quarta-feira, 25 de julho de 2012

Beautiful Dangerous - Quarto episódio


EPISÓDIO 4 – O início da lista


        Praia de Ipanema, manhã de domingo.

-- Deixa, deixa é minha!

                Fernanda berrou antes de se jogar na areia para alcançar a bola e levantá-la para a parceira de jogo fazer o ponto.

-- Yes! Isso aí parceira!

                Fernanda cumprimentou a parceira de jogo com uma típica tapinha no bumbum pelo set point do jogo que lhes deu a vitória.

                Assistindo ao jogo estava Gisele. Atenta não só a habilidade de Fernanda como jogadora, mas principalmente a excelente forma da policial, com as suas formas maravilhosas naquela pele bronzeada incrivelmente sensual.

-- E aí? Gostou do jogo?

                Fernanda perguntou pegando a garrafa de água que Gisele lhe oferecia.

-- Muito...

                Gisele disse medindo Fernanda dos pés a cabeça mordendo os lábios. Os óculos de sol no rosto de Gisele impediam Fernanda de ver o olhar de cobiça da amiga, mas o tom a denunciava. A policial ignorou mudando de assunto:

-- E aí? Cadê sua hóspede indesejável?

-- Sei lá... Deve estar se afogando por aí só pra pegar algum salva-vidas... Ela não para quieta Nanda! Ela muda tudo de lugar, cumpre todas as minhas vontades, só que ao contrário sabe?

                Fernanda acenou em acordo sorrindo.

-- Claro que sei. Você não lembra o que ela fazia com nossos planos de final de semana? A Dulce tinha sempre que mudar nosso roteiro.

-- Ela é especialista em mudar rotinas!

                As duas riram concordando.

-- Você se lembra do final de semana que combinamos de pegar uma corzinha lá em casa na piscina quando meus pais viajaram? Era um programa tipo, só de nós três, foi um sacrifício meus pais deixarem eu ficar só em casa, só deixaram porque meu tio se prontificou de nos dar assistência lá, já que morava vizinho.

-- Claro que lembro Nanda! A Dulce convidou metade da escola, e quando a gente se deu conta, tinha virado uma festa e seu tio chegou lá com a polícia!

                As duas gargalharam.

-- Fiquei dois meses de castigo! – Fernanda disse gesticulando.

-- É, foi pouco tempo depois do acidente com a...

                As duas se encararam e Gisele se cortou. Silenciaram como se tocassem em um assunto proibido. Nesse momento Dulce se aproximava ofegante.

-- Ai, a gente devia ter deixado o carro mais perto Gi!

                Dulce disse cortando a respiração e tomando a garrafa de agua da mão de Fernanda.

-- Eu deixaria se você não tivesse se assanhado toda quando viu uma dúzia de par de coxas cabeludas jogando futebol. – Gisele disse indignada.

-- Ah, bando de homem fraco, com uma mulher dessas como eu qual a graça de correr atrás de uma bola? Era pra eu ter vindo pra cá...

                Dulce disse olhando para as colegas de jogo de Fernanda.

-- Ow Dulce! Quando é que você vai se decidir entre um pinto e uma perereca heim?!

                Fernanda disse dando uma tapinha no braço de Dulce, tomando de volta a garrafa de água.

-- Por que eu preciso decidir? São só duas opções Nanda, não é um self service de 100 sabores de sorvete. É como a casquinha do Mc Donalds, baunilha e chocolate, escolho misto!

                Foi inevitável para Gisele rir.

-- É mesmo a confusão em pessoa... – Fernanda disse balançando a cabeça negativamente. – Vou dar um mergulho, alguém me acompanha?

                As amigas recusaram o convite. Fernanda deu de ombros, tirou o microshort que usava como saída de banho, exibindo o biquíni minúsculo e andou graciosa em direção ao mar, sob o olhar atento das amigas.

-- Eu toparia... Encararia tranquilamente... – Dulce disse se abanando.

-- O mergulho no mar? Então vai Dulce!

-- Que mané mergulho! Estou falando da Nanda!

-- Da da da Nanda?!

