EPISÓDIO 4 – O
início da lista
Praia de Ipanema, manhã de domingo.
-- Deixa, deixa é minha!
Fernanda
berrou antes de se jogar na areia para alcançar a bola e levantá-la para a
parceira de jogo fazer o ponto.
-- Yes! Isso aí parceira!
Fernanda
cumprimentou a parceira de jogo com uma típica tapinha no bumbum pelo set point
do jogo que lhes deu a vitória.
Assistindo
ao jogo estava Gisele. Atenta não só a habilidade de Fernanda como jogadora,
mas principalmente a excelente forma da policial, com as suas formas
maravilhosas naquela pele bronzeada incrivelmente sensual.
-- E aí? Gostou do jogo?
Fernanda
perguntou pegando a garrafa de água que Gisele lhe oferecia.
-- Muito...
Gisele
disse medindo Fernanda dos pés a cabeça mordendo os lábios. Os óculos de sol no
rosto de Gisele impediam Fernanda de ver o olhar de cobiça da amiga, mas o tom
a denunciava. A policial ignorou mudando de assunto:
-- E aí? Cadê sua hóspede
indesejável?
-- Sei lá... Deve estar se
afogando por aí só pra pegar algum salva-vidas... Ela não para quieta Nanda!
Ela muda tudo de lugar, cumpre todas as minhas vontades, só que ao contrário
sabe?
Fernanda
acenou em acordo sorrindo.
-- Claro que sei. Você não lembra
o que ela fazia com nossos planos de final de semana? A Dulce tinha sempre que
mudar nosso roteiro.
-- Ela é especialista em mudar
rotinas!
As
duas riram concordando.
-- Você se lembra do final de
semana que combinamos de pegar uma corzinha lá em casa na piscina quando meus
pais viajaram? Era um programa tipo, só de nós três, foi um sacrifício meus
pais deixarem eu ficar só em casa, só deixaram porque meu tio se prontificou de
nos dar assistência lá, já que morava vizinho.
-- Claro que lembro Nanda! A
Dulce convidou metade da escola, e quando a gente se deu conta, tinha virado
uma festa e seu tio chegou lá com a polícia!
As
duas gargalharam.
-- Fiquei dois meses de castigo!
– Fernanda disse gesticulando.
-- É, foi pouco tempo depois do
acidente com a...
As
duas se encararam e Gisele se cortou. Silenciaram como se tocassem em um
assunto proibido. Nesse momento Dulce se aproximava ofegante.
-- Ai, a gente devia ter deixado
o carro mais perto Gi!
Dulce
disse cortando a respiração e tomando a garrafa de agua da mão de Fernanda.
-- Eu deixaria se você não
tivesse se assanhado toda quando viu uma dúzia de par de coxas cabeludas
jogando futebol. – Gisele disse indignada.
-- Ah, bando de homem fraco, com
uma mulher dessas como eu qual a graça de correr atrás de uma bola? Era pra eu
ter vindo pra cá...
Dulce
disse olhando para as colegas de jogo de Fernanda.
-- Ow Dulce! Quando é que você
vai se decidir entre um pinto e uma perereca heim?!
Fernanda
disse dando uma tapinha no braço de Dulce, tomando de volta a garrafa de água.
-- Por que eu preciso decidir? São
só duas opções Nanda, não é um self service de 100 sabores de sorvete. É como a
casquinha do Mc Donalds, baunilha e chocolate, escolho misto!
Foi
inevitável para Gisele rir.
-- É mesmo a confusão em
pessoa... – Fernanda disse balançando a cabeça negativamente. – Vou dar um
mergulho, alguém me acompanha?
As
amigas recusaram o convite. Fernanda deu de ombros, tirou o microshort que
usava como saída de banho, exibindo o biquíni minúsculo e andou graciosa em
direção ao mar, sob o olhar atento das amigas.
-- Eu toparia... Encararia
tranquilamente... – Dulce disse se abanando.
-- O mergulho no mar? Então vai
Dulce!
-- Que mané mergulho! Estou
falando da Nanda!
-- Da da da Nanda?!
-- Que que é? Acha que só você
pode?!
