sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Novo Capítulo

CAPÍTULO 15 – LIÇÃO 13: NUNCA DIGA QUE PIOR NÃO PODE FICAR


A semana começou pesada para mim. Uma segunda-feira daquelas que o Garfield odeia. Meu humor não era o dos melhores, as poças de lama pelo estacionamento só aumentavam a irritação gratuita que eu espalhava em cada passo dado em direção a sala dos professores.


As notícias da política e dos sucessivos cortes de recursos a pesquisa foram a cereja do bolo para dar vazão a minha pior face do mau humor. O que mais poderia acontecer? Alunos antigos do grupo com atraso para receber as bolsas, e as chances de novas bolsas, eram ainda mais escassas. Minha preocupação com meus dois alunos da pós-graduação era sem dúvida o maior dos meus problemas, precisava de alternativas e de maneira rápida.


Mas quem disse que não podia piorar? A reunião no final da tarde com o grupo de pesquisa foi tensa e triste, era notória a desanimação dos meus colegas docentes, e a decepção dos alunos. Marcela seria a aluna que por direito, seria a primeira a receber a bolsa de iniciação científica, já que conquistara o primeiro lugar no processo seletivo, e justamente a ela, eu não poderia mais garantir a bolsa. Naquele dia, completamos as submissões dos trabalhos ao congresso que marcaria o início do nosso semestre como grupo de pesquisa, e logicamente a falta de apoio financeiro para a ida dos alunos, era outra angústia.


Apesar de tudo, Marcela estava de volta. Meus olhos sempre a procuravam no meio daquela discussão, e mesmo com a decepcionante recém descoberta para mim sobre seu namoro, eu não perdia o fascínio quando estava diante dela. Outra constatação que tive naquele dia, era que Marcela lutava para aparentar que estava bem, participando das discussões, se voluntariando para ajudar outros colegas, e por mais ingênuo que pareça da minha parte, sentia que ela continuava a acompanhar meus gestos com encantamento, pelo menos isso era o que eu conseguia captar pelas furtivas trocas de olhares entre nós.

E por falar em piorar mais... Depois que os alunos deixaram o laboratório, fiquei no gabinete, enviando e-mails para as mais diversas agências de fomento à pesquisa, buscando recursos para o grupo. Estava tomada por aquele objetivo, precisava focar minha energia em algo, e aquilo era urgente. Entretanto, a vida insistia em me sacanear, e meu dia de cão teria seu gran finale com a chegada da minha digníssima ex-namorada: Beatriz.


-- Se eu pedir para entrar vou receber uma recusa? – Beatriz perguntou segurando a porta entreaberta.


-- Se você receber uma recusa, vai obedecer? – respondi sem direcionar-lhe o olhar.


-- Claro que não. Nunca fui obediente, e algo me diz que você precisa de mim hoje.


-- Esse algo está te dando informações erradas. O que preciso hoje é de dinheiro para o custeio das bolsas dos meus alunos, você trouxe algum?


-- Que tal esquecer um pouco de trabalho e apreciar esse delicioso pedaço de bolo... de amêndoas com recheio de avelã e nozes, com cobertura de ganache de chocolate,que você adora!


Beatriz colocou o embrulho sobre minha mesa, como se me trouxesse uma surpresa romântica. Pelo menos era, quando namorávamos.


-- Ah Beatriz, sério? Acha mesmo que uma bomba calórica vai diminuir meus problemas reais e sérios com meu compromisso...


-- Ei! Calma aí... Poxa, demorei quase duas horas para te trazer essa “bomba calórica”. Chuva, trânsito, perdi meu horário de almoço para te comprar esse mimo. Sei que não resolve os problemas do financiamento das bolsas, eu também não tenho culpa ok? Não apoio o governo golpista.


Por alguns instantes, vi verdade nas palavras de Beatriz. Fui forçada a me desculpar. A delicatesse que vendia aquele bolo, era de fato do outro lado da cidade.