-- Que que é? Acha que só você pode?!

-- Eu?! Você está louca Dulce? O que tinha nessa água que você bebeu?

-- Ah pra cima de mim Gisele? Você pensa que não sei o que vocês faziam naquelas aulas de reforço de biologia?!

-- Estudávamos oras!

-- Sei... Anatomia feminina né?

                Nervosa e ruborizada, Gisele balançava a perna negando a insinuação da amiga.

-- Não sei de onde você tirou isso!

-- Ah fala sério! Vocês chegavam no dia seguinte com chupões no pescoço, arranhões... Com cada desculpa esfarrapada...

-- A gente tinha quatorze anos Dulce, a gente só treinava beijo pra não fazer feio com os meninos!

-- Sei...

                Dulce encarou Gisele com um olhar irônico. Fernanda voltou do mar ainda mais sexy com as gotas de água escorrendo por sua pele.

-- Está quente mesmo hoje né gente?!

                Dulce disse secando a morena com os olhos.

-- Uhum... – Gisele concordou automaticamente.

-- Deviam dar um mergulho, a água está uma delícia.

-- Delícia mesmo... – Dulce disse observando Fernanda se vestir. – Quer dizer, parece estar uma delicia mesmo, assim, olhando... Verde...

                Gisele escondeu o riso.

-- Então gente, vamos almoçar? Tem um restaurante aqui perto que tem um peixe com molho de camarão fantástico! – Dulce disse.

-- Não vai dá gente, almoço em família hoje. Aniversário da vovó, eu não posso faltar. – Fernanda disse.

-- Ain! Aniversário da vó Mercedez? – Dulce perguntou.

-- É sim.

-- Nanda me leva! Sua mãe vai fazer aquela paella não vai? – Dulce falou melosa.

-- Com certeza! – Fernanda respondeu sacudindo as pontas dos cabelos molhados.

-- Ain... Nanda me leva! – Dulce insistiu.

-- Imagina se vou levar você para o meu resto de domingo sossegado!

-- Nanda você não está entendendo! Eu sonho com essa paella todos esses anos... Já provei tantas, mas nenhuma se compara com a da sua mãe, eu imploro me leva!

                Dulce se ajoelhou diante de Fernanda dramatizando.

-- Levanta daí Dulce, deixa de palhaçada! – Fernanda disse.

-- Não levanto enquanto você não me disser que vai me levar. Minha boca já está salivando imaginando aquele sabor...

                Fernanda puxou a amiga pelo braço e disse:

-- Tá! Eu levo!

-- Oba! Tá vendo como meu drama funciona?

                Dulce saltou, deu um beijo no rosto de Fernanda e piscou o olho para Gisele.

-- É muito besta mesmo! Eu teria te levado de qualquer jeito bobona! Minha mãe pediu que chamasse vocês.

-- Ah é? Por que você disse que não ia me levar então?

-- Só pra ver seu draminha, além do mais era uma fantasia minha, te ver ajoelhada diante de mim...

                Fernanda disse faceira, caminhando em direção ao carro e não ouviu o que Dulce deixou escapar, só Gisele escutou:

-- Minha fantasia também me inclui de joelhos diante de você, mas fazendo coisa bem mais interessante...

                Gisele arregalou os olhos.

-- O que foi que você disse Dulcinha?

-- Só disse que estou com água na boca! De imaginar minha fantasia se realizando... – Dulce cochichou a segunda frase.

-- Dulce! – Gisele repreendeu.

                Dulce ignorou a repreensão da amiga, feliz com o resultado de sua provocação, Gisele estava com as bochechas rosadas e o colo igualmente ruborizado, sinal de que estava nervosa.

-- Gi, não vai fazer xixi agora tá?

                Gisele dessa vez estapeou a amiga que saiu correndo.

*********


-- Nandita! Entre minha querida, dá cá um beijo na sua velha!

                Dona Mercedez, a aniversariante recepcionou a neta e as amigas.

-- Oi vozinha! Parabéns!  Trouxe isso para você – Fernanda entregou o embrulho de presente – Lembra se das minhas amigas do colégio? Dulce e Gisele.

