sábado, 16 de dezembro de 2017

CAPÍTULO 19: LIÇÃO 15 – O AMOR NÃO TEM PISO ANTIDERRAPANTE

No início dos anos 2000, quando o Mark Zuckerberg ainda não tinha dominado nossa comunicação digital e social, circulava em anexos de e-mails e rolava em tudo que era discurso motivacional um vídeo enfadonho com uma música chiclete, cheio de mensagens positivas, dicas para a vida. No Brasil esse vídeo recebeu a narração do Pedro Bial, com o enredo principal: use sempre filtro solar.


Se você nem sabe do que estou falando, faça uma busca no Google e facilmente encontrará esse conteúdo, o fato é que, eu poderia fazer um parecido, com uma mensagem semelhante:


Use sempre calçados com solados antiderrapantes. Andar é arriscado, mas é preciso! As quedas machucam, te ensinam o valor do chão, mas, convenhamos, se você estivesse usando o calçado certo, não teria caído. Quantas quedas você já sofreu sem necessidade? Tudo por falta do solado que te fez escorregar, por isso, nunca se esqueça, sempre use calçados com solado antiderrapante.


Eu não chamaria o Bial para narrar, chamaria a Maria Rita, alguém mais tem tesão na voz daquela mulher? Pergunta idiota... A questão é que esses escorregões, que ficamos expostos quando nos aventuramos ao amarmos são tremendamente cruéis. E não adianta o calçado mais seguro, por que você vai escorregar, e pior se não escorregar, você cai do mesmo jeito, por que te puxam o tapete também.


De uma vez só, eu escorreguei, e Marcela foi lá e também puxou meu tapete.
Quando estávamos entregues finalmente àquela paixão guardada desde o início do semestre, desde aquele primeiro esbarrão no corredor, eu já tinha me desfeito da camiseta dela, e apertava seus seios por baixo do sutiã me preparando para colocar ali minha língua Marcela gemia baixinho, não teve a iniciativa de tirar nenhuma peça de roupa minha, mas, não me importei, eu tinha pressa de beijar cada pedaço da pele dela que se arrepiava, e eu sentia meu sexo se enchendo da volúpia, de um fogo que consumia meu corpo a ponto de me fazer suar, mesmo com o ar condicionado ligado (não, não estava no 15°).


Eu precisava sentir o sexo de Marcela, podia presumir que ela estava tão excitada quanto eu, ainda com meu corpo sobre o dela, ousei abrir o botão da calça dela e abri o zíper e tentei colocar minha mão por dentro de sua calcinha. Quando eu disse: tentei, que fique registrado, esse foi o momento da minha queda, escorregão, puxada de tapete. A atitude que até então Marcela não teve com suas mãos, ela enfim tomou. Segurou meu braço, e disse mais alto do que seu gemido:


--Luiza, não. Para.


As coisas não estavam bem para mim. Era a segunda vez que eu estava em cima de uma mulher, e elas me pediam para parar. Precisava de mais alguma coisa para me sentir rejeitada?


-- Mas... Marcela...

-- Não está certo isso.


Marcela, passou a mão pela cabeça, e não me olhava mais, fixou o olhar no teto. Ainda bem, por que se me encarasse, ia ver uma expressão patética em mim: frustrada sexualmente, suada, rejeitada e prestes a receber uma lição de moral de uma menina de vinte e pouquíssimos anos. Tive a dignidade de me levantar, antes que Marcela me tirasse de cima dela.


-- Você deve achar que estou me divertindo com você, mas, não sou assim...

-- Marcela, eu não sei mais o que achar de você. Eu só te beijei por que você disse que me queria. E você me freia e diz que não está certo, qual é? Joga a isca pra me fisgar e depois me devolve pro rio?

-- Não... Claro que não... Como você pode pensar isso? – Marcela disse catando a camiseta, cobrindo seu colo.