-- Desculpe-me Beatriz. Mas, realmente hoje não estou para conversa, estou mesmo preocupada.


-- Tudo bem, não precisamos conversar hoje, mas, podemos comer esse bolo? Seria um desperdício leva-lo para comer sozinha...


Beatriz ameaçou tirar o bolo da mesa, quando segurei sua mão.


-- Nem pense nisso. Agora que ele entrou aqui no meu gabinete, ele não sai daqui intacto. – rendi-me.


-- Rola dividir comigo? – Beatriz apertou os olhos, segurando dois garfos descartáveis nas mãos.


-- Seria indelicado da minha parte, claro que divido.


Permiti-me relaxar. Estava exausta, e afinal, era Beatriz, ela sabia ser agradável quando queria.

-- Então, eu imaginei como você estaria tensa, depois de tantas notícias ruins vindas da CAPES, ouvi rapidamente você falando na sala dos professores mais cedo, e não tive dúvidas, pensei que seria menos amargo terminar o dia com um pedacinho do seu bolo favorito.


-- Obrigada pela gentileza, Bia.


-- Quantas vezes você já fez muito mais do que isso por mim, em dias terríveis, Lu... Entenda como uma retribuição do universo.

Não esperava Beatriz agindo daquela forma tão despretensiosa comigo, e ao mesmo tempo tão tenra. Eu estava vulnerável, isso é verdade, entretanto, reconheci ali, a mulher que me apaixonei um dia.

-- Meu Deus, que delícia! Que a crise não acabe com essa delicatesse! – Falei com a boca cheia.

-- Amém! – Beatriz respondeu da mesma forma. - Você está pegando toda a cobertura, e se lambuzando toda, algumas coisas nunca mudam!

-- Vá à merda, Bia! Comer doce só tem graça assim! – Joguei um guardanapo sujo em sua direção.

-- Tem razão! – Beatriz deu outra garfada no bolo e dessa vez, espalhou a cobertura pelos lábios, nariz e até no queixo.

-- Ow! Não desperdiça assim não, essa é a melhor parte do bolo! – Reclamei, tentando limpar o rosto de Beatriz com a ponta dos dedos.


Beatriz fechou os olhos, saboreando mais do que aquela ganache de chocolate, saboreava meu toque sobre sua pele. Institivamente eu toquei mais suavemente, lentamente, e quando estava à beira de prolongar aquela carícia, usei do humor para me livrar da merda que eu caminhava para fazer. Dei-lhe duas tapinhas na bochecha:


-- Acorda! Esse bolo é bom, mas não me enfeitiça.

Beatriz abriu os olhos, nitidamente decepcionada pegou outro guardanapo e disse:


-- Dirigiria quantas horas fossem, para trazê-lo, se o feitiço te tirasse essa carcaça dura que você aprendeu a usar comigo.


-- Beatriz, olha, muito obrigada pelo bolo, foi muito delicado da sua parte, mas, é só um bolo. Você precisa de muito mais que isso para mostrar que está lutando por mim.


Levantei-me enquanto recolhia as embalagens vazias sobre a minha mesa.


-- Não sou tão imbecil como me julga, Luiza. Sei que você é valiosa demais para reconquistar com gestos tão pouco importantes como esse. Só queria que baixasse um pouco a guarda, e permitisse que ao menos nossa amizade pudesse ser resgatada.


-- Amizade? Então, você desistiu de lutar por mim?


-- Claro que não! Mas, não quero errar em nada, começar do zero inclui reconquistar sua amizade.


-- E sua noiva? Sabe dessa nova velha amiga que você está tentando se reaproximar?


-- Luiza, não usa esse tom sarcástico comigo... Eu te conheço...


-- Tudo bem, sem sarcasmo. Vamos ser honestas? Rosas, mensagens, e isso aqui... – exibi a embalagem do bolo – Isso aqui, não vai nos levar a lugar nenhum. Dito isso, que tal a gente encerrar esse encontro não programado, com um amigável “boa noite”?