-- Oi Dona Mercedez, parabéns!

                As duas amigas disseram juntas abraçando a senhora simpática.

-- Finalmente chegou heim Belita!

                A mãe de Fernanda, uma senhora de seios fartos, ancas largas, e um rosto belíssimo, se aproximava berrando.

-- Mãe! Não me chame por esse nome!

-- É seu primeiro nome! Belíssimo por sinal!

                Agustina disse abraçando a filha.

-- Tão belo como você. Mas que roupas são essas? Cheia de areia... Belita vá tomar um banho agora mesmo!

-- Mãe! Belita parece nome de cadela poodle!

-- Passa pro banho já!

-- Olha aí, até a senhora está me dando comandos de cachorro! – Fernanda protestou.

-- Belita não discuta comigo! Esse nome foi seu avô que te deu!

-- Foi por isso que a senhora o matou né vozinha? – Fernanda brincou.

                Dona Mercedez gargalhou.
-- Para de falar asneira menina! Vá tomar um banho e vestir uma roupa decente! Deixe-me falar com essas meninas lindas, como vão meninas?

                Agustina abraçou com ternura Dulce e Gisele enquanto Fernanda subia as escadas sob protestos.

                A família de Fernanda era de ascendência espanhola, como a maioria dos imigrantes europeus no Brasil chegou fugindo da miséria causada pela segunda Guerra Mundial. Construíram seu patrimônio que não era grande com muito esforço e trabalho. Não eram ricos, mas, gozavam de uma vida razoável.

 A casa espaçosa na zona norte do Rio, era a mesma da infância de Fernanda, lugar bastante conhecido tanto de Dulce, como de Gisele. Como era a casa mais próxima do Colégio Nossa Senhora das Graças, era sempre a mais visitada entre as amigas.

Cerca de meia hora depois de subir ao seu antigo quarto, Fernanda retornou usando um vestido estampado, pelo tamanho que estava em seu corpo, certamente era da sua adolescência.

-- Que hermosa! - Dona Mercedez disse ao ver a neta.

-- Mãe tá faltando uns vinte centímetros de pano nesse vestido!

                Fernanda reclamou puxando o vestido para baixo.

-- Belita se você puxar mais, vai mostrar os peitos!

                Agustina exortou trincando os dentes, disfarçando com um sorriso. As amigas de Fernanda não esconderam como se divertiam com a situação.

-- Vou servir o almoço, venham meninas! - Agustina convidou.

-- Está uma gracinha com esse vestido Belita! – Dulce provocou.

                Fernanda praticamente rosnou para a amiga. Gisele ao contrário não zombou do vestido juvenil e romântico da morena, esticou os olhos e conferiu as pernas torneadas da policial e suspirou.

                Depois do almoço, o qual Dulce se esbaldou, acomodaram-se no deck.

-- E vocês meninas? Casaram? Trabalham em que? – Agustina perguntou.

-- Sou jornalista. – Dulce foi a primeira a responder.

-- Eu sou... Trabalho em uma editora de livros. – Gisele foi evasiva.

-- Trabalhos sem risco, tranquilos, de moças estudadas. – Agustina alfinetou.

-- Mãe fala logo o que a senhora quer falar, vamo lá, fala! – Fernanda bufou.

-- Não estou querendo dizer nada Belita... Só estou comentando que suas amigas estão seguindo a carreira que começaram a construir em uma faculdade, só isso...

-- Mãe eu também estou seguindo minha carreira da faculdade!

-- Correndo atrás de bandido na rua? Minha filha não é bem isso que um advogado faz!

-- Você é advogada?! – Dulce perguntou surpresa.

-- Não, eu me formei em direito, tirei OAB, mas sou policial... – Fernanda retrucou. – Mãe, uso meu bacharelado na minha profissão, é bastante útil, também estou fazendo carreira. Quando a senhora vai entender isso? Nunca pensei em ser uma advogada almofadinha usando terninho risca de giz falando rebuscado num tribunal defendendo bandidos e safados! Minha intenção sempre seguir carreira na polícia.