-- Estou tentando te entender. Eu estava quieta, tentando manter uma distância segura, por que sei o que sinto por você desde aquela noite do congresso, aí você vem aqui cobrando explicações e me despeja um desejo contido, e quer que eu pense o que?

-- É, não pode mesmo pensar nada diferente disso. Sou uma irresponsável, que pode brincar com a vida das pessoas, com o sentimento das pessoas, me apaixonar por uma mulher que é muito pra mim, muito, e dizer pra minha namorada, olha, fica aqui me esperando, que vou ali viver uma paixão com minha professora, se der certo, eu não volto, mas se der certo, a gente, eu e você seremos só amigas, como sempre fomos.

-- Ah, então você está apaixonada por mim, e é assim que me diz isso?


Marcela balançou a cabeça negativamente, aliás, isso era uma expressão que ela repetia muito, acompanhada de um franzido de testa que me deixava impaciente. Ela vestiu a camiseta, ajeitou os cabelos no elástico que os prendia, e sem me encarar disse:


-- Não dá pra acreditar que uma mulher como você não tenha percebido isso, que estou apaixonada por você, claro que você sabia disso.


Ah Marcela, se você soubesse como essa mulher vira uma menina assustada quando se trata de amor! A gente desaprende tudo!


-- Não coloque sobre mim o peso de ser “uma mulher como eu” – fiz o gesto das aspas com os dedos – Você não sabe nada sobre isso. O que você sabe sobre mim, Marcela? Sobre minha história, sobre as mulheres que você deduz que estão na minha vida?

-- Ah para, Luiza. – Marcela soltou o riso irônico outra vez – A novinha aqui, não é tão boba assim.

-- Então, você não é boba, e eu sou a mulher experiente, devoradora, sedutora, com uma galeria de troféus? Com um currículo lattes lesbos?!

-- Odeio sarcasmo, não conhecia essa sua face.


Marcela se levantou irritada e foi em direção à porta.


-- E olha a novidade, você vai me dar as costas, de novo? Agora, eu quero respostas, Marcela.

-- Que resposta, Luiza? O que você espera de mim?

-- Honestidade, pra começar.

-- Então, vou ser honesta. Eu estou muito confusa, não sei o que fazer. Não quero magoar a Laura, ela não merece, não merece isso que aconteceu aqui hoje entre nós.

-- Isso?


E lá veio ela: outra puxada de tapete. Impiedosa. Esse piso escorregadio, ah o amor... Que terreno mais perigoso!


-- Você entendeu, não complica mais, Luiza. Eu não posso te magoar também.

-- Eu tenho então que te dar uma informação, você está magoando. Já magoou. O que vejo aqui, é uma questão de quem você vai escolher magoar mais, se a mim, ou a sua namorada.

-- Não é uma questão de escolha. Eu estou magoada, qualquer decisão que eu tome, vou sofrer... Estou sofrendo, desde que te conheci tudo mudou.

-- Mudou? Então por que ainda está no mesmo lugar? Namorando alguém, se está apaixonada por outra pessoa?

-- As coisas não são tão simples assim, Luiza. São bem complicadas. Temos uma história juntas, não dá pra me deixar levar por uma paixão e esquecer essa história, somos amigas desde sempre. Tem muita coisa envolvida, eu a respeito muito, ela já aguentou muita coisa por mim.

-- Quer saber, Marcela... Volta pra sua namoradinha perfeita, vai lá brincar de casinha com ela, finge que não aconteceu nada aqui, foi só um delírio. Uma mulher como eu, não pode ser a outra de uma estudante universitária, você tem razão, eu sou muito, não caibo nesse papel.

-- Nossa...


