domingo, 1 de abril de 2018

CAPÍTULO 31: LIÇÃO 27 – RÓTULOS SÃO REMOÍVEIS

O minúsculo apartamento de Marcela foi cenário de uma tórrida noite de amor, aos poucos ela se entregou a mim sem reservas, se permitiu, podia senti-la inteira em minhas mãos e boca.

-- Sei que essa cama nem se compara à sua, mas, nesse momento ela me parece o melhor lugar do mundo, por que você está aqui.

-- Essa cama está perfeita, meu bem, estamos juntas nela.

Beijei sua testa e a abracei.

-- E apesar de estar tudo perfeito, eu tenho que ir.

-- Mas, Luiza, o combinado não era de passarmos a noite juntas aqui?

-- Meu bem, não trouxe roupas, como vou de short curto para a universidade amanhã?

-- Pode usar uma roupa minha, professora.

-- Marcela, mesmo que coubesse em mim, tenho material de aula para pegar, não dá.

Visivelmente decepcionada, Marcela se afastou do meu corpo.

-- Meu bem, teremos outras oportunidades de passarmos a noite juntas. Eu prometo.

-- Teremos? Amanhã começa a vida real. Como será?

-- Quer conversar sobre isso agora? A gente já discutiu isso hoje a noite, já se arrependeu?

-- Você deve me achar instável. Como se a cada hora eu pensasse algo diferente, mas não é, sou realista, só isso.

-- O que isso quer dizer? Vamos voltar a história que somos de mundos diferentes?

-- Luiza... Vai dizer que não somos?

-- Só acho que não precisamos nos precipitar, arrastando pesos desnecessários para nossa história. Uma coisa de cada vez. Tenta esquecer esse clichê rotulador de idades diferentes, mundos diferentes. O que temos aqui é maior do que isso, não acha?

Marcela acenou em acordo, e para não prolongar um clima desconfortável, decidi que era hora de voltar para casa. As preocupações e indagações de Marcela me incomodavam, contudo, as sensações que eu ressentia ao lembrar do nosso encontro me mantinham eufórica, otimista e com um sorriso bobo nos lábios.

Mal podia esperar para encontrar Marcela na universidade, a troca de mensagens denunciava que aquele brilho no olhar era resultado de um amor novo nascendo. Entretanto, Marcela demonstrava sua insegurança em uma escala muito maior do que eu calculava, isso ficou claro quando telefonei para ela no final da manhã.

-- Almoça comigo, meu bem?

-- No restaurante universitário? Professores nunca estão por lá. Apesar do cardápio ter “top”.

-- Que tal eu comprar algo, e comermos no seu apartamento?

-- Tem vergonha de almoçar comigo no RU?

-- Vergonha de almoçar no restaurante universitário com você? Por que teria? Só não sou fã da comida de lá, e queria aproveitar o intervalo com você.

-- Hum, certeza?

-- Marcela, quero te beijar, te abraçar, e não posso fazer isso no RU.

Nesse momento, podia avistá-la no final do corredor, e meu coração já acelerava pelo desejo, pela vontade de tê-la em meus braços de novo.

-- Eu também quero te beijar, sentir seu perfume mais de perto, de onde estou posso senti-lo.

-- Então, aceita meu convite?

-- Não posso. Marcaram reunião de equipe para um trabalho, justamente no RU agora no almoço.

-- Tudo bem então, bom almoço.

Chateada, mal esperei para me despedir, e dei as costas para Marcela que me olhava de longe, me senti testada por ela, quando me perguntou sobre almoçar no restaurante universitário, mesmo tendo compromisso marcado para o mesmo horário. De cabeça baixa, nem vi Clarisse à minha frente, ela me esperava para me cumprimentar e eu apenas desviei.

-- Ei! Educação mandou lembrança! Luiza?

-- Desculpa Clarisse, não te vi! – Abracei-a.

-- É, você não veria nem sua sombra andando assim. Aconteceu alguma coisa?

