domingo, 1 de abril de 2018

CAPÍTULO 27: LIÇÃO 23 – ENTRE O PRETO E O BRANCO, EXISTE O CINZA



Não acreditava que estava ali, do lado de Marcela, depois de tanto tempo sem vê-la, depois daquela amarga conversa que tanto me machucou, justamente ela, me socorreu naquela balbúrdia pública que minha vida estava naquele momento. Ela não falou nada no trajeto, eu muito menos. Vez por outra trocávamos olhares indecifráveis, talvez por que existia uma confusão de sentimentos que ambas não saberiam expressar em palavras.

Quase chegando ao meu prédio, Marcela quebrou o silêncio no carro:

-- Professora Luiza, a senhora quer ir direto para sua casa, ou quer parar um pouco, deseja que eu deixe a senhora em outro lugar?

-- Só quero ir para casa, obrigada.

Marcela acenou em acordo, e seguiu o trajeto. Quase chegando ao meu prédio, ela mais uma vez saiu do silêncio:

-- Tem alguma chance de ter jornalistas na porta do seu prédio?

-- Acho que não, quer dizer, o que aconteceu agora pouco, já deve estar na internet, pode ser que tenha algum urubu...

-- Prefere que eu entre pela garagem? A senhora tem o controle do portão?

-- Não...Eu deixo sempre no carro...

-- Então eu vou lá pedir ao porteiro que abra quando eu buzinar, já é no próximo quarteirão, tudo bem ficar aqui por um instante para eu ir lá?

-- Não precisa, Marcela. Eu tenho o telefone, deixa que eu ligue.

Marcela concordou, e como sugeriu, entrou pela garagem, enquanto eu me abaixava no banco do carona, de fato, havia dois fotógrafos na espreita.

-- Agora, você está segura. Em casa, precisa de mais alguma coisa, professora?

-- Preciso saber por que está sendo tão gentil comigo.

-- Por que não seria?

-- Não sei, para não desagradar sua namorada perfeita... – Saiu quase que involuntariamente o comentário magoado.

-- Está com muita raiva de mim, ainda não é?

-- Não sei se o sentimento é raiva.

-- Eu só queria que a senhora não me odiasse, não suportaria isso.

-- Não te odeio, não teria como odiar alguém só pelo fato de não me querer.

Marcela respirou fundo, balançou a cabeça como se sufocasse uma avalanche de palavras.

-- Bom saber que não me odeia.

Alguns segundos em silêncio dentro do carro, e eu já tinha vontade de começar uma nova discursão, contudo, eu não tinha mais energias, depois de um dia como aquele.

-- Obrigada Marcela, boa noite.

-- Boa noite, professora.

****************
Novo dia, e eu não sabia o que iria enfrentar, liguei para Clarisse pedindo carona, explicando a situação, e as coisas ocorreram como na noite anterior, saí pela garagem no carro da minha amiga, escondida, como se fosse a mais nova denunciada da operação Lava jato.

-- Amiga, que confusão, eu ouvi alguns boatos entre os alunos, mas não imaginava isso tudo, até...

-- Até o que?

-- Viralizaram as fotos, recebi em vários grupos, tem blogs, até vídeo no youtube...

-- Meu Deus, que pesadelo!

-- Você falou algo com a Cléo?

-- Por que eu falaria? Isso só ia piorar a situação, é mídia, é coisa de aluno, o que a Cléo poderia fazer?

-- É, tem razão, mas, não vai parar tão cedo, Lu. Sabe como é cabeça de aluno... Não quer pedir uns dias de atestado médico, sei lá...

-- Quando eu voltar, o problema vai continuar lá. Daqui a pouco tem carnaval, tomara que isso acalme os ânimos, me esqueçam.

Clarisse acenou em acordo e me acompanhou até a sala dos professores, sentiu o mesmo clima de vigilância de olhares pelos corredores, se incomodava a ela, imagina como eu estava me sentindo. Duvidei que aquela boataria e observação constantes passassem com o feriado de Carnaval, por alguns momentos desejei o que Beatriz me pediu: ficar invisível.

Enfrentei na sala de aula as mesmas piadas do dia anterior. De repente, meu whatsapp se tornou público, e eu recebia avalanches de fotos, montagens, memes. A última aula do dia, no curso de medicina, foi a mais desgastante, por que simplesmente não consegui ministrar. Todos os slides que eu preparei, não pude projetar, uma vez que o quadro branco estava completamente lotado do refrão da paródia da Cléo, por mais que eu tentasse apagar, usaram pincel de tinta não remomível, só a tentativa de limpar sem sucesso me desestabilizou.

