ao final das provas, voltar a pilotar suas “pickups” empolgava Diana, e a tal festa era uma oportunidade de rever Natalia.

                O Clube Metro era o local de tradição para as festas das repúblicas unificadas, igualmente tradicionais no curso de Direito. Essas festas geralmente objetivavam angariar fundos para as festas de formaturas das turmas dos últimos semestres, tal fato dava uma pilha a mais para os estudantes se empenharem na divulgação do evento.

                E como esperado, a sexta a noite estava perfeita para a Night Republic. Convencer Natalia a ir não foi tarefa fácil. As meninas da república utilizaram todos os argumentos, até Carla jogar com suas suspeitas e disparou:

-- Vai perder um show da Diana, dizem que ela está arrasando no repertório novo.

                Minutos depois Natalia estava pronta, sua beleza não exigia grandes produções para saltar aos olhos. Entretanto, os cabelos com as pontas amassadas mescladas aos seus trajes simples e delicados lhe davam um aspecto despojado único, que chamavam a atenção mesmo que essa não fosse sua intenção.

                Diana ao contrário caprichou no seu look, carregado com seu estilo urbano nada convencional. O jeans justo, as botas cano longo e o colete de couro preto lhes conferiram uma sensualidade incomum enquanto dançava, contrastando com seu jeito moleque de dominar a mesa de som e mixagem, até o seu headphone se transformou em artifício para a loirinha esbanjar seu charme peculiar.

                A performance empolgante da DJ, pioneira em mesclar os hits do momento das maiores festas eletrônicas da Europa e elementos dos clássicos do rock mixados e novas versões do pop nacional, levou a plateia de estudantes e convidados à loucura.

                Apesar de envolvida naquela atmosfera, Diana não tirava os olhos da pista buscando Natalia entre o jogo de luzes e as centenas de pessoas ensandecidas se entregando ao ritmo. E como se ensaiadas pelo desejo de suas almas de encontrarem, seus olhares se cruzaram no exato momento em que Natalia entrou no Clube.

                Segundos de uma conexão transcendente foram o suficiente para despertar certezas, transformar a saudade em tortura insuportável e o desejo tomar a forma de algo tão vital quanto o ato de respirar. Natalia surgiu para Diana ainda mais linda e apaixonante e Diana por sua vez, estava diante de Natalia como a criatura mais envolvente e igualmente bela que ela já conhecera. As almas se entenderam como antigas conhecidas, mesmo que os olhos transmitissem a eminência de uma nova paixão surgindo. Permitindo o neologismo, o que definiu aquele momento foi o “reapaixonar-se”. Inexplicável? Talvez. Mas quem ousa explicar o poder da paixão se reinventar?

                A super festa agora era coadjuvante naquela noite, pelo menos para Diana e Natalia que não consideram se desligar uma da outra, mesmo com os metros de distância impostos. A energia que as unia infelizmente sofreu interferências de terceiros, antagonistas daquela história. Ao perceber a presença de Natalia no clube, Pedro se apressou em procurar o alvo da sua cobiça.

-- Natalia, que bom que veio.

-- Oi Pedro.

-- Quer beber alguma coisa? Deixa eu te pagar uma bebida.

-- Obrigada Pedro, mas não vou beber.

-- Vamos dançar então? A Di está arrebentando no som hoje...

-- Pedro... Não quero ser grossa, mas vou poupar seu esforço... Eu ainda não quero conversar com você, ainda não consegui absorver o que aconteceu essa semana...

-- Mas Natalia... Eu sou seu namorado... Essas intimidades são comuns entre casais e eu sou completamente apaixonado por você... Não foi nada demais... Nós bebemos muito e...

-- Então você acha mesmo que não foi nada demais?

-- Natalia você está super valorizando um fato isolado...

-- Pedro eu te disse que não queria conversar com você, mas já que você está sendo tão inconveniente insistindo, vou ser direta: para mim foi demais sim, tanto que foi suficiente para eu definir nossa situação, esse namoro está acabado!

                Pedro arregalou os olhos e berrou:

-- O que?! Não faz isso comigo, por favor!

                Segurou o braço de Natalia agressivamente forçando um abraço:

-- Não me deixe, preciso de você...

                De longe Diana se distraía com a cena, se controlando para não intervir na discussão, esquecendo-se até de trocar a sequência de músicas e jogar seus efeitos. Pedro forçava a aproximação com Natalia que o repudiava veementemente sem sucesso até a intervenção de Lucas.

-- O que está acontecendo aqui? Qual foi mano?

-- Não se intrometa Lucas!

-- Solta a Natalia agora Pedro.

                Lucas mudou o tom de voz, segurando o ombro do irmão. O olhar lançado por Lucas parece ter trazido Pedro de volta a razão, fazendo com que este se afastasse da garota, e seguisse para o bar.