-- Não... Quer dizer, muita coisa aconteceu.

-- Vamos almoçar, e a gente conversa, estou precisando conversar também.

Não sabia se era o melhor momento para revelar a Clarisse minha relação com Marcela, mas, fugir não era uma opção.

-- Então Clarisse, o que você conversar?

-- Queria te pedir desculpas, eu fiz de novo...

-- Amiga, eu não sei do que você está falando, fez de novo o que? Está se desculpando pelo que exatamente?

-- Fiz de novo aquilo que você sempre me chamou a atenção.

Imediatamente lembrei-me das vezes que exortei Clarisse sobre seu comportamento quando estava apaixonada, ela se mudava para o mundo da outra pessoa, era praticamente um universo paralelo onde só cabia ela e sua respectiva namorada, esquivava-se dos amigos. Todavia, naquele momento, esse era meu desejo, ficar isolada do mundo, vivendo meu amor com Marcela.

-- Relaxa, Clarisse. O importante é que você esteja feliz. Está tudo bem?

-- Na verdade, não. Fiz de tudo para corresponder as expectativas dela, mas parece que sempre falho em algo, o que como está errado, compro coisas demais, consumo combustível demais, poluo em excesso o planeta...

-- Nossa! Você está namorando uma vegana pacifista e ambientalista?

Perguntei em tom jocoso, e para meu constrangimento, acabara de descrever a Renata, namorada ou ex-namorada de Clarisse, por que minha amiga, balançou a cabeça confirmando os adjetivos.

-- Clarisse! Você nunca me disse que ela era tão radical, ela foi conosco para Fernando de Noronha, e não me parecia que ela estava desconfortável naquele luxo de resort.

-- Ah Luiza, nem me fala disso! Até ontem ele usou aquela viagem de munição para uma DR daquelas! Ela topou a viagem para conhecer os projetos ambientais, não curti nada do luxo, e pior, depois me arrependi das festas que perdi...

Não aguentei e gargalhei.

-- Eu juro que pensei que você estava sumida por estar numa lua-de-mal caliente!

-- Acho que em Noronha, a pessoa a ficar o mais próximo disso foi você, com a Cléo! Aliás, você inspirou a mulher né, até cantora ela virou...

-- Ela já tinha esse projeto, estava em Nova Iorque para isso, para de falar bobeira. Voltemos a você e sua “serumaninha”. Você está desanimada, acha que não vai dar certo? Mas, gosta dela?

-- Não está dando certo, Luiza. Nem sei se gosto dela, ou me apaixonei pela capa sabe...

-- Amiga, para. Daqui a pouco você cita a Marilia Mendonça: “me apaixonei pelo que inventei de você”.

-- Jura que ela canta isso? Vou ter que concordar com ela!

-- Para tudo! Você concordando com o “sofrenejo”?

-- Não foi você que disse que ela era a Adele brasileira?

-- E quase apanhei de você e do Ed.

-- Falando sério, não gosto de ser essa pessoa que está comigo agora, e gosto menos de mim também. E eu preciso comer um grande pedaço de carne ao ponto hoje! Meu Deus como carne é bom! Que saudade!

Gargalhei, estava me divertindo imaginando os meses de Clarisse na base de soja e tofu.

-- E quanto a você? Está bem? Recuperada da fase paparazzi?

-- Totalmente. Voltei a ser só uma professora anônima.

-- Você está parecendo feliz. Algum motivo especial?

-- Tem alguém que conheci e... Na verdade, é uma história meio longa, não é tão nova...

-- Luiza, você não sabe me enrolar, me conta, juro que não vou sumir mais.

-- Temos pouco tempo, vamos marcar outra hora? Tenho aula em meia hora, como te disse, é uma longa história.

-- Tenho a sensação de que você está querendo ganhar tempo...

-- Seu tornedor chegou, olha aí que belo corte! Vamos comer!