-- Isso é verdade. Ela falava isso desde criança. Disse que ia ser a melhor policial de todas, e ela é – Gisele lembrou orgulhosa. – A senhora devia se orgulhar dela tia Agustina.

                Fernanda sorriu discretamente para Gisele em agradecimento.

-- Veja, não é que eu não me orgulhe da minha filha, ela é corajosa, destemida, sei que ela é muito boa no que faz. Mas meu coração de mãe sofre! Fico com o peito apertado quando assisto o noticiário anunciando troca de tiros entre policiais... Justo em uma cidade com Rio de Janeiro, todo dia morre alguém da polícia! – Agustina desabafou.

-- Mãe, eu já expliquei pra senhora. Sou uma investigadora, meu trabalho não é como um policial militar que fica nas ruas fazendo segurança... Claro que eventualmente persigo algum criminoso, alguns reagem à prisão, mas isso não é uma rotina...

-- Mesmo assim Belita! É arriscado!

                Agustina disse nervosa com os olhos marejados. Nesse momento, Dona Mercedez se aproximou dizendo:

-- Depois reclama que a menina não aparece aqui. Fica nessa choradeira sempre!

-- Ah mamacita! A senhora nem venha, sei que a senhora vive angustiada como eu! Quase põe fogo na casa todo dia acendendo uma caixa de vela pra tudo que é santo! Pensa que não escuto suas orações?

                Fernanda riu com as amigas.

-- E você devia fazer o mesmo! Rezar e só!

                Dona Mercedez afagou o ombro da filha depois sentou-se ao lado de Fernanda.

-- Nós temos muito orgulho da policial, da mulher que você se tornou minha querida, estamos sempre aqui rezando e torcendo por você. Mas, não nos maltrate tanto! Apareça aqui de vez em quando pra visitar essas duas velhas viúvas que te amam tanto!

                Fernanda deu um beijo no rosto da avó e sorriu.

-- Tá bom abuela...

                Fernanda ainda segurou a mão de Agustina e disse:

-- Eu sei me cuidar mãe, não sofra tanto tá?

*********

                Da sua mesa, Fernanda observou Leticia saindo da sala de Wellington. Ferreira observando a mesma cena se aproximou comentando:

-- O delegado parece que se deu bem heim? Aliás, muito bem! Que gostosa que é essa doutora!

                Fernanda olhou para o colega com reprovação.

-- Ah qualé Garcia? Vai dizer que ela não é gostosa?

-- Vou dizer nada! Que tal parar de falar asneira e trabalhar? Fez o que pedi? Cruzou os dados da lista que te dei com fichas policiais?

-- Que humor heim?! Mas sim, fiz o que você me pediu. Mas daquela lista apenas cinco são fichados, delitos menores, nada sério.

-- É pode onde vamos começar.

-- Sessenta e cinco suspeitos é uma lista considerável... Você acha que conseguimos averiguar essa lista toda em quanto tempo? Tem cidades de todo estado aqui. 

-- É... Não será tarefa fácil, se tivermos sorte, eles vão colaborar nos fornecendo amostra por livre e espontânea vontade, se não, vai ser um trabalho de cão conseguir isso de outra forma!

-- Se pudermos filtrar mais essa lista, é melhor. – Ferreira comentou.

-- Também estou pensando nisso, especialmente porque esse casos notificados são só do Rio de Janeiro, e se o cara morava em outro estado quando contraiu essa doença?

-- Aí o caso foi notificado em outro estado né?

-- Hurrum... Vou conversar com a doutora Letícia e com a Gisele, quem sabe elas consigam descobrir mais elementos que nos ajudem a diminuir essa lista.

********

                Fernanda encontrou Leticia em sua sala, concentrada, mexendo em seu laptop.

-- Doutora Letícia? Posso entrar?

-- Oh!  Entre, por favor, investigadora.

-- Estou atrapalhando algo?

-- Nada que não possa esperar. Só terminando um artigo para publicar. Entre, sente-se, por favor.