Marcela estava com os olhos marejados, e eu, dei as costas para ela não ver as lágrimas que já se derramavam pelo meu rosto. Ela bateu a porta, e eu caí no sofá, fisicamente, não foi um piso escorregadio, mas, emocionalmente, eu estava estatelada no chão frio, solitário, duro, com o corpo dolorido e alma sangrando. Chorei o que não permiti chorar nos últimos dois meses, e pela primeira vez na minha vida acadêmica, dormi no laboratório.
****************


As semanas se passaram, e o que eu entendia como uma calmaria sofrida, silenciosa, se perpetuando a cada encontro com Marcela, que agora, alternava entre me encarar com tristeza, outra hora se furtava do encontro com meus olhos. Ao menos relaxei da obsessão com prazos e artigos, entregando-me ao refúgio solitário da minha casa, e adivinhem só, tanta solidão, deu espaço para uma companheira nada original: a grande rede.


Lembrei-me da minha personalidade secreta, ou seja, meu “fake”: Lorena Bachio, quem sabe, encontraria alguma companhia fantasiosa, sem compromisso, para me tirar daquele poço, fingir ser outra pessoa por alguns minutos, afinal, eu podia inventar o que eu quisesse.


Assim que fiz o login, mil solicitações de amizade estavam acumuladas, notificações de bate-papo, e logicamente, fiquei curiosa, me perdi no tempo visitando as páginas dos perfis me questionando quantas eram tão falsas quanto a minha. Não respondi às janelas de bate-papo, ao contrário do que eu imaginava, não me interessei, exceto quando vi o nome de Marcela piscar em uma delas. Hesitei em responder, era como abrir a caixa de Pandora, não tinha noção do que poderia encontrar, e de como as coisas iriam se desenrolar a partir de um clique. Na minha cabeça um “tic-tac” de relógio começou a ecoar junto com cada batida forte do coração, até ser interrompida pelo som da campainha do interfone.


Assustei-me, e lógico, pensei: isso é um sinal! Um sinal de que não devo abrir essa janela de bate-papo para Marcela. Corri e atendi o interfone:


-- Lu, sou eu, Cris.


Estranhei, a Cris, nunca se anunciava, ela conhecia o porteiro, sempre subia sem permissão, coisa que irritava Beatriz profundamente.


-- Ué, o que houve, Cris? Você sempre sobe direto, que novidade foi essa de tocar o interfone?

-- Eu precisava mesmo vir aqui... Luiza, o senhor Valdir está de férias, aliás, ele já está quase voltando das férias dele, você não percebeu que tem outro porteiro no seu prédio, faz quase um mês?

-- Ah é? Eu praticamente não entro pela porta da frente né, Cris? Só pela garagem.

-- Sei... Então, também não tem ido na padaria, na academia, correr no parque esse tempo todo? Ou está indo de carro até a esquina?

-- Cris, vai lá, e vê se tô por lá, vai. - Tentei disfarçar, berrando da cozinha. – Você trouxe algo para beber? Nunca vem de mãos vazias, cheia das novidades hoje, a lei seca foi instituída e não estou sabendo?

-- Cheia das gracinhas, você... O que está me escondendo, Luiza?


Cris, já estava encostava na pia da cozinha me encarando, enquanto eu buscava algo para beber na minha geladeira praticamente vazia.


-- Cris, você me pegou, cometi um delito grave, estamos na segunda semana do mês e não fiz supermercado!

-- As coisas estão piores do que eu pensava...


Cris abriu os armários, e encontrou o equivalente a uma cesta básica, buscou meus esconderijos de bebidas, e as garrafas estavam quase esvaziadas.


-- Tudo bem, Luiza, vamos conversar, agora! – Puxou-me pela mão até a sala.

-- Ah, pronto! Uma intervenção?

-- Ainda não, mas, se eu não tiver as respostas que procuro, eu vou ligar o Skype, e convocar o Ed, e bater tambor pra atrair aquela entidade que é a Clarisse, e vamos sim intervir.

-- Cris, que drama é esse? Final de semestre caramba, sou professora, minha vida está um caos. Não tem nada demais em não fazer uma feira!