Ganhei tempo, ela estava certa. Não me senti segura em falar sobre Marcela naquele momento. Naquela tarde, ministrei as aulas com a mente dispersa, queria uma mensagem de Marcela para acalmar meu coração, estava chateada, percebi que estava no mundo diferente que Marcela se referia: estava voltando a um novelo adolescente de emoções, meias-palavras e deduções, definitivamente, Marcela despertava um comportamento pueril o qual eu não sabia se queria reviver.

Na reunião do GRUFARMA no final da tarde, ansiava por ver Marcela e resolver aquela situação incômoda. No final das orientações, contava que Marcela ficaria no meu gabinete, mas uma mensagem dela derrubou minha esperança:

-- Precisamos conversar, mas hoje tem uma atividade da Liga de Pediatria, posso te ligar mais tarde?

-- Ok, eu aguardo.

Eu aguardei. Naquela ânsia adolescente, de conferir o celular a cada trinta segundos, com a respiração sobressaltada a cada notificação que surgia na tela. Qual não foi minha surpresa ao receber outra mensagem de Marcela:

-- Luiza, o pessoal está combinando de jantar depois da atividade aqui, devo chegar tarde.

Não queria parecer desesperada, ansiosa, respondi a mensagem tentando disfarçar meu estado:

-- Tudo bem, não tem pressa, amanhã conversamos, preciso dormir cedo, divirta-se.

Dormir cedo? Luiza, sua tonta! Não deu o braço a torcer e ficou andando pela casa feito zumbi, supondo mil situações, criando cenas as quais Marcela estava no tal mundo diferente onde não me cabia. Especulando sobre a possibilidade de que ela estaria me evitando ou tendo as certezas de que não funcionaríamos como um casal. A chuva de pensamentos me impulsionou a fazer algo que me levava a uma zona muito perigosa: usar meu perfil fake para buscar Marcela.

Lorena estava sendo muito útil para mim, era um escudo para me proteger e uma ponte segura para alcançar o caminho até Marcela de uma maneira sutil.

-- Oi Marcela, está por aí?

Alguns minutos (longos 6 minutos) e a resposta na tela apareceu:

-- Oi Lorena, agora estou. Chegando em casa na verdade. Tudo bem?

-- Sim, tudo bem, e você?

-- Vivendo literalmente um sonho, um sonho daqueles que a gente não quer acordar, quer dormir mais um pouco para continuar sonhando, já passou por isso?

-- De não querer acordar de um sonho? Com certeza já. Por que acordar então?

-- É preciso acordar.

-- Da ultima vez que me falou de sonho, se referia a professora Luiza, ela ainda é seu sonho?

-- Definitivamente, ela é um sonho. Estar com ela, é um sonho. Mas, como eu acreditei que poderia dar certo? Lorena, ela é uma mulher, eu sou uma estudante, que mora em um quarto-sala, que só posso pagar até o final do ano. Tivemos um final de semana maravilhoso, mas chegou a segunda-feira, evitei-a hoje para não encarar o fato de que a realidade não cabe eu e ela no mesmo sonho.

-- Acha que fugir da realidade é o mais justo?

-- Estou encarando a realidade. Ela está com a vida feita e eu? Conheci um amigo dela ontem, também está com a vida feita, eu mal sabia conversar, é muito Eduardo e Mônica minha história com Luiza.

-- Eduardo e Mônica fizeram dar certo. Existem casais com mais diferenças que vocês, por que você desiste fácil dos sonhos?

-- Por que ela merece mais, e eu tenho medo de me machucar. Quando passar a paixão, ela pode descobrir que não valho a pena o esforço nem a espera.

-- Do jeito que fala, parece que a professora Luiza é alguém superficial, que está em busca de aventura, é o que pensa?

-- Claro que não. Mas ela é uma mulher! Eu sou uma “porqueirinha” de nada.

-- Acho que você pode ir além dos rótulos, Marcela.