                Fernanda aceitou o convite e se sentou diante da mesa de Leticia. O simples fato de estar perto da legista mexia com os sentidos da policial. O perfume doce da ruiva atiçava a vontade de estar mais próxima, aumentava a temperatura da sua pele, a visão dos traços delicados e gestos elegantes da médica despertava o descompasso do coração da morena, as mãos suavam até mesmo o tom da voz da ruiva, desestruturava Fernanda.


-- Então... O que a traz aqui agente Garcia?


                O efeito de Fernanda em Leticia não era diferente. Aquela tempestade de manifestações estranhas do seu corpo e pensamento era completamente nova para a legista.   Algumas delas ela não podia controlar: seu rosto corava, seus olhos brilhavam, a respiração acelerava. Aquela inquietude trazia para a vida de Leticia uma situação inédita, pela primeira vez, ela não tinha explicação para as reações que experimentava desde que conhecera Fernanda.

-- Agente Garcia?

                Letícia insistiu arrancando Fernanda da distração.

-- Ah! Oi, desculpa. Estou tentando diminuir aquela lista de suspeitos, vim pedir ajuda, de repente tem algo que você tenha notado... Enfim, algo que filtre um pouco mais esses resultados... Por que enquanto nós procuramos suspeitos, o assassino pode agir de novo, tempo é fundamental nesses casos...

-- Entendo. – Letícia respondeu pensativa.

-- Além do mais, são muitas amostras para coletar, contar com a boa vontade das pessoas...

-- É verdade, ninguém é obrigado a fornecer provas contra si mesmo não é?

-- É...

-- Agente Garcia, eu vou reler o laudo, rever o vídeo, se eu notar algo novo te digo.

-- Vou falar com a Gisele também. Ela ofereceu uma espécie de consultoria para traçar o perfil do assassino já que ele está se inspirando nos livros dela...

-- Ah! É uma boa ideia. Que gentil da parte dela se oferecer para isso.

                Fernanda concordou com um sorriso.

-- Amizades assim são raras, depois de tantos anos, vocês continuam tão íntimas, a Gisele parece confiar em você incondicionalmente.

-- É... Nem imaginava reencontrá-las, ainda mais nessa situação... Nós quatro fizemos mil planos de irmos até pra faculdade juntas, mas acabou que nos separamos bem antes disso...

-- Quatro?

                Antes que Fernanda explicasse, Wellington entrou na sala.

-- Com licença doutora. Garcia? Mudou de setor agora? Vive importunando a doutora Leticia agora?!

                Fernanda se preparava para responder a provocação do delegado quando Leticia interferiu:

-- A investigadora Garcia não me importuna, estávamos trabalhando delegado. Duas cabeças pensando juntas pensam melhor do que apenas uma, é como diz o dito popular.

-- Qualquer coisa que descobrir me avise doutora, por favor.


                Fernanda disse se levantando, em direção a porta, passou por Wellington. Como um cão aguçando o faro, aproximou o nariz do chefe e fez uma careta.

-- Credo delegado que perfume é esse? Enxofre com suor de gambá?!

-- Você é uma ignorante até no olfato! Saiba que esse perfume é francês!

-- Só se for o francês de um camelô lá do Saara!


                Leticia segurou o riso olhando para a careta de Fernanda. Wellington constrangido mudou de assunto para fugir da zombaria da policial:

-- Doutora eu vim convidá-la para almoçar. Inaugurou um restaurante italiano aqui perto, e pensei que pudéssemos experimentar. Que tal?


                Fernanda profundamente incomodada com o cerco do delegado à médica baixou os olhos, colocou as mãos no bolso da frente da calça como se quisesse ficar invisível. Letícia nada à vontade com a situação sem graça respondeu:

 – É... Eu estou com muito trabalho aqui, acho que não conseguirei nem almoçar hoje.

-- Que é isso doutora? Ficar sem almoçar? Como médica a senhora sabe que isso não está certo!

-- Vou comer uma salada que trouxe daqui a pouco. Obrigada delegado.