-- Está tudo bem Natalia? – Lucas indagou preocupado.

-- Está sim, obrigada Lucas.

-- Você quer uma água? Ou algo mais forte?

-- Obrigada, mas não vou beber. Vou comprar uma água.

-- Trago pra você.

                Lucas se afastou e essa foi a deixa para Natalia voltar sua atenção para o motivo de estar ali: a DJ. A visão não foi nada agradável: a sua colega de sala, Sheila, se insinuava acintosamente para Diana, colando o seu corpo na loirinha que tentava se esquivar, mas, o pouco espaço do quadrado não permitia uma distância segura.

                Lucas se aproximou com uma garrafa de água quando Natalia o surpreendeu:

-- Mudei de ideia Lucas, quero uma tequila.

-- Opa! Já é!

                As doses de tequila se repetiram duas vezes antes de Natalia se render ao som da DJ e usá-lo ao seu favor. Se Sheila aproveitava o pouco espaço para esfregar o seu corpo em Diana, Natalia decidiu atiçar o desejo da ex à distância da pista.

                A atenção de Diana ela conseguiu fácil. Lucas distraído com os movimentos sensuais da moça não teve a perspicácia de entender o que se passava, e tentou acompanhá-la na dança. O rebolado dos quadris de Natalia deixava à mostra sua barriga moldada por uma natureza impecável, os cabelos despenteados eram segurados pelas duas mãos pela moça enquanto ousava um gesto mais sexy.

                Sheila cochichava elogios maliciosos aos ouvidos de Diana, que pouco se importava com o assedio, com os olhos fixos em cada movimento de Natalia na pista. Como se quisesse gritar o que sentia, a DJ enviou sua mensagem em forma de música, tocando “Crazy in Love” da Beyoncé.




Got me looking so crazy right now, your love's
Got me looking so crazy right now (your love)
Got me looking so crazy right now,your touch
Got me looking so crazy right now (your touch)
Got me hoping you'll page me right now, your kiss
Got me hoping you'll save me right now
Looking so crazy in love's,
Got me looking, got me looking so crazy in love.”

Me parecendo tão louco agora, do seu amor
Me parecendo tão louco agora (seu amor)
Me parecendo tão louco agora, o seu toque
Me parecendo tão louco agora (seu toque)
Me esperando que você me página agora, o seu beijo
Me esperando você me salvar agora
Parecendo tão louco no amor,
Me olhando, me olhando tão louco de amor.


                A apresentação de Diana se aproximava do fim, tal evento nunca foi tão esperado. Natalia se esquivava das típicas investidas dos rapazes, contando com a “proteção” do suposto cunhado, inocente ao flerte entre ela e Diana.

                Observando Diana deixar a cabine de som, Natalia tratou de providenciar a distração de Lucas.

-- Lucas, eu vou procurar as meninas da república, volto já. Fique aqui.

-- Mas, Natalia...

                Antes que Lucas discordasse a menina sumiu no meio da pequena multidão. Diana buscava entre os rostos conhecidos apenas um: o da sua ex-namorada, parou no bar, mas antes que Natalia a encontrasse, Sheila o fez, abordando-a com a mesma ousadia de outrora, falou bem próximo aos lábios da loirinha:

-- O que você acha de irmos para um lugar menos convencional? Onde eu não precise segurar minha vontade de te beijar na frente de todos?

                Tentando não ser mal educada com a colega, Diana desviou o rosto e pediu uma bebida no balcão.

-- Sheila eu vou dar uma volta por aí. Depois nos falamos.

-- Diana você está mesmo me dispensando? – Sheila falou irritada.

-- Sheila... Metade do curso de Direito da USP está aqui, eu já tenho motivos o suficiente para me preservar e me preocupar, não vou dar munição pra ser fuzilada pelas fofocas dessa gente, desculpa linda, mas eu tenho outros planos pra essa noite.

                Diana pegou sua cerveja e deixou o bar e continuou a procurar Natalia pelo clube, mas, o acaso não era aliado do casal naquela noite, um antigo affair de Diana da faculdade atiçada pelo estrelato da DJ foi incisiva na sua abordagem, pegando a loirinha de surpresa na escadaria que dava acesso ao primeiro piso.

-- Você está uma delicia Di... Eu não sei resistir a tentações, que tal tocar outra coisa hoje?

-- Por exemplo...?

-- Aquele ponto que você conhece como ninguém...

                Monica mordiscou a orelha de Diana sem o menor pudor por estar em um ambiente heterossexual. Péssimo momento para a loirinha ser encontrada por Natalia, que avistou a cena de longe.

                Mais uma vez Diana se esquivou, mesmo atraída pela sensualidade exuberante da moça.

-- Monica eu sou obrigada a ser seu anjo e te ajudar a fugir de tentações hoje.