-- Eu?! Você está louca Dulce? O
que tinha nessa água que você bebeu?
-- Ah pra cima de mim Gisele?
Você pensa que não sei o que vocês faziam naquelas aulas de reforço de
biologia?!
-- Estudávamos oras!
-- Sei... Anatomia feminina né?
Nervosa
e ruborizada, Gisele balançava a perna negando a insinuação da amiga.
-- Não sei de onde você tirou
isso!
-- Ah fala sério! Vocês chegavam
no dia seguinte com chupões no pescoço, arranhões... Com cada desculpa
esfarrapada...
-- A gente tinha quatorze anos
Dulce, a gente só treinava beijo pra não fazer feio com os meninos!
-- Sei...
Dulce
encarou Gisele com um olhar irônico. Fernanda voltou do mar ainda mais sexy com
as gotas de água escorrendo por sua pele.
-- Está quente mesmo hoje né
gente?!
Dulce
disse secando a morena com os olhos.
-- Uhum... – Gisele concordou
automaticamente.
-- Deviam dar um mergulho, a água
está uma delícia.
-- Delícia mesmo... – Dulce disse
observando Fernanda se vestir. – Quer dizer, parece estar uma delicia mesmo,
assim, olhando... Verde...
Gisele
escondeu o riso.
-- Então gente, vamos almoçar?
Tem um restaurante aqui perto que tem um peixe com molho de camarão fantástico!
– Dulce disse.
-- Não vai dá gente, almoço em
família hoje. Aniversário da vovó, eu não posso faltar. – Fernanda disse.
-- Ain! Aniversário da vó
Mercedez? – Dulce perguntou.
-- É sim.
-- Nanda me leva! Sua mãe vai
fazer aquela paella não vai? – Dulce falou melosa.
-- Com certeza! – Fernanda
respondeu sacudindo as pontas dos cabelos molhados.
-- Ain... Nanda me leva! – Dulce
insistiu.
-- Imagina se vou levar você para
o meu resto de domingo sossegado!
-- Nanda você não está
entendendo! Eu sonho com essa paella todos esses anos... Já provei tantas, mas
nenhuma se compara com a da sua mãe, eu imploro me leva!
Dulce
se ajoelhou diante de Fernanda dramatizando.
-- Levanta daí Dulce, deixa de
palhaçada! – Fernanda disse.
-- Não levanto enquanto você não
me disser que vai me levar. Minha boca já está salivando imaginando aquele
sabor...
Fernanda
puxou a amiga pelo braço e disse:
-- Tá! Eu levo!
-- Oba! Tá vendo como meu drama
funciona?
Dulce
saltou, deu um beijo no rosto de Fernanda e piscou o olho para Gisele.
-- É muito besta mesmo! Eu teria
te levado de qualquer jeito bobona! Minha mãe pediu que chamasse vocês.
-- Ah é? Por que você disse que
não ia me levar então?
-- Só pra ver seu draminha, além
do mais era uma fantasia minha, te ver ajoelhada diante de mim...
Fernanda
disse faceira, caminhando em direção ao carro e não ouviu o que Dulce deixou
escapar, só Gisele escutou:
-- Minha fantasia também me
inclui de joelhos diante de você, mas fazendo coisa bem mais interessante...
Gisele
arregalou os olhos.
-- O que foi que você disse
Dulcinha?
-- Só disse que estou com água na
boca! De imaginar minha fantasia se realizando... – Dulce cochichou a segunda
frase.
-- Dulce! – Gisele repreendeu.
Dulce
ignorou a repreensão da amiga, feliz com o resultado de sua provocação, Gisele
estava com as bochechas rosadas e o colo igualmente ruborizado, sinal de que
estava nervosa.
-- Gi, não vai fazer xixi agora
tá?
Gisele
dessa vez estapeou a amiga que saiu correndo.
*********
-- Nandita! Entre minha querida,
dá cá um beijo na sua velha!
Dona
Mercedez, a aniversariante recepcionou a neta e as amigas.
-- Oi vozinha! Parabéns! Trouxe isso para você – Fernanda entregou o
embrulho de presente – Lembra se das minhas amigas do colégio? Dulce e Gisele.