                Decepcionado, Wellington saiu da sala. Tentando disfarçar a satisfação pela recusa de Letícia, Fernanda brincou:

-- Ia sugerir que você exigisse que ele tomasse banho antes de sair com você...

                Letícia deixou um sorriso escapar.

-- Você acha mesmo que eu aceitaria almoçar ao lado dele?


                Fernanda balançou a cabeça negativamente sorrindo.

-- Vou deixar você trabalhar então.

                Trocaram um sorriso quase tímido sem esconder o brilho diferente no olhar uma da outra.
******

                Carol surpreendeu Fernanda no elevador. Outra vez, a policial carregava sacolas com comida.

-- Giullianos?  Você comprou comida no restaurante italiano novo?!

-- O que tem?

-- Nanda você almoça um PF de oito reais na padaria do portuga! E por que você está trazendo pra cá? E a cantina agora é no quinto andar?

                Carol encheu a amiga de perguntas.

-- Ai! Que interrogatório é esse? Coisa mais chata!

-- Nanda você está levando almoço pra doutora né? – Carol perguntou segurando o riso.

-- Não enche Carol!

                Fernanda disse saindo do elevador.

-- Investindo heim? Do dogão do Aguiar pro Giulianos...

                A policial fez um gesto qualquer aborrecido e caminhou em direção a sala de Leticia.

-- Doutora? Desculpe-me interromper de novo, mas ouvi você comentando que estava com muito trabalho e que não teria tempo de almoçar... Trouxe algo para você comer.

-- Aquele cachorro quente? Jura? Estava desejando um...

-- Ops...

                Fernanda apertou um dos olhos e disse para decepção da médica:

-- Na verdade é algo um pouco mais sofisticado...

-- Oh... – Letícia suspirou frustrada.

-- Ouvi o delegado falando do restaurante italiano e... Achei que te devia uma refeição decente, já que te fiz comer aquela gororoba em forma de hot dog...


                Fernanda disse acomodando as sacolas sobre a mesa de centro. Leticia se aproximou retrucando:

-- Aquela gororoba como você fala, foi uma das refeições mais saborosas que já fiz em toda minha vida.

                Fernanda sorriu sincera.

-- Duvido que essa sofisticação do restaurante que o delegado sugeriu supere o dogão do Aguiar, mas, deve servir para matar a fome, mais do que uma saladinha sem graça que você trouxe de casa não é?

                Leticia sentou-se ao lado de Fernanda sorrindo.

-- Agente Garcia, você está me acostumando mal...

-- Não se acostume! Não sou sempre tão prestativa não...

               
                Letícia serviu-se da massa trazida por Fernanda.

-- Hum... Quatro queijos?

-- Não gosta? – Fernanda indagou temerosa.

-- Imagina! Adoro! Sou uma apaixonada por queijos e vinhos.

-- Bom saber...

                Fernanda deixou escapar, depois provou do seu prato. O molho ao sugo do macarrão espalhou-se além do canto da boca da morena, e foi a vez de Leticia rir da lambança feita pela policial.

-- Deixe-me limpar isso...

                Com delicadeza Leticia alcançou o guardanapo e limpou a boca de Fernanda. Os olhos se encontraram naquele gesto, e pareceram se iluminar imediatamente. Durante alguns segundos ficaram presas pelos olhos, sem conseguirem se desviar como se estivessem inevitavelmente unidas por um campo magnético indestrutível.


-- Já está limpo... – Letícia quase sussurrou.

-- Obrigada.

                Fernanda respondeu tímida. Conversaram amenidades durante o resto da refeição, trocando olhares de encantamento.

-- Eu preciso ir, verificar aquela lista de suspeitos...

-- Ah sim, claro. Não me esqueci do que você me pediu, assim que descobrir algo te comunico.

-- Obrigada doutora.

-- Letícia.

-- Isso, doutora Letícia.

-- Não... Eu quis dizer que... Basta me chamar de Letícia.

-- Ah! – Fernanda sorriu. – Tudo bem Letícia.

                As duas sorriram.

-- Então, vou indo...

                Fernanda caminhou de costas em direção a porta, como se quisesse retardar o máximo o final daquele encontro. Bateu as costas na maçaneta da porta, despertando um riso discreto de Letícia.