                Diana sorriu com seu jeito amolecado para Monica e sumiu entre as dezenas de pessoas que lotavam o primeiro piso. Natalia fez o mesmo trajeto, e viu a oportunidade perfeita quando Diana se aproximava do depósito do clube. Apressou-se para alcançá-la, surpreendendo a ex-namorada, empurrando-a para dentro do depósito, pressionando-a contra a porta.

-- Chega! Chega de tantas mãos te cercando! Você é minha!

                Afobada, Natalia invadiu a boca de Diana com sua língua, roubando um beijo tórrido, urgente, sufocando qualquer insite de sensatez. As duas prolongaram aquele contato, intensificando a entrega dos lábios, aliada à busca frenética das mãos pelos corpos uma da outra, trocando gemidos de prazer entrecortados pela respiração ofegante denunciando a excitação óbvia, anunciando a força daquela paixão.

                O desejo apossado de ambas calou qualquer palavra. A razão era secundária naquele contexto. A vontade justificava todas as atitudes do casal. Diana inverteu a posição e jogou Natalia contra a parede, encaixou sua coxa entre as pernas da outra, suplicante, sentindo seu sexo encharcar-se, Natalia fechou as pernas e roçou seu sexo na coxa de Diana aumentando a excitação de ambas.

-- Te quero tanto Nat...

-- Que saudade das suas mãos, me toca Di...

                As mãos de Diana que passeavam pela cintura de Natalia, desceram a fim de cumprir o que esta pedia, sem grande esforço desabotoou a calça de Natalia iniciando uma sensual massagem com os dedos na altura do clitóris dela, até enfim ganhar espaço e introduzir seus dedos por dentro da calcinha. Diana se deliciou com a umidade abundante ali encontrada, tocou Natalia na intensidade ditada pelas expressões de prazer evidentes no rosto desta e acolheu-a em seguida nos seus braços sentindo-a trêmula, gozando plenamente.

                A paixão não tinha limites naquela noite, as bocas continuavam a se procurar, sedentas por sua fusão cálida. As mãos exploraram as peles quentes, e as frases soltas sussurradas ao ouvido tinham uma única mensagem:

-- Quero mais, quero mais de você...

                Os abraços e as trocas de carícias sôfregas mantiveram a excitação que culminaria com uma nova entrega e os orgasmos incontroláveis que se desenhavam em cada gesto e movimento de Natalia e Diana, quando o barulho, provavelmente de algum funcionário do clube as interrompeu.

                Calaram até mesmo a respiração acelerada e se esconderam atrás das caixas de cerveja para não serem descobertas. Livres do flagrante, Natalia pediu:

-- Di, me tira daqui.

-- Vem comigo?

                Diana ofereceu a mão. Constrangida, Natalia hesitou.

-- Algum problema?

-- Não, nenhum, vamos sair daqui.

                Natalia segurou a mão de Diana.

-- Meu carro está nos fundos do clube, vamos pra casa minha linda.

-- Vá à frente, vou avisar as meninas que não volto com elas pra casa.

                Diana ignorou a suspeita de que Natalia inventara uma desculpa para não ser vista com ela, não era hora para discutir questões mais complexas, sua vontade de estar com Natalia em seus braços era muito superior a essas suspeitas, assim, apenas consentiu, fazendo como Natalia sugerira.

                O que Natalia parecia ter se esquecido, era do seu guarda-costas compulsório da noite: Lucas, que surpreendeu a garota quando esta se dirigia ao bar onde Carla estava com Ricardo.

-- Onde você estava?!

-- Lucas eu estou indo embora.

-- Mas sozinha? Eu te levo!

-- Não! Já chamei um táxi.

-- Vou te acompanhar então.

-- Lucas pare!

                Natalia berrou irritada.

-- Chega! Obrigada pela preocupação, pelo cuidado, mas, estou bem e não quero companhia!

                Lucas balançou a cabeça negativamente, colocou as mãos na nuca e retrucou em tom interrogativo, visivelmente perturbado:

-- Você está atrás dela não é?

-- O quê?

-- Você está procurando ela! O que quer? Vai se oferecer pra ela? Deu um chute no meu irmão pra isso não é? Ela já deu em cima de você não foi?

                Os berros de Lucas despertaram a atenção de Carla que se aproximou perguntando:

-- O que está acontecendo aqui? De quem você está falando Lucas?

                Natalia sentiu suas mãos gelarem, temendo que Lucas revelasse para a colega de república seu segredo, e para piorar a situação, Fernanda e Gisela, outras moradoras da república chegaram fazendo a mesma pergunta, claramente tocadas pelo álcool.

-- Que climão é esse minha gente?! Vamos pra pista meu povo!