Desliguei o projetor, e tentei ministrar a aula sem nenhum recurso, coisa que eu fazia sem problemas, mas naquele dia não.

-- Vocês conseguiram! Era o que queriam? Tirar a professora do sério? Impedir minha aula? Parabéns, vocês são geniais, estão perdendo um conteúdo importantíssimo, e vou me lembrar disso ao avaliar a sala. Para quem escreveu isso no quadro e danificou patrimônio, serão punidos, ou vocês acham que essas câmeras são enfeite? Para quem estava sentado aqui, se omitindo mesmo sem concordar, são coniventes, terão a professora que estão pedindo. Agora, se retirem da sala! Todos!

Era inédito tal discurso na minha carreira acadêmica, aliás eu condenava esse tipo de conduta de alguns colegas que apelavam para a punição de um grupo inteiro, contudo, eu estava fora de mim, exausta dos combates silenciosos. Contive as lágrimas enquanto o lugar se esvaziava. Riam alto no corredor eu ouvia as risadas de dentro da sala, e isso foi o bastante para me fazer desabar.

Ouvi o barulho da porta bater e já me armei para uma nova batalha, mas, eram Jessica e Marcela.

-- A gente vai limpar isso, professora. – Jessica disse ao se aproximar.

Marcela se aproximou com detergente, uma esponja e uma garrafa de água enquanto Jessica avisou:

-- Vou pegar mais água.

Sentei-me e observei Marcela esfregando com força o quadro, espalhando a tinta do pincel, transformando a piada em um imenso borrão. Jessica logo apareceu com mais água, acompanhada de uma faxineira do prédio. Eu não consegui sair dali, fiquei inerte, enquanto Marcela recolhia minhas coisas sobre a mesa e junto com Jessica chegou perto de mim:

-- Professora Luiza, vamos acompanha-la até seu carro, ou a senhora prefere ir para outro lugar? – Marcela perguntou.

Eu só balancei a cabeça e segui para o carro, acompanhada das minhas alunas. Não consegui falar muito, só agradeci. Dessa vez, meu carro estava sendo vigiado de perto por um dos seguranças do estacionamento, saí do campus decepcionada comigo mesma, e constrangida por ter me deixado mostrar tão vulnerável para alunos, especialmente para Marcela.

Em casa, amargando aquele dia como uma derrota, uma chamada no Skype me tirou do buraco negro que estava mergulhada tentando corrigir o artigo do Vinicius, meu mestrando piadista.

-- Lu? Que bom te ver!

Era a Cléo, com aquele sorriso largo e sexy, tão destruidor.

-- Oi Cléo, bom te ver também. Como está Nova Iorque?

-- Big city baby! Você deveria ter vindo nas férias, estava tão perto! Já que levou a fama, era pra ter vindo deitar na cama, na minha!

-- Tem razão, convite tentador que eu fui burra em não ter aceitado. Ganhei mesmo a fama, como você aguenta isso?

-- Levar um não de uma mulher? Já superei – ela gargalhou.

-- Não, eu me referia a fama...

-- Está difícil, não é? Recebi o link do vídeo, Luiza, eu sinto muito. Eu não posso te ajudar muito, na verdade, estou voltando para o Brasil, terminamos as gravações do filme, pelo menos as externas, queria te encontrar.

-- Cléo, não sei se é uma boa ideia...

-- É, você tem razão... Eles não te deixariam em paz por mais algum tempo. Talvez te deixem em paz se eu divulgar que estou namorando.

-- Ah, você está namorando? – não soube disfarçar o desconforto.

-- Não, mas adorei sua cara de urso me perguntando – gargalhou de novo – Mas, eu poderia inventar um, fácil, só para distrair.

-- Pela sua experiência, isso ajuda?

-- Sinceramente, não. Iam querer saber como você se sentia com meu novo namoro, iam fazer piadas de mal gosto da mesma forma. Infelizmente, só o tempo, e a forma como você consegue lidar com a situação.

-- Acho que estou fazendo tudo errado.

-- Não tem fórmula pronta, seu ambiente é diferente dos que tenho familiaridade, Lu. Uma coisa posso te dizer, não deixem que tirem sua paz, altere sua rotina, não esqueça quem você é, não dê mais poder a eles.