**************
                A busca pelas amostras de DNA dos suspeitos começou bem mais difícil do que os investigadores calculavam. Naquela tarde, Fernanda e Beto perseguiram no morro da Mangueira um dos suspeitos que reagiu a abordagem dos policiais, uma vez que era fichado por tráfico de drogas.

                Fernanda conseguiu prendê-lo, mas para isso, saltou de uma laje, e na queda sofreu além muitas escoriações, um grande corte na testa. A policial chegou ao departamento coberta de sangue, usando seu casaco para estancar o sangue no corte, enquanto Beto arrastava o suspeito algemado.

-- Mas que diabos foi isso? Garcia você está ferida?! Por que não está no hospital?! – Wellington perguntou em tom de exortação.

-- Um arranhãozinho de nada chefe, fica frio.

-- Você está banhada de sangue Garcia! Vá cuidar desse corte agora!

-- Ow raça mole é homem viu! Não pode ver um sanguezinho e fica aí dando xilique. Já disse não é nada demais, é jogar uma água e colocar um band-aid e pronto!

-- Garcia sem papo! É uma ordem! Não quero processo disciplinar contra mim depois!

-- Eu tenho um preso para interrogar!

-- Não, você tem uma cabeça pra costurar! O Beto cuida do preso!

                A discussão do delegado com Fernanda só cessou com a chegada de Leticia.

-- Fernanda! O que houve? Você foi ferida?! – A médica perguntou angustiada.

-- Só um cortezinho de nada doutora, nada demais.

-- Deixe-me ver isso... Ups... Isso precisa ser suturado... Vamos, vamos para o laboratório, tenho material lá, vamos dar um jeito nisso.

-- Não é necessário...

-- Garcia!

                Wellington bradou. Como criança contrariada, Fernanda bateu os pés e saiu irritada em direção ao elevador, sendo seguida por Letícia.

********

-- Nossa, isso está feio... De que altura você caiu?

-- Ah foi de uma laje, sei lá, uns quatro metros... Nada demais... Aii!

-- Desculpe, mas tenho que limpar primeiro...

                Fernanda fazia caretas de dor e gemia a cada vez que Leticia passava a compressa de gaze pelos ferimentos. A médica se aproximou com uma seringa para a surpresa e pavor da policial que saltou do banco imediatamente.

-- Ei! O que é isso aí? Injeção?! Não mesmo! Tô fora!

-- Mas... Fernanda eu preciso anestesiar você! Ou você prefere que eu costure sua testa sem anestesia?

-- E por que precisa usar anestesia assim numa injeção?! Use uma pomadinha!

                Fernanda se esquivava, enquanto Leticia sorria incrédula.

-- Pomadinha? Eu preciso suturar várias camadas da sua pele, uma pomadinha não ia adiantar nada. Eu não estou acreditando nisso. Uma mulher desse tamanho, que se joga de uma laje pra prender bandido está com medo de uma agulhinha!

-- Agulhinha nada! Olha o tamanho aí! Isso dá pra perfurar um cérebro!

-- Agente Garcia não me faça correr atrás de você!

                Letícia mudou o tom de voz franzindo o cenho, mas isso só amedrontou ainda mais Fernanda que correu, mas foi barrada por Gisele que entrava no laboratório.

-- Opa! Está com pressa Nanda?

-- Segura ela!

                Leticia berrou segurando a seringa.

-- Ow ow... Eu já vi essa cena... Fernanda correndo, uma seringa atrás...

                Gisele deixou escapar sem dar espaço para Fernanda passar.

-- Sai da frente Gisele! – Fernanda tentava empurrar a amiga.

-- O que está acontecendo doutora? Isso é sangue na sua roupa Nanda?!

-- Estou tentando dar uns pontos nesse corte aí, mas ela correu quando viu a agulha da anestesia!

-- Fernanda Garcia! Tenha vergonha! – Gisele exortou.

-- Sai da frente Gisele, ou eu te derrubo!