                Carla recuou, notando a troca de olhares tensos entre Lucas e Natalia. Mas o rapaz se aproveitando da situação insistiu:

-- Por que não responde às suas amigas? Diga de quem estamos falando.

-- Lucas, eu acho que você exagerou nos gorós, para de atormentar a guria meu irmão!  - Ricardo interviu puxando o rapaz para longe do círculo das meninas ao sinal de Carla.

-- Natalia está tudo bem? – Carla indagou segurando o braço da amiga.

-- Está obrigada Carlinha. Eu só estava procurando vocês para avisar que estou indo embora.

-- Com quem? Mas já?

-- Ah Natalia para com isso! Está cedo ainda! – Fernanda berrou.

-- Estou indisposta gente, a tequila não me fez bem... – Natalia simulou uma careta de mal estar.

-- Vou com você então, o melhor da noite era o som da Diana, esse amador que está tocando agora é muito fraquinho. – Gisela disse ficando ao lado de Natalia.

-- Não precisa Gisela, vou de táxi... – Natalia tentou argumentar.

-- Deixa a Gi ir com você Natalia, vocês racham um taxi e ela ainda te faz companhia já que você não se sente bem. – Carla comentou.

-- E eu fico sozinha? – Fernanda revirou a cabeça indignada.

-- Não dramatiza Nanda! Daqui a pouco você vai estar se atracando com um calouro, eu te conheço! – Gisela bufou.

                Enquanto Natalia tentava fugir das amigas sem despertar suspeitas, Diana esperava em seu carro, nos fundos do clube. Esperou vinte minutos, meia hora, quarenta minutos. Aquela espera Diana não conhecia. Atestou que a postura expectante se configurava em tortura. Uma tortura que minava sua imaginação com todas as possibilidades responsáveis pela demora de Natalia.

                Quase uma hora se passou, e a essa altura Lucas já estava ao lado de Natalia mais uma vez, junto com as outras meninas da república dela e Ricardo, namorado de Carla. Ainda irritado, não deixou de provocar a garota:

-- Ela não está mais aqui, não adianta procurar, já deve estar se esfregando em meia dúzia de menininhas curiosas...

                Natalia fez cara de poucos amigos para o rapaz e se afastou dele caminhando em direção a saída, e foi seguida por Gisela.

-- Nat agora sou eu que não estou passando bem, vamos comigo?

                Acuada a menina não conseguiu dizer não. Tinha esperanças de conseguir falar com Diana quando chegasse à república onde havia deixado seu celular. Entretanto, minutos antes de Natalia sair do clube com Gisela, Diana assistiu a cena deplorável de Sheila totalmente embriagada, vomitando na calçada.

                Diante da situação, deduzindo que recebera de Natalia um bolo após uma hora de espera, a DJ socorreu a colega, levando-a para seu apartamento.

                Sheila estava praticamente inconsciente quando chegou ao apartamento de Diana. A loirinha acomodou a moça no sofá da sala, depois de quase empurrar goela abaixo litros de água, antevendo a ressaca da sua admiradora.

                A caminho da república a angústia de Natalia só aumentou. Gisela dava sinais que sua embriaguez passara do limite aceitável:

-- Eu não estou bem... Sinto dor... Estou enjoada...

-- Senhor pare o carro agora!

                O taxista obedeceu, mas o estado da jovem não melhorara como esperado.

-- Moça, é melhor levar sua amiga pro hospital, tem um daqui a duas quadras. – O taxista aconselhou.

                Natalia concordou, e lá permaneceu com a amiga até a madrugada dar lugar ao novo dia. Passou a noite em claro, não só por preocupação com a colega, mas, principalmente pela angústia de não conseguir falar com Diana para esclarecer o desencontro da noite. Quando finalmente foi liberada pelo hospital, levou Gisela para república, aproveitou que todas dormiam e no mesmo táxi seguiu para o apartamento de Diana.

                Como era conhecida do porteiro, Natalia subiu direto sem problemas. As insistentes batidas na porta e na campainha foram proporcionais à pressa dela se explicar com Diana.
A loirinha despertou assustada, aliás, não só ela, a sua hóspede no sofá também.

                Sheila praticamente desabou do sofá, amargando a ressaca previsível com a náusea insuportável. Sem conseguir identificar onde estava Sheila apertou os olhos, e pensou alto:

-- Puta que pariu! Onde estou?

                O mal estar da moça compôs a urgência que justificou sua eficiência em achar o banheiro naquele apartamento desconhecido, no trajeto, encontrou Diana apressada pelo corredor, esfregando os olhos, trajando apenas uma camiseta surrada e um short minúsculo, a loirinha abriu a porta, se deparando com Natalia que ansiosa se precipitou em suas desculpas:

-- Di eu vim assim que pude, precisava te explicar pessoalmente, aconteceu tanta coisa...