A conversa com a Cléo me deixou ainda mais pensativa sobre meus próximos passos, precisava agir com sabedoria, não podia me permitir perder a cabeça como naquele dia.

************

Sem fórmulas mágicas, sem grandes feitos, segui meus dias, fazendo ouvido de mercador para as piadas, até começar a ridicularizar os trotes, e com isso fui ganhando apoio dos alunos. A volta da Cléo para o Brasil ainda provocou o surgimento de jornalistas esporadicamente, e os ignorei.

Comecei a retomar minha rotina, logicamente com dificuldades. O calor infernal me motivou a cumprir quase que um ritual no verão perto do campus: açaí com frutas no meio da tarde. Eu não tinha mais aulas, e me dei a esse luxo, a loja já era tradicional entre alunos e professores. Enquanto estava lá, voltando a minha personalidade anônima, vi Marcela entrando em um prédio em frente.

O prédio era de quitinetes, bem simples, mas, os alunos costumavam optar por imóveis assim, por ser tão próximo ao campus, que não precisaria de carro ou transporte público, o deslocamento podia ser feito a pé mesmo.

Uma chuva de hipóteses veio à minha cabeça, fiquei inquieta. Aquela inquietação me levou a uma atitude ridícula. Na segunda-feira, após a reunião do GRUFARMA, segui Marcela de maneira sorrateira, e para minha surpresa, ela saiu pela porta principal do campus, não pelo estacionamento como de costume. A pé, Marcela caminhou até o mesmo prédio no qual a vi no outro dia.

Minha curiosidade me jogou de volta ao mundo do face fake. Lorena precisava voltar, colher informações e assim o fiz.

-- Marcela, está por aí?

-- Oi Lorena, tudo bem?

-- Sim, e você? Como anda sua situação com a professora Luiza?

-- Isso é muito complicado. Minha vida é complicada, e a vida da professora Luiza, também ficou, não posso levar mais bagunça pra vida dela.

-- Bagunça?

-- Estou tentando arrumar as coisas, mas estou no meio de uma mudança. Pelo menos, dei um grande passo, preciso estar menos enrolada para sonhar de novo com a professora Luiza, se é que posso sonhar ainda com ela...

-- Que passo você deu? Parece algo importante.

-- Para mim foi importante. Mudei de casa também, faz parte da bagunça. Lorena, eu preciso ir, tenho uns artigos para fazer fichamento.

Eu já tinha a confirmação da minha suspeita, Marcela agora morava perto do campus. O que mais estaria por trás daquela bagunça a qual ela se referia? Não tardei a buscar minhas respostas. Meu pensamento voltou a ser Marcela, nem me lembrava com tanta intensidade o que nos separou, gostava mais de reviver o cuidado que ela teve comigo nos últimos dias. Como se o universo agisse ao meu favor, naquele dia, no meu gabinete no laboratório, Marcela me procurou:

-- Professora Luiza, podemos conversar?

-- Oi Marcela, pois não.

-- É meio constrangedor, mas, eu já tentei por outros canais, pensei que seria bom a senhora saber.

-- O que houve, Marcela? Mais alguma fofoca sobre a Cléo? Quer uma informação mais precisa?

-- Não, professora, eu só...

-- Olha, eu não sei nada da Cléo, ela voltou para o Brasil, mas eu não preciso falar da minha vida pessoal, não é? O que as pessoas estão falando agora?

-- Eu não quero saber da sua vida com essa Cléo! Por que está falando isso comigo? Para me machucar? Quer pisar em mim?

-- Não, Marcela...

Foi tarde demais para me desculpar, Marcela bateu a porta e saiu correndo do laboratório. Quando tentei alcançar, Lucas, outro membro do grupo de pesquisa me abordou:

-- Oi professora, a Marcela já falou com a senhora?

-- Han? Você sabe que a Marcela foi falar comigo? O que está acontecendo?

-- É que ela ficou de falar com a senhora. Nossa bolsa, está atrasada, está com um mês de atraso. Tentamos o departamento financeiro da agência, mas, não conseguimos...

-- Era isso? Eu vou cuidar disso, Lucas.

Com um enorme peso na consciência, não hesitei e fui até o prédio que eu sabia ser a nova residência de Marcela. E pateticamente esperei alguém sair do prédio para que eu pudesse entrar, já que não sabia qual era o apartamento dela para interfonar. Mais ridículo ainda, foi eu bater em todas as portas, até enfim, Marcela atender.

-- Professora Luiza?!

-- Oi Marcela, podemos conversar? - Perguntei ofegante.

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