-- Luiza, pra cima de mim? Sério? Há quanto tempo nos conhecemos? Cara, a gente se conhece desde que usar piercing no umbigo era sensual, desde que Malhação era uma novela que se passava numa academia. Porra, a gente saiu de uma cidade do interior pra fazer faculdade juntas aqui nessa capital, passamos aperto pra assumir nossa sexualidade, enfrentamos nossos pais, irmãos, primos, amigos, vizinhos, ex-namorados, ex-namoradas, gente de tudo que é espécie, e em todo esse tempo, eu posso dizer que sou a pessoa que te conhece melhor, aí você me vem com esse papo, que eu tô fazendo drama? Fala o que você está me escondendo!

-- Eu não estou mentindo, você está fazendo drama sim, apelar pra toda nossa história, é fazer drama! – Disse com a voz embargada.

-- Caraca, Luiza... Você não é assim, sempre me fala tudo, é a maior chorona, fala pelos cotovelos dos seus sentimentos, de uns tempos pra cá, tirando as confusões da Beatriz, você se fechou, é claro que tem alguma coisa que não quer me contar, e se não quer contar a mim, imagino, que não contou a ninguém.


Respirei fundo, tentando achar as melhores palavras para começar a narrar o emaranhado que eu estava envolvida. Eu não tinha ideia de como a Cris iria reagir.


-- Cris, não é nada demais. Estou confusa, cansada. Eu prometo te explicar, aconteceram algumas coisas sim, mas, não estou pronta para falar ainda.

-- Oi? Não está pronta? Como assim? Abre a boca e começa pelo começo!


Cris, a minha amiga mais delicada, só que não! Eu ia ter que falar, não ia conseguir enrolar, quando eu ia começar:


-- Bom, tudo começou quando...


Meu celular tocou, era Celina. Outro sinal? Se era ou não, resolvi atender, mesmo sob o olhar de reprovação da minha amiga.


-- Oi, Celina.

-- Lu, oi, tudo bem?

-- Tudo bem, e você?

-- Tudo em paz. Estou te ligando, para avisar, que estou indo te visitar, na verdade, estarei no Campus, para dar uma palestra.

-- Jura? Quando?

-- Na quarta que vem, pensei que podíamos sair depois para jantarmos.

-- Claro! Claro que sim, Celina, nos vemos na quarta, vou me programar para assisti-la e combinamos o jantar.

-- Beijos, até quarta.


Eu sabia que enfrentaria um interrogatório de Cris após o telefonema de Celina, minha ex-namorada me avisando que viria à cidade, e jantaríamos. Qual não foi a minha surpresa, quando procurei Cris na sala e não a encontrei.


-- Cris? Cris? Cadê você?


Fui até a cozinha e não a encontrei, o banheiro do corredor também estava vazio. Ela não tinha ido embora por que não ouvi barulho na porta, imediatamente me apavorei ao supor onde ela poderia estar: meu quarto. Corri para lá e da porta, vi Cris sentada na poltrona junto à escrivaninha, boquiaberta olhando meu notebook.


-- Com que direito você entra no meu quarto e mexe nas minhas coisas, Cris? – Indaguei com a voz trêmula.

-- Vim no quarto para atender o meu celular e não atrapalhar a sua ligação. Não mexi em nada, sentei aqui, o notebook estava aberto. Mas, que merda é essa, Luiza? Quem porra é Lorena Bachio? Você agora tem um perfil fake?


Antes que eu respondesse, por que eu não conseguia, completamente gaga, Cris fez o que eu hesitei tanto em fazer: clicou na janela que piscava com o nome de Marcela.


-- Marcela? Espera, essa não é aquela menina que é sua aluna? Aquela da praia?


Cris estreitou os olhos e leu o conteúdo do bate-papo, que nem eu tinha lido ainda.


-- Mas... Que merda é essa, Luiza? Que grande merda você está fazendo?! Você perdeu o juízo de vez?!