                Natalia falava atropelada até ser interrompida pelo barulho do que parecia alguém derrubando vidros no chão. Sem cerimônia Natalia forçou a entrada, adentrando no apartamento. Qual não foi sua surpresa, melhor dizendo, sua desilusão, ao encontrar no corredor, Sheila envolvida em apenas uma toalha.

                Diana não teve tempo de sequer tomar ciência do quanto aquele cenário a incriminava, ao menos conseguiu discernir a sua suposta culpa, e antes que fosse forçada pelas circunstâncias a pronunciar o clichê: “Não é nada disso que você está pensando”, viu Natalia lhe encarar por milésimos de segundos com lágrimas nos olhos, balançando negativamente a cabeça, demonstrando sua mágoa pela dedução feita, agora a loirinha se dava conta do que aquela confusão se transformara aos olhos de Natalia. Mas, não havia mais tempo ou clima, espaço ou justificativa para explicações.

                Natalia bateu a porta com violência deixando o apartamento e mais uma chance de reiniciar seu entendimento com sua amada. Diana permaneceu inerte. Não por falta de vontade de escutar as explicações de Natalia e passar por cima de tudo para retomar o namoro, não pela ausência de motivos para não permitir que ela se afastasse alargando o fosso existente com mais um desencontro. Diana não se moveu por lhe faltar energia para mais uma discussão, sentia-se fatigada de lutas e concluiu interiormente:

-- Ela não viu nada e tirou a conclusão sozinha, não vou lutar para que ela acredite em mim.

                Sheila ainda aturdida com o que testemunhara acrescida a sua ressaca se limitou a explicar o que não sabia se tinha importância aquela altura.

-- Eu... Acho que preciso me desculpar, mas, juro que não imaginava, aliás, nem sei o que imaginar... Sujei minhas roupas acidentalmente e...

-- Sheila poupe as explicações. Só me faz um favor, esqueça o que você viu, quem você viu e vá para casa. Preciso ficar sozinha, desculpe-me.

************

                A noite que Sheila passara inconsciente no apartamento de Diana, na sua versão fantasiosa e vil, se transformou na narração de uma tórrida e inconsequente maratona de sexo lésbico depois de muito álcool e paquera na festa das repúblicas. Os boatos se espalharam nas rodinhas dos estudantes, pouco importava a veracidade dos fatos, especialmente porque Sheila ainda tinha o desejo não saciado de fazer acontecer tal fantasia, e para tanto, sabia agora que era necessário tirar Natalia do seu caminho.

                Exausta de estar vez por outra envolvida nessas fofocas pós-festa, Diana não perdeu seu tempo negando o que acidentalmente escutava, aprendera com a experiência de anos naquela faculdade, que essas histórias apesar de fugazes, alcançam uma proporção inenarrável, fazendo-a lembrar na parábola que sua mãe lhe repetira desde a adolescência: se você jogar um saco de penas de cima do telhado, por mais leves que elas sejam, algumas se perderão e rapidamente serão espalhadas pelo vento, você pode até recuperar grande parte delas, mas nunca todas, assim são as palavras quando pronunciadas. Dessa forma, Diana fez-se de surda. Mergulhou no seu novo projeto de trabalho, despendendo todas suas energias nele, fugindo da violenta falta que Natalia lhe fazia, driblando sua saudade e seu ímpeto de lhe procurar.

                Natalia, no entanto, não conseguiu ficar surda às fofocas que surgiam de todas as formas, algumas com detalhes que beiravam a comicidade de tão irreais que se apresentavam, fazendo-a suspeitar enfim que tudo não passava de um amontoado de mentiras. Tal conclusão não foi o suficiente para fazê-la procurar Diana. A exemplo da loirinha, Natalia se sentia cansada, frustrada, desiludida com relacionamentos, com as pessoas. A fofoca sobre Sheila e Diana poderia até ser falsa nas bizarrices, mas, o que mais justificaria a presença dela no apartamento de Diana àquela hora, naqueles trajes, depois de uma noite de flerte descarado e de seu suposto bolo em Diana? Sua história conturbada com Diana, os acontecimentos que a cercaram, tudo parecia contra elas. E o que dizer do seu relacionamento com os rapazes? Motivações que surgiram com amizades inocentes, ou paqueras descompromissadas, evoluíram para ataques criminosos, relações possessivas e desejos desenfreados.  Por tudo isso, Natalia optou por se defender de mais decepções, mas, era Diana seu primeiro pensamento ao acordar e o último antes de dormir. Por dias, nutria o desejo de ao menos vê-la de longe, inconscientemente alimentando a esperança de que o destino as aproximasse mais uma vez.