-- Eu não posso. Sei que precisa de mim, não está bem, Luiza, eu estou vendo nos seus olhos. Conversa comigo.


-- Bia, não quero conversar com você e não vamos ser amigas. Desiste dessa luta, e segue sua vida com a Alicinha, não há nada aqui para ser reconstruído.

Beatriz avançou na minha direção, colocando seus dedos nos meus lábios.


-- Não fala assim. Não traz mais ninguém para essa sala. Boa noite.

Antes que eu me desse conta, Beatriz, já estava com seus lábios nos meus, e como não sou de ferro, entreguei o beijo que ela me roubara ardilosamente. Beijo quente, que me fez desejar mais dela... Até que o barulho da porta batendo nos interrompeu. Abri a porta imediatamente, e segui para as bancadas do laboratório, iluminada por um único foco de luz vindo de uma estufa.


-- Oi?! Quem está aí?


Quase alcançando a porta da saída, avistei Marcela.


-- Desculpa professora, eu só pensei em mostrar esse edital que achei sobre uma bolsa... Amanhã conversamos.


Marcela não me deixou falar mais nada. Bateu a porta da saída e me deixou ali, cheia de dúvidas, insanidades e devaneios, e um sentimento de culpa terrível.


-- Acha que ela nos viu? Desde quando seus alunos vem a essa hora até seu gabinete?


Amargando o arrependimento que nenhum bolo amenizaria, pedi com sinceridade:


-- Bia, vai embora, me deixa em paz, por favor.

*****************



Eu revivi aquele beijo de Beatriz durante a semana toda. Todavia, com mais vivacidade eu revivia a cena com Marcela, saindo daquele laboratório, após provavelmente ver o mesmo beijo. Não havia razão para que eu sentisse qualquer culpa, pelo menos não no que dizia respeito a Marcela. Mas, era nela que meu pensamento se fixava.


Pelo menos naqueles dias, Beatriz atendeu meu pedido: me deixara em paz. Mas, que paz? A cada aula ministrada eu era tomada por uma perturbadora sensação de que decepcionei Marcela. Ela estava apagada em sala de aula, nenhuma pergunta, nenhum comentário ou provocação. O edital que ela veio me mostrar pessoalmente, decidiu enviar por e-mail. Estava distante, e eu absurdamente sofria por isso.


Quando não sofria pela presença fria de Marcela, sofria com minha imaginação fértil, realizando em minha cabeça o cotidiano dela com a namorada. Viviam sob o mesmo teto, compartilhavam uma vida de casal, mesma cama, banhos? Cozinhavam juntas? Faziam planos? Estava enlouquecendo. Para piorar um pouco mais a situação (por que desgraça pouca é passatempo para mim!), acessei minha conta fake do facebook e para minha surpresa, Marcela aceitara minha solicitação de amizade.


E sobre as coisas piorarem? É, atingi meu objetivo estúpido. Estava ali escancarado as fotos de Marcela em meio a muitos amigos, e ao seu lado, marcada nos seus posts, a namorada, Laura. Li cada comentário, analisei cada foto, e de uma maneira quase masoquista, unia minha imaginação com aquelas imagens, até ser interrompida pelo som da janela do bate papo. Era ela, a própria Marcela.


-- Oi, de onde a gente se conhece?


Fiquei estática. Boca aberta e certamente com a cara mais idiota que já registrada em minha história.

-- Desculpe-me, aceitei sua solicitação de amizade, mas, acho que me enganei - Marcela continuou a digitar.


Digita algo, sua idiota! Minha consciência berrava.


-- Oi, não sei ao certo, mas acho que te vi pela universidade. Você faz medicina não é?


Que imbecil! É, isso estava no perfil dela!