                Fernanda falou grosso, quando finalmente conseguiu empurrar Gisele e correr, tropeçou no pé de Dulce que estava à espreita quando percebeu a movimentação levando Fernanda ao chão. Imediatamente rendeu a policial aplicando uma chave de braço e disse:

-- Vai doutora, aplica logo!

                Um tanto quanto assustada, Leticia aplicou a anestesia no local da sutura sob os protestos de Fernanda.

-- Dulce você me paga essa!

-- Você me ameaça desde a segunda série! Mas sempre deu certo meu golpe! Em todas as campanhas de vacinação! Sou pequena, mas tenho braços fortes...


                Dulce se vangloriou exibindo seus pequenos bíceps, enquanto Leticia ajudava Fernanda a se sentar na poltrona.

-- Você é muito forte e habilidosa mesmo Dulce, surpreendente... – Letícia comentou.

-- Posso surpreender muito mais doutora...

                Dulce fez charme, enquanto Fernanda praticamente rosnou para a jornalista com o olhar. Nervosa com o tom de flerte de Dulce, Leticia espetou a agulha em um ponto não anestesiado.

-- Ai doutora! – Fernanda reclamou- Posso saber o que vocês duas estão fazendo aqui? – Fernanda indagou.

-- Viemos falar com você. Pensamos em algo que pode ajudar no caso. – Gisele respondeu.

-- O que? Fala Gisele!

-- Percebemos que o assassino tem seguido o padrão de tempo de uma vítima para outra. Da primeira para a segunda vítima foram dez dias. Já se passou uma semana da morte da segunda vítima, isso nos leva a supor que ele está se preparando para o terceiro crime que deve ocorrer daqui a três semanas. – Dulce resumiu.

-- Se esse doido está imitando seu livro, temos três semanas para encontra-lo, legal, mas isso não nos ajuda muito. Ai Leticia! – Fernanda gemeu.


-- Desculpe-me. – Leticia fez uma carinha de culpa.

-- Nanda pode ajudar, se considerarmos que ele utilizará o mesmo método para matar a terceira vítima. – Gisele completou.

-- Então nós temos que torcer para ele seguir o padrão do livro, esperar ele fazer uma terceira vítima?- Fernanda ironizou.

-- Você precisa ler meu livro Nanda... Claro que não estou falando de esperar passivamente a morte de outra mulher! Mas, se sabemos como ele vai matar, sabemos que ele está se preparando, sabemos que arma ele vai usar, que cenário ele vai precisar para imitar o livro. – Gisele explicou.

-- Continue...

                Fernanda escutava atenta, enquanto Leticia continuava a suturar sua testa.

-- No meu livro, a terceira vítima foi afogada na banheira de um motel.

-- Ah ótimo! Quase não temos motel no Rio de Janeiro, vai ser fácil... No dia 14 do próximo mês montamos guarda em todos os quartos com banheira dos motéis do estado. – Fernanda foi sarcástica.

-- Até agora vocês não atentaram para um detalhe... – Dulce interrompeu – As drogas que ele utiliza para dopar as vítimas são de uso restrito, controlado. Podem investigar os meios lícitos para consegui-las, quem as comprou no último mês, ou se algum funcionário que tem acesso a essas drogas se encaixa no perfil que vocês já tem.

-- Isso é como procurar agulha no palheiro... Não é uma droga tão incomum, em qualquer posto de saúde ou hospital pode ser encontrada, pelo menos o diazepan injetável sim. – Letícia comentou.

-- É outro caminho que podemos seguir doutora. Não vai ser difícil identificar se algum funcionário de hospital ou unidade de saúde tem esse tipo de deficiência na mão. Quem sabe tenhamos sorte. – Fernanda disse.

-- Acho que nós quatro formamos uma boa equipe. Pensamos bem juntas – Dulce comentou.

                Leticia balançou a cabeça positivamente concluindo o curativo em Fernanda.

-- Acho que somos mesmo sinônimo de perigo e confusão!

                Fernanda disse se levantando.
-- Bonitas e perigosas, combinação perfeita.

                Gisele disse arrancando um sorriso das demais.