                Mas, não foi o destino que as aproximou. Sentindo-se humilhada por Diana continuar a rejeitá-la, Sheila foi teatral para protagonizar uma discussão de casal com Diana, na biblioteca, onde as equipes de trabalho de IED se reuniam.

-- Posso ir pra sua casa depois que terminarmos o trabalho?

                Sheila perguntou acariciando o braço de Diana, diante de todos, inclusive de Natalia.

-- Eu vou trabalhar quando sair daqui Sheila.

                Diana respondeu seca, constrangida procurando Natalia com o olhar a fim de observar sua reação. Natalia estava atenta, assim como os demais que as cercavam.

-- Não importa, me dá a chave do apartamento que te espero lá.

                Diana franziu o cenho, estranhando o súbito ataque de intimidade que Sheila demonstrava.

-- Por que eu te daria a chave do meu apartamento Sheila?


-- Não precisa ficar tímida minha linda, comigo você não precisa esconder nada, não tenho problema em mostrar o que temos.

                Sheila falou encarando Natalia.

-- Sheila para com isso, por favor! – Diana falou trincando os dentes.

-- Do que tem medo Diana? Que eu tire a máscara de santa de certas pessoas nessa mesa?

                O clima de tensão se instalou de vez. Natalia empalideceu. As trocas de olhares entre Diana, Sheila e ela deixava evidente que naquela mesa só elas três compreendiam o que estava nas entrelinhas.


-- Chega! Vamos voltar a fazer o trabalho, depois nós conversamos Sheila.

                Diana tentou encerrar a discussão antes que a garota falasse demais.

-- Dessa vez você não vai me enrolar viu meu amor? Espero não ter interrupções de nenhuma caipira arrependida pelo que perdeu.

                O ataque foi tão claro, que Natalia chegou a sentir fisicamente. Involuntariamente partiu ao meio o lápis que segurava tamanha era sua tensão. Diana perdeu a compostura, segurou Sheila pelo braço e a arrastou para fora da biblioteca depois do terceiro pedido de silêncio de Dona Miriam, a bibliotecária.

-- O que você pensa que está fazendo Sheila?

                Diana cochichou irritada no canto do corredor, empurrando Sheila para baixo de um lance de escadas.

-- Estou fazendo o que aquela sonsa não faz: estou lutando por você!

-- Pois me deixe informar: você está conseguindo exatamente o contrário, se eu tinha alguma atração por você, ela sumiu, acabou depois dessa tarde. Você extinguiu toda possibilidade de termos uma aventura sequer.

-- Não é justo isso! Ela não te quer! É uma jeca! Estava lá morrendo de medo que eu a desmascarasse, com aquele jeitinho de menina hetero perfeitinha, certinha.

-- Não se trata dela, se trata desse papel ridículo que você está fazendo. O que acha que vai conseguir me chantageando pra ficar com você? Não percebe o quanto isso é humilhante?

                Sheila se calou. Pareceu ter pela primeira vez a dimensão do jogo equivocado que escolheu para seduzir Diana. Tentou abraçar a loirinha, chorando sua vergonha, penalizada Diana retribuiu o abraço e só então percebeu que era assistida por Natalia. Outra vez não houve discussão, as conclusões foram subentendidas por ambas.

******

                O ataque de Sheila apesar de não ter declarado a verdade sobre Natalia e Diana claramente, deu margem para especulações que abalaram a moça do interior, se vendo mais uma vez como assunto de fofocas pelos corredores e banheiros do curso de Direito.

                A gota dágua foi uma discussão fatídica na aula de IED, a polêmica sobre adoção de crianças por casais homossexuais. Instigados por Dorothea, os alunos explanaram diversos pontos de vista, alguns nitidamente homofóbicos, combatidos com veemência pela professora. No calor do combate de opiniões, Henrique lançou a pergunta para Natalia que até então se mantinha serena no domínio do assunto usando os princípios do Direito para embasar sua opinião.

-- E aí Natalia? Você e a Diana já pensaram em quantos vão adotar?

                Depois de algumas risadas e burburinhos, com muito esforço, Dorothea conseguiu o silêncio da sala e sabiamente mudou o foco da aula, notando os olhos de Natalia marejarem e Diana apertar as unhas contra as palmas das mãos. Certamente o gesto da professora não objetivava proteger Diana, mas uma retirada estratégica precisava manter o controle, uma vez que acerca desse assunto, Dorothea estava alheia, e nada que dissesse respeito à vida da filha do senador Acrisio poderia passar despercebido por ela, precisava se inteirar daquela insinuação, acreditando que lhe seria útil em algum momento.

                Ao final da aula, Natalia saiu em disparada. Não queria enfrentar mais piadas preconceituosas, mais fofocas e insinuações, nem tampouco os olhares cheios de suspeitas de suas colegas mais próximas.