-- Sim, mas, já nos esbarramos? Não lembro com certeza, como sou distraída, imaginei que sim, você faz mestrado na mesma linha de pesquisa da professora Luiza, achei que fosse do grupo de pesquisa também.

Parece que não fui tão imbecil assim, chamei a atenção de Marcela, e justamente pelo ponto que eu queria: a professora Luiza, que louca que sou! Referindo-me a mim mesma na terceira pessoa!


-- Ah sim... Fui aluna dela, certamente nos vimos no laboratório sim. – Deixei o gancho para conversa.


-- Ela é incrível, não é?



Respirei fundo e abri um largo sorriso.


-- É, ela é muito competente, e o grupo de pesquisa dela tem ótimos resultados, publicações. Você conseguiu entrar?


-- Felizmente sim! Estamos nos preparando para o congresso internacional de pesquisa clínica. A professora Luiza, está se desdobrando para levar o máximo de nós do grupo, mas, sem os recursos de ajuda de custo, acho que será complicado.


-- Ela fará todo possível, tenho certeza. – Defendi-me tentando animá-la.


-- Claro, ela é fantástica... Você, tem ou tinha contato com ela, fora da faculdade?


-- Como assim? A professora Luiza, é muito profissional. Mas, não é o monstro gélido que pintam por aí.




Eu fazia defesa como se eu adquirisse de fato, uma nova personalidade, personalidade esta, que seria do fã clube Luiza, patética!


-- Nunca pensei que ela fosse um monstro gélido, pessoal exagera, ela só é exigente, mas, gosto disso. Ela é uma mulher espetacular.


-- O que você quis perguntar sobre meu contato fora da faculdade?


-- Sabe algo dela? Assim, vocês saiam, ou ela saía com outros orientandos, sobre relacionamentos dela...


-- O que você quer saber exatamente?


Estava curiosa com a insistência de Marcela.


-- Ela é tão linda, e inteligente, não é casada...


-- Você quer saber se ela é lésbica? – Fui direto ao ponto.


-- Já ouvi comentários...


-- Sim, ela é. Mas, por que o interesse? – Eu me alegrava com a curiosidade dela.


-- É, que eu desconfiava, falaram que ela tinha um relacionamento com outra professora, e acabei flagrando um beijo entre ela e uma outra mulher, agora sei que essa outra mulher é professora da universidade.


Respirei fundo. Confirmei o que precisava, Marcela viu o beijo entre eu e Beatriz.

-- Isso, te incomoda?


-- Incomoda? Não tenho nada contra, não sou homofóbica, curiosidade de aluno, você entende não é?


-- Entendo. Só curiosidade então, acho que você já tem uma resposta, viu a resposta não é?


-- Lorena, então, é o que falam, elas são namoradas?


-- Não sei, a professora Luiza é muito discreta. Isso é tão importante assim para você?


-- Como eu disse, é só curiosidade. Ela foi muito gentil comigo...


Aquele bate-papo durou muito mais tempo do que eu desejaria racionalmente. Estava confusa, e convicta que eu estava trilhando um caminho muito perigoso.


-- A gente podia se encontrar qualquer dia, Lorena. – Marcela sugeriu.


Fiquei pálida, meu perfil fake estava ameaçado.


-- Claro, qualquer dia... Só para esclarecer, você perguntou se a professora era lésbica, e você?


-- Eu o que?


-- Lésbica? Você é linda e, está sugerindo um encontro nosso...


Eu precisava arriscar, sondar como estaria o namoro de Marcela? Ela era do tipo de garota que traía a namorada?


-- Eu tenho namorada, desculpe-me se dei a entender outra coisa. Tinha curiosidade sobre a professora, porque a admiro muito.


-- Ah, então você tem namorada, que decepção para mim. – Joguei um flerte – Você a ama?


-- Acho que sim.


Uma punhalada no meu coração confuso. Precisava dar um fim a essa aventura pueril, por que no fim das contas, nada é tão ruim que não possa piorar.