-- Oi Dona Mercedez, parabéns!
As
duas amigas disseram juntas abraçando a senhora simpática.
-- Finalmente chegou heim Belita!
A
mãe de Fernanda, uma senhora de seios fartos, ancas largas, e um rosto
belíssimo, se aproximava berrando.
-- Mãe! Não me chame por esse
nome!
-- É seu primeiro nome! Belíssimo
por sinal!
Agustina
disse abraçando a filha.
-- Tão belo como você. Mas que
roupas são essas? Cheia de areia... Belita vá tomar um banho agora mesmo!
-- Mãe! Belita parece nome de
cadela poodle!
-- Passa pro banho já!
-- Olha aí, até a senhora está me
dando comandos de cachorro! – Fernanda protestou.
-- Belita não discuta comigo! Esse
nome foi seu avô que te deu!
-- Foi por isso que a senhora o
matou né vozinha? – Fernanda brincou.
Dona
Mercedez gargalhou.
-- Para de falar asneira menina!
Vá tomar um banho e vestir uma roupa decente! Deixe-me falar com essas meninas
lindas, como vão meninas?
Agustina
abraçou com ternura Dulce e Gisele enquanto Fernanda subia as escadas sob
protestos.
A
família de Fernanda era de ascendência espanhola, como a maioria dos imigrantes
europeus no Brasil chegou fugindo da miséria causada pela segunda Guerra
Mundial. Construíram seu patrimônio que não era grande com muito esforço e
trabalho. Não eram ricos, mas, gozavam de uma vida razoável.
A casa espaçosa na zona norte do Rio, era a
mesma da infância de Fernanda, lugar bastante conhecido tanto de Dulce, como de
Gisele. Como era a casa mais próxima do Colégio Nossa Senhora das Graças, era
sempre a mais visitada entre as amigas.
Cerca de meia
hora depois de subir ao seu antigo quarto, Fernanda retornou usando um vestido
estampado, pelo tamanho que estava em seu corpo, certamente era da sua
adolescência.
-- Que hermosa! - Dona Mercedez
disse ao ver a neta.
-- Mãe tá faltando uns vinte
centímetros de pano nesse vestido!
Fernanda
reclamou puxando o vestido para baixo.
-- Belita se você puxar mais, vai
mostrar os peitos!
Agustina
exortou trincando os dentes, disfarçando com um sorriso. As amigas de Fernanda
não esconderam como se divertiam com a situação.
-- Vou servir o almoço, venham
meninas! - Agustina convidou.
-- Está uma gracinha com esse
vestido Belita! – Dulce provocou.
Fernanda
praticamente rosnou para a amiga. Gisele ao contrário não zombou do vestido
juvenil e romântico da morena, esticou os olhos e conferiu as pernas torneadas
da policial e suspirou.
Depois
do almoço, o qual Dulce se esbaldou, acomodaram-se no deck.
-- E vocês meninas? Casaram?
Trabalham em que? – Agustina perguntou.
-- Sou jornalista. – Dulce foi a
primeira a responder.
-- Eu sou... Trabalho em uma
editora de livros. – Gisele foi evasiva.
-- Trabalhos sem risco,
tranquilos, de moças estudadas. – Agustina alfinetou.
-- Mãe fala logo o que a senhora
quer falar, vamo lá, fala! – Fernanda bufou.
-- Não estou querendo dizer nada
Belita... Só estou comentando que suas amigas estão seguindo a carreira que
começaram a construir em uma faculdade, só isso...
-- Mãe eu também estou seguindo
minha carreira da faculdade!
-- Correndo atrás de bandido na
rua? Minha filha não é bem isso que um advogado faz!
-- Você é advogada?! – Dulce
perguntou surpresa.
-- Não, eu me formei em direito,
tirei OAB, mas sou policial... – Fernanda retrucou. – Mãe, uso meu bacharelado
na minha profissão, é bastante útil, também estou fazendo carreira. Quando a
senhora vai entender isso? Nunca pensei em ser uma advogada almofadinha usando
terninho risca de giz falando rebuscado num tribunal defendendo bandidos e
safados! Minha intenção sempre seguir carreira na polícia.