                Preocupada com a situação de Natalia, uma vez que para a loirinha aquele tipo de diálogo não era novidade, Diana pensou que naquele momento, Natalia precisava dela, pelo menos com seu colo. Tinha necessidade de ampará-la, de cuidar, acolher. Assim, enviou uma mensagem de texto para a ex.

-- “Precisamos conversar. Espero você nesse endereço no final da tarde”.

                Diana escreveu o endereço do seu estúdio temporário no bairro da Liberdade e no horário marcado, com o coração quase saltando à boca diante de qualquer movimentação no prédio, aguardou Natalia bater à porta.

                Era quase noite quando enfim, a loirinha sentiu a chegada de Natalia antes mesmo de ela bater à porta de madeira antiga. Sentiu seu perfume adentrar o espaço, despertando suas memórias, transportando-a aos momentos nos quais a teve em seus braços, e sorriu ouvir as batidas.

-- Desculpe a demora, me perdi algumas vezes até chegar aqui de ônibus.

                Diana sorriu e abriu espaço para que Natalia entrasse. Por alguns minutos a menina observou o lugar, as esculturas dispostas, os equipamentos montados. Fez menção de perguntar algo a respeito daquele cenário, mas não o fez por amargar o fato incômodo e doloroso de não mais participar da vida de Diana, o desconhecimento dela acerca daquele cenário era mais um sinal do distanciamento de suas vidas em um curto espaço de tempo, o mesmo tempo curto que as uniu, teve a intensidade de separá-las.

                Quando o campo de visão de Natalia se estreitou, e nada mais daquele ambiente desconhecido lhe desviou a atenção, ela encontrou os olhos de Diana. A loirinha a contemplava, com um pensamento bem diferente:

-”Deus, como ela está linda! Eu a amo?”

                As indagações íntimas de Diana davam ao seu olhar um brilho apaixonado. Natalia se desarmou do seu abatimento ao ler sua amada e caminhou dois passos em sua direção, gesto repetido por Diana e sem nada falarem caminharam juntas até ficarem frente a frente e se entregarem a um longo abraço, cheio de saudade, carregado de esperanças e puro como os sentimentos que as uniam.

                Por minutos permaneceram com os corpos fundidos. Pele com pele, face com face, corações batendo no mesmo compasso acelerado, e as palavras... Bem essas não ousaram interromper aquela harmonia. Os lábios expressaram o que era urgente, o que vital: tocaram-se delicadamente, desenharam um sorriso honesto e voltaram a se encontrarem. Trêmula Diana contornou os lábios de Natalia com a ponta dos dedos, em seguida colheu uma lágrima emocionada que riscava sua bochecha rosada.

                Natalia fechou os olhos como se quisesse guardar cada detalhe daquele momento, perpetuando a digital da loirinha em seu rosto. Diana beijou seus olhos, afastou uma mecha de cabelos e tomou sua boca com um beijo faminto, Natalia sentiu seu ventre estremecer, abriu sua boca para exploração da língua quente de Diana que saboreava sem pressa aquela entrega.

                Pausaram o beijo e trocaram um sorriso puro. Natalia fez menção de falar, mas Diana a calou com um beijo delicado.

-- Di... Você me chamou para conversarmos...

-- Nós estamos conversando, não percebeu?

                Sorriram. Trocaram outro beijo e Diana cedeu à necessidade de se entenderem de outra forma.

-- Venha, sente-se aqui.

                Sentaram-se em meio a um acolchoado na janelas laterais espaçosas. Natalia acomodada no peito de Diana, recebendo seu carinho, sentiu-se segura, mas, sabia que isso não era o bastante.

-- Sobre o que aconteceu hoje na aula de IED... Eu sei que te afetou, eu quis dar uma resposta na hora, mas sabia que não valia a pena, e poderia confirmar os boatos, te defendendo apaixonadamente.

-- Não merecia resposta.

-- E sobre a Sheila...

                Natalia a encarou esperando a declaração.

-- Não aconteceu nada entre nós. Na noite da festa, eu te esperei por mais de uma hora dentro do carro, a vi passando mal, tive pena de deixá-la sozinha, ela só dormiu no meu sofá, estava só de toalha porque suas roupas estavam sujas de vômito.

-- Você espera mesmo que eu acredite nisso?

-- Por que não? – Diana retrucou indignada.

-- A Sheila está agindo como sua namorada, e você permite assim sem que tenham nada?

-- Você está se esquecendo do pequeno detalhe dela ter te visto e sutilmente ameaçado espalhar isso, como começou a fazer...

-- Isso não me convence Diana.

                 Natalia baixou os olhos. Diana ponderou o que falar, mas deixou escapar o ressentimento.