Não tive paz naquela noite. Marcela estava desistindo de mim, e eu não sabia como lutar. Já começava a aceitar aquela rotulação que ela defendia, antevendo situações desagradáveis: aquelas sociais com os amigos, como seria? Eu no meio dos alunos? Ed e Cris não seriam indelicados, mas Clarisse não esconderia a desaprovação. Nem imaginava eventos maiores, os buchichos se espalhando sobre me aproveitar de uma aluna mais nova.

Todos aqueles pensamentos perturbadores se desfizeram quando vi Marcela no corredor da sua sala. Respirei fundo e abri um sorriso, ela me retribuiu, e isso foi o suficiente para me devolver uma chama de esperança.

Talvez por isso, na hora do almoço, a surpreendi, cheguei ao restaurante universitário e logo estava com meu bandejão na mesma mesa que ela, Jessica e Lucas estavam.

-- Tudo bem se eu sentar aqui? – Perguntei.

-- Claro, professora! – Lucas respondeu prontamente.

Marcela segurava o riso largo, isso estava evidente. Antes disso, ficou pálida, deve ter faltado a voz e esta não voltou até que provoquei:

-- O que temos no cardápio TOP de hoje, Marcela?

-- Deixe-me ver, temos um clássico da cozinha contemporânea: arroz salteado com legumes, frango agridoce com redução de shoyo, e vinagrete de cebolete.

-- Nossa, que visão gastronômica! Juro que vi arroz refogado com cenoura, frango xadrez e um vinagrete muito do mixuruca, isso não é cebolinha, é coentro, não é? Inclusive tem um pedaço grudado no seu dente!


Marcela e seus amigos gargalharam, e uma série de comentários descontraídos se desenlaçaram com fluidez, estava molhando meus pés no mundo de Marcela, tentando mostrar que nossa história não era impossível de ser vivida. Saímos do refeitório, juntas, trocando mensagens e olhares apaixonados.

-- Saudade do seu beijo...

-- Quero você, agora.

Meio que no susto, Marcela me empurrou para o canto, um recuo estratégico, em baixo de um lance de escadas e me roubou um beijo cheio de volúpia, mordiscou meus lábios, apertou minha cintura contra a dela e cochichou:

-- Não pode ser agora, mas eu te espero na minha casa, hoje.

Saiu com um sorriso malicioso nos lábios, me deixando ali, com a calcinha molhada, certamente com o rosto ruborizado, ardendo de desejo por ela. Bendita hora para Clarisse me encontrar:

-- Luiza? O que faz aqui? Eu te mandei mensagem te chamando para almoçar, você me disse que não teria tempo...

-- Não teria tempo de sair daqui, almocei por aqui mesmo no RU.

Tentava controlar minha respiração, mas, eu falava rápido, preocupada em limpar meus lábios, certamente mais vermelhos pelas mordidas de Marcela.

-- No RU? Você odeia essa comida! Luiza, você está com uma cara que está me escondendo algo...

-- Você está paranoica, Clarisse.

-- Espera...

Clarisse se aproximou de mim, como uma esposa ciumenta, ou cão farejador, e cheirou meu pescoço.

-- Clarisse, o que é isso? Tá doida?

-- Luiza, esse não é seu perfume!

-- Desde quando você sai fungando meu pescoço?!

-- Desde quando você se agarra pelos cantos desse campus no caminho do RU? Luiza, você voltou com a Beatriz?

-- Quê? Que Beatriz?

-- Claro que não é a Beatriz, é outra mulher, mas, quem? No RU? Meu Deus! Luiza, você está saindo com uma estudante?

Fiquei pálida e gaga também. Meu telefone tocou, era o gerente do meu banco e eu inventei uma urgência para atender, para fugir dali.

-- Tenho que atender amiga, depois nos falamos.


**************

A tarde passou lenta, ansiava correr para os braços de Marcela, tão logo minhas obrigações se encerraram, não tardei em seguir para o prédio dela, mas antes de chegar ao estacionamento, minha querida amiga e mais nova candidata a detetive, Clarisse, me abordou na saída do Campus.

-- Está indo a algum lugar, amiga?

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