-- Isso é verdade. Ela falava
isso desde criança. Disse que ia ser a melhor policial de todas, e ela é – Gisele
lembrou orgulhosa. – A senhora devia se orgulhar dela tia Agustina.
Fernanda
sorriu discretamente para Gisele em agradecimento.
-- Veja, não é que eu não me
orgulhe da minha filha, ela é corajosa, destemida, sei que ela é muito boa no
que faz. Mas meu coração de mãe sofre! Fico com o peito apertado quando assisto
o noticiário anunciando troca de tiros entre policiais... Justo em uma cidade
com Rio de Janeiro, todo dia morre alguém da polícia! – Agustina desabafou.
-- Mãe, eu já expliquei pra senhora.
Sou uma investigadora, meu trabalho não é como um policial militar que fica nas
ruas fazendo segurança... Claro que eventualmente persigo algum criminoso,
alguns reagem à prisão, mas isso não é uma rotina...
-- Mesmo assim Belita! É
arriscado!
Agustina
disse nervosa com os olhos marejados. Nesse momento, Dona Mercedez se aproximou
dizendo:
-- Depois reclama que a menina
não aparece aqui. Fica nessa choradeira sempre!
-- Ah mamacita! A senhora nem
venha, sei que a senhora vive angustiada como eu! Quase põe fogo na casa todo
dia acendendo uma caixa de vela pra tudo que é santo! Pensa que não escuto suas
orações?
Fernanda
riu com as amigas.
-- E você devia fazer o mesmo!
Rezar e só!
Dona
Mercedez afagou o ombro da filha depois sentou-se ao lado de Fernanda.
-- Nós temos muito orgulho da
policial, da mulher que você se tornou minha querida, estamos sempre aqui
rezando e torcendo por você. Mas, não nos maltrate tanto! Apareça aqui de vez
em quando pra visitar essas duas velhas viúvas que te amam tanto!
Fernanda
deu um beijo no rosto da avó e sorriu.
-- Tá bom abuela...
Fernanda
ainda segurou a mão de Agustina e disse:
-- Eu sei me cuidar mãe, não
sofra tanto tá?
*********
Da
sua mesa, Fernanda observou Leticia saindo da sala de Wellington. Ferreira
observando a mesma cena se aproximou comentando:
-- O delegado parece que se deu
bem heim? Aliás, muito bem! Que gostosa que é essa doutora!
Fernanda
olhou para o colega com reprovação.
-- Ah qualé Garcia? Vai dizer que
ela não é gostosa?
-- Vou dizer nada! Que tal parar
de falar asneira e trabalhar? Fez o que pedi? Cruzou os dados da lista que te
dei com fichas policiais?
-- Que humor heim?! Mas sim, fiz
o que você me pediu. Mas daquela lista apenas cinco são fichados, delitos
menores, nada sério.
-- É pode onde vamos começar.
-- Sessenta e cinco suspeitos é
uma lista considerável... Você acha que conseguimos averiguar essa lista toda
em quanto tempo? Tem cidades de todo estado aqui.
-- É... Não será tarefa fácil, se
tivermos sorte, eles vão colaborar nos fornecendo amostra por livre e
espontânea vontade, se não, vai ser um trabalho de cão conseguir isso de outra
forma!
-- Se pudermos filtrar mais essa
lista, é melhor. – Ferreira comentou.
-- Também estou pensando nisso,
especialmente porque esse casos notificados são só do Rio de Janeiro, e se o
cara morava em outro estado quando contraiu essa doença?
-- Aí o caso foi notificado em
outro estado né?
-- Hurrum... Vou conversar com a
doutora Letícia e com a Gisele, quem sabe elas consigam descobrir mais
elementos que nos ajudem a diminuir essa lista.
********
Fernanda
encontrou Leticia em sua sala, concentrada, mexendo em seu laptop.
-- Doutora Letícia? Posso entrar?
-- Oh! Entre, por favor, investigadora.
-- Estou atrapalhando algo?
-- Nada que não possa esperar. Só
terminando um artigo para publicar. Entre, sente-se, por favor.
Fernanda
aceitou o convite e se sentou diante da mesa de Leticia. O simples fato de estar
perto da legista mexia com os sentidos da policial. O perfume doce da ruiva
atiçava a vontade de estar mais próxima, aumentava a temperatura da sua pele, a
visão dos traços delicados e gestos elegantes da médica despertava o
descompasso do coração da morena, as mãos suavam até mesmo o tom da voz da
ruiva, desestruturava Fernanda.
-- Então... O que a traz aqui
agente Garcia?
O
efeito de Fernanda em Leticia não era diferente. Aquela tempestade de
manifestações estranhas do seu corpo e pensamento era completamente nova para a
legista. Algumas delas ela não podia
controlar: seu rosto corava, seus olhos brilhavam, a respiração acelerava.
Aquela inquietude trazia para a vida de Leticia uma situação inédita, pela
primeira vez, ela não tinha explicação para as reações que experimentava desde
que conhecera Fernanda.
-- Agente Garcia?
Letícia
insistiu arrancando Fernanda da distração.
-- Ah! Oi, desculpa. Estou
tentando diminuir aquela lista de suspeitos, vim pedir ajuda, de repente tem
algo que você tenha notado... Enfim, algo que filtre um pouco mais esses
resultados... Por que enquanto nós procuramos suspeitos, o assassino pode agir
de novo, tempo é fundamental nesses casos...
-- Entendo. – Letícia respondeu
pensativa.
-- Além do mais, são muitas
amostras para coletar, contar com a boa vontade das pessoas...
-- É verdade, ninguém é obrigado
a fornecer provas contra si mesmo não é?
-- É...
-- Agente Garcia, eu vou reler o
laudo, rever o vídeo, se eu notar algo novo te digo.
-- Vou falar com a Gisele também.
Ela ofereceu uma espécie de consultoria para traçar o perfil do assassino já
que ele está se inspirando nos livros dela...
-- Ah! É uma boa ideia. Que
gentil da parte dela se oferecer para isso.
Fernanda
concordou com um sorriso.
-- Amizades assim são raras,
depois de tantos anos, vocês continuam tão íntimas, a Gisele parece confiar em
você incondicionalmente.
-- É... Nem imaginava
reencontrá-las, ainda mais nessa situação... Nós quatro fizemos mil planos de
irmos até pra faculdade juntas, mas acabou que nos separamos bem antes disso...
-- Quatro?
Antes
que Fernanda explicasse, Wellington entrou na sala.
-- Com licença doutora. Garcia?
Mudou de setor agora? Vive importunando a doutora Leticia agora?!
Fernanda
se preparava para responder a provocação do delegado quando Leticia interferiu:
-- A investigadora Garcia não me
importuna, estávamos trabalhando delegado. Duas cabeças pensando juntas pensam
melhor do que apenas uma, é como diz o dito popular.
-- Qualquer coisa que descobrir
me avise doutora, por favor.
Fernanda
disse se levantando, em direção a porta, passou por Wellington. Como um cão
aguçando o faro, aproximou o nariz do chefe e fez uma careta.
-- Credo delegado que perfume é
esse? Enxofre com suor de gambá?!
-- Você é uma ignorante até no
olfato! Saiba que esse perfume é francês!
-- Só se for o francês de um
camelô lá do Saara!
Leticia
segurou o riso olhando para a careta de Fernanda. Wellington constrangido mudou
de assunto para fugir da zombaria da policial:
-- Doutora eu vim convidá-la para
almoçar. Inaugurou um restaurante italiano aqui perto, e pensei que pudéssemos
experimentar. Que tal?
Fernanda
profundamente incomodada com o cerco do delegado à médica baixou os olhos,
colocou as mãos no bolso da frente da calça como se quisesse ficar invisível.
Letícia nada à vontade com a situação sem graça respondeu:
– É... Eu estou com muito trabalho aqui, acho
que não conseguirei nem almoçar hoje.
-- Que é isso doutora? Ficar sem
almoçar? Como médica a senhora sabe que isso não está certo!
-- Vou comer uma salada que
trouxe daqui a pouco. Obrigada delegado.
Decepcionado,
Wellington saiu da sala. Tentando disfarçar a satisfação pela recusa de
Letícia, Fernanda brincou:
-- Ia sugerir que você exigisse
que ele tomasse banho antes de sair com você...
Letícia
deixou um sorriso escapar.
-- Você acha mesmo que eu
aceitaria almoçar ao lado dele?
Fernanda
balançou a cabeça negativamente sorrindo.
-- Vou deixar você trabalhar
então.
Trocaram
um sorriso quase tímido sem esconder o brilho diferente no olhar uma da outra.
******
Carol
surpreendeu Fernanda no elevador. Outra vez, a policial carregava sacolas com
comida.
-- Giullianos? Você comprou comida no restaurante italiano
novo?!
-- O que tem?
-- Nanda você almoça um PF de
oito reais na padaria do portuga! E por que você está trazendo pra cá? E a
cantina agora é no quinto andar?
Carol
encheu a amiga de perguntas.
-- Ai! Que interrogatório é esse?
Coisa mais chata!
-- Nanda você está levando almoço
pra doutora né? – Carol perguntou segurando o riso.
-- Não enche Carol!
Fernanda
disse saindo do elevador.
-- Investindo heim? Do dogão do
Aguiar pro Giulianos...
A
policial fez um gesto qualquer aborrecido e caminhou em direção a sala de
Leticia.
-- Doutora? Desculpe-me
interromper de novo, mas ouvi você comentando que estava com muito trabalho e
que não teria tempo de almoçar... Trouxe algo para você comer.
-- Aquele cachorro quente? Jura?
Estava desejando um...
-- Ops...
Fernanda
apertou um dos olhos e disse para decepção da médica:
-- Na verdade é algo um pouco
mais sofisticado...
-- Oh... – Letícia suspirou
frustrada.
-- Ouvi o delegado falando do
restaurante italiano e... Achei que te devia uma refeição decente, já que te fiz
comer aquela gororoba em forma de hot dog...
Fernanda
disse acomodando as sacolas sobre a mesa de centro. Leticia se aproximou
retrucando:
-- Aquela gororoba como você
fala, foi uma das refeições mais saborosas que já fiz em toda minha vida.
Fernanda
sorriu sincera.
-- Duvido que essa sofisticação
do restaurante que o delegado sugeriu supere o dogão do Aguiar, mas, deve
servir para matar a fome, mais do que uma saladinha sem graça que você trouxe
de casa não é?
Leticia
sentou-se ao lado de Fernanda sorrindo.
-- Agente Garcia, você está me
acostumando mal...
-- Não se acostume! Não sou
sempre tão prestativa não...
Letícia
serviu-se da massa trazida por Fernanda.
-- Hum... Quatro queijos?
-- Não gosta? – Fernanda indagou
temerosa.
-- Imagina! Adoro! Sou uma
apaixonada por queijos e vinhos.
-- Bom saber...
Fernanda
deixou escapar, depois provou do seu prato. O molho ao sugo do macarrão
espalhou-se além do canto da boca da morena, e foi a vez de Leticia rir da
lambança feita pela policial.
-- Deixe-me limpar isso...
Com
delicadeza Leticia alcançou o guardanapo e limpou a boca de Fernanda. Os olhos
se encontraram naquele gesto, e pareceram se iluminar imediatamente. Durante
alguns segundos ficaram presas pelos olhos, sem conseguirem se desviar como se
estivessem inevitavelmente unidas por um campo magnético indestrutível.
-- Já está limpo... – Letícia
quase sussurrou.
-- Obrigada.
Fernanda
respondeu tímida. Conversaram amenidades durante o resto da refeição, trocando
olhares de encantamento.
-- Eu preciso ir, verificar
aquela lista de suspeitos...
-- Ah sim, claro. Não me esqueci
do que você me pediu, assim que descobrir algo te comunico.
-- Obrigada doutora.
-- Letícia.
-- Isso, doutora Letícia.
-- Não... Eu quis dizer que...
Basta me chamar de Letícia.
-- Ah! – Fernanda sorriu. – Tudo
bem Letícia.
As
duas sorriram.
-- Então, vou indo...
Fernanda
caminhou de costas em direção a porta, como se quisesse retardar o máximo o
final daquele encontro. Bateu as costas na maçaneta da porta, despertando um
riso discreto de Letícia.
**************
A
busca pelas amostras de DNA dos suspeitos começou bem mais difícil do que os
investigadores calculavam. Naquela tarde, Fernanda e Beto perseguiram no morro
da Mangueira um dos suspeitos que reagiu a abordagem dos policiais, uma vez que
era fichado por tráfico de drogas.
Fernanda
conseguiu prendê-lo, mas para isso, saltou de uma laje, e na queda sofreu além
muitas escoriações, um grande corte na testa. A policial chegou ao departamento
coberta de sangue, usando seu casaco para estancar o sangue no corte, enquanto
Beto arrastava o suspeito algemado.
-- Mas que diabos foi isso?
Garcia você está ferida?! Por que não está no hospital?! – Wellington perguntou
em tom de exortação.
-- Um arranhãozinho de nada
chefe, fica frio.
-- Você está banhada de sangue
Garcia! Vá cuidar desse corte agora!
-- Ow raça mole é homem viu! Não
pode ver um sanguezinho e fica aí dando xilique. Já disse não é nada demais, é
jogar uma água e colocar um band-aid e pronto!
-- Garcia sem papo! É uma ordem!
Não quero processo disciplinar contra mim depois!
-- Eu tenho um preso para
interrogar!
-- Não, você tem uma cabeça pra
costurar! O Beto cuida do preso!
A
discussão do delegado com Fernanda só cessou com a chegada de Leticia.
-- Fernanda! O que houve? Você
foi ferida?! – A médica perguntou angustiada.
-- Só um cortezinho de nada
doutora, nada demais.
-- Deixe-me ver isso... Ups...
Isso precisa ser suturado... Vamos, vamos para o laboratório, tenho material
lá, vamos dar um jeito nisso.
-- Não é necessário...
-- Garcia!
Wellington
bradou. Como criança contrariada, Fernanda bateu os pés e saiu irritada em
direção ao elevador, sendo seguida por Letícia.
********
-- Nossa, isso está feio... De
que altura você caiu?
-- Ah foi de uma laje, sei lá,
uns quatro metros... Nada demais... Aii!
-- Desculpe, mas tenho que limpar
primeiro...
Fernanda
fazia caretas de dor e gemia a cada vez que Leticia passava a compressa de gaze
pelos ferimentos. A médica se aproximou com uma seringa para a surpresa e pavor
da policial que saltou do banco imediatamente.
-- Ei! O que é isso aí? Injeção?!
Não mesmo! Tô fora!
-- Mas... Fernanda eu preciso
anestesiar você! Ou você prefere que eu costure sua testa sem anestesia?
-- E por que precisa usar
anestesia assim numa injeção?! Use uma pomadinha!
Fernanda
se esquivava, enquanto Leticia sorria incrédula.
-- Pomadinha? Eu preciso suturar
várias camadas da sua pele, uma pomadinha não ia adiantar nada. Eu não estou
acreditando nisso. Uma mulher desse tamanho, que se joga de uma laje pra
prender bandido está com medo de uma agulhinha!
-- Agulhinha nada! Olha o tamanho
aí! Isso dá pra perfurar um cérebro!
-- Agente Garcia não me faça
correr atrás de você!
Letícia
mudou o tom de voz franzindo o cenho, mas isso só amedrontou ainda mais
Fernanda que correu, mas foi barrada por Gisele que entrava no laboratório.
-- Opa! Está com pressa Nanda?
-- Segura ela!
Leticia
berrou segurando a seringa.
-- Ow ow... Eu já vi essa cena...
Fernanda correndo, uma seringa atrás...
Gisele
deixou escapar sem dar espaço para Fernanda passar.
-- Sai da frente Gisele! –
Fernanda tentava empurrar a amiga.
-- O que está acontecendo
doutora? Isso é sangue na sua roupa Nanda?!
-- Estou tentando dar uns pontos
nesse corte aí, mas ela correu quando viu a agulha da anestesia!
-- Fernanda Garcia! Tenha
vergonha! – Gisele exortou.
-- Sai da frente Gisele, ou eu te
derrubo!
Fernanda
falou grosso, quando finalmente conseguiu empurrar Gisele e correr, tropeçou no
pé de Dulce que estava à espreita quando percebeu a movimentação levando
Fernanda ao chão. Imediatamente rendeu a policial aplicando uma chave de braço
e disse:
-- Vai doutora, aplica logo!
Um
tanto quanto assustada, Leticia aplicou a anestesia no local da sutura sob os
protestos de Fernanda.
-- Dulce você me paga essa!
-- Você me ameaça desde a segunda
série! Mas sempre deu certo meu golpe! Em todas as campanhas de vacinação! Sou
pequena, mas tenho braços fortes...
Dulce
se vangloriou exibindo seus pequenos bíceps, enquanto Leticia ajudava Fernanda
a se sentar na poltrona.
-- Você é muito forte e
habilidosa mesmo Dulce, surpreendente... – Letícia comentou.
-- Posso surpreender muito mais
doutora...
Dulce
fez charme, enquanto Fernanda praticamente rosnou para a jornalista com o
olhar. Nervosa com o tom de flerte de Dulce, Leticia espetou a agulha em um
ponto não anestesiado.
-- Ai doutora! – Fernanda
reclamou- Posso saber o que vocês duas estão fazendo aqui? – Fernanda indagou.
-- Viemos falar com você.
Pensamos em algo que pode ajudar no caso. – Gisele respondeu.
-- O que? Fala Gisele!
-- Percebemos que o assassino tem
seguido o padrão de tempo de uma vítima para outra. Da primeira para a segunda
vítima foram dez dias. Já se passou uma semana da morte da segunda vítima, isso
nos leva a supor que ele está se preparando para o terceiro crime que deve
ocorrer daqui a três semanas. – Dulce resumiu.
-- Se esse doido está imitando
seu livro, temos três semanas para encontra-lo, legal, mas isso não nos ajuda
muito. Ai Leticia! – Fernanda gemeu.
-- Desculpe-me. – Leticia fez uma
carinha de culpa.
-- Nanda pode ajudar, se
considerarmos que ele utilizará o mesmo método para matar a terceira vítima. –
Gisele completou.
-- Então nós temos que torcer
para ele seguir o padrão do livro, esperar ele fazer uma terceira vítima?-
Fernanda ironizou.
-- Você precisa ler meu livro
Nanda... Claro que não estou falando de esperar passivamente a morte de outra
mulher! Mas, se sabemos como ele vai matar, sabemos que ele está se preparando,
sabemos que arma ele vai usar, que cenário ele vai precisar para imitar o
livro. – Gisele explicou.
-- Continue...
Fernanda
escutava atenta, enquanto Leticia continuava a suturar sua testa.
-- No meu livro, a terceira
vítima foi afogada na banheira de um motel.
-- Ah ótimo! Quase não temos
motel no Rio de Janeiro, vai ser fácil... No dia 14 do próximo mês montamos
guarda em todos os quartos com banheira dos motéis do estado. – Fernanda foi
sarcástica.
-- Até agora vocês não atentaram
para um detalhe... – Dulce interrompeu – As drogas que ele utiliza para dopar
as vítimas são de uso restrito, controlado. Podem investigar os meios lícitos
para consegui-las, quem as comprou no último mês, ou se algum funcionário que
tem acesso a essas drogas se encaixa no perfil que vocês já tem.
-- Isso é como procurar agulha no
palheiro... Não é uma droga tão incomum, em qualquer posto de saúde ou hospital
pode ser encontrada, pelo menos o diazepan injetável sim. – Letícia comentou.
-- É outro caminho que podemos
seguir doutora. Não vai ser difícil identificar se algum funcionário de
hospital ou unidade de saúde tem esse tipo de deficiência na mão. Quem sabe
tenhamos sorte. – Fernanda disse.
-- Acho que nós quatro formamos
uma boa equipe. Pensamos bem juntas – Dulce comentou.
Leticia
balançou a cabeça positivamente concluindo o curativo em Fernanda.
-- Acho que somos mesmo sinônimo
de perigo e confusão!
Fernanda
disse se levantando.
-- Bonitas e perigosas,
combinação perfeita.
Gisele
disse arrancando um sorriso das demais.