-- Depois de tudo que fiz, depois do espaço que te dei depois que fiquei passivamente esperando que as coisas se acalmassem e você voltasse pra mim... Não te pressionei, não fiquei com ninguém enquanto te via namorar o Pedro... Perdi a amizade do Lucas e tive que me afastar do Pedro também, meus melhores amigos. Fui fiel ao que sinto por você, nunca esperei dez minutos por alguém, estou te esperando há meses... Passei uma hora dentro do meu carro naquela noite, por que você não teve coragem de aparecer comigo em público, respeitei isso...

-- Você fala como se pra mim tivesse sido um período fácil.

-- Sei que não foi. Sei que não está sendo. Mas, o que eu queria era estar ao seu lado agora, e não posso.

-- Por isso, fez a fila andar...

                Diana afastou Natalia, pôs-se de pé, andou de um lado para outro e disse em tom magoado:

-- Não é possível que você ainda duvide do que sinto por você. O que preciso fazer mais para confiar em mim? Talvez se eu me jogar na frente de um carro pra te salvar não é?

-- Como você tem coragem de dizer isso? Sabe o que me custou esse ato heroico dele! Sabe o que custou a ele essa bravura, e você ironiza isso? Você não leva nada a sério Diana?

-- Natalia acho que você não me lê tão bem quanto acha. Não me conhece, só por fazer essa pergunta, vejo que não me conhece.

                O tom de Diana era de mágoa. Não demorou a Natalia se dar conta do quão injusto estava sendo com a loirinha.

-- Di me desculpe. Estou muito atordoada com tanta coisa acontecendo em minha vida. Agora esses boatos, eu não achei que era tão vulnerável a preconceitos, mas tenho ouvido cada coisa... Fiquei apavorada, assustada, não sei se consigo enfrentar isso...

-- Eu nunca disse que seria fácil, mas se estivéssemos juntas, seria menos doloroso enfrentar isso.

-- Não consigo Diana. Quando estou assim com você, só nós, é perfeito, me sinto a mulher mais forte do mundo, acredito na nossa felicidade. Mas, basta nos afastarmos e encarar a realidade vejo como sou vulnerável, vejo o quanto ainda tenho daquela menina do interior superprotegida pela família, vejo o quanto sou insegura, ciumenta. Estou enfrentando meus traumas alguns preciso até de ajuda profissional para tratar, tenho medos que me impedem de fazer tanta coisa, inclusive te amar como você merece, como eu quero te amar.

-- Então me deixa te ajudar a enfrentar isso Nat!

                Diana suplicou, sentando-se mais uma vez perto de Natalia segurando suas mãos.

-- Di... Não tenho nenhuma estrutura emocional para fazer isso agora. Em menos de seis meses nós brigamos mais do que meus pais em 25 anos de casados.
                Natalia brincou arrancando um sorriso de Diana.

-- O que temos é tão forte, tão sagrado... Diana, eu te amo.

                Os olhos de Diana marejaram.

-- É por esse amor que não posso continuar assim. Sei que não tenho o direito de te pedir isso, mas preciso de um tempo pra resolver a confusão que se tornou minha vida.

-- Mais tempo Nat?

-- Di... Meu amor...

-- É uma tortura ficar longe de você, não vê que essa distancia nos maltrata? Não quero perder mais tempo separada de você!

-- Di... Quero te amar inteira. Estou aos pedaços. A gente não merece um amor assim, você não merece isso. Se continuar assim eu sei que vamos acabar destruindo as nossas chances com problemas que são tão menos importantes do que nós...

-- Eu não quero...

                Natalia afagou o rosto de Diana, segurou-os entre suas mãos, beijou seus olhos, enxugou suas lágrimas e prosseguiu:

-- Não quero macular nosso amor com sentimentos torpes, com a influência de preconceitos, com receios, restrições... Acredite em nós, me dá um tempo pra me encontrar pra que eu possa estar inteira nessa relação.

-- Não vou esperar a vida toda Nat.

                Diana soluçava enquanto tentava se convencer que Natalia estava certa.

-- É um risco que estou correndo. Mas, é minha vez de te deixar livre.

                Trocaram mais um beijo, dessa vez o sabor era salgado. Banhado a lágrimas. Natalia se desvencilhou com dificuldade de Diana, relutando em separar seus corpos. Quando enfim alcançou a porta, Diana gritou:

-- Espera!

                Diana a beijou com paixão e declarou:

-- Eu também te amo como nunca amei ninguém, e vou te amar pra sempre.

                Diante dessa declaração, Natalia não teve alternativa que não fosse se entregar ao momento. Amou Diana com toda intensidade que o instante lhe inspirava, selou cada pedaço de sua pele alva com seus beijos e sentindo uma dor dilacerante, a deixou dormindo, com a visão magnífica do seu corpo nu sob a luz dos letreiros coloridos, desejando que aquele corpo fosse seu quando se reencontrassem inteira para